Conheça os anfíbios que mudam de forma e tornam-se canibais no estágio larval
Alguns jovens sapos e salamandras conseguem desenvolver cabeças e “presas” maiores, o que lhes permite se alimentar de seus semelhantes e crescer mais rápido.
NO ALTO das montanhas Três Irmãs, na Cordilheira das Cascatas, região central de Oregon, Estados Unidos, os pesquisadores precisaram caminhar — e depois esquiar — para chegar até a calma e efêmera lagoa. Salamandras de aparência estranha, e não muito mais do que isso, viviam na água.
“Logo percebi que as larvas [de salamandra] eram bem finas e tinham cabeças grandes”, comenta Susan Walls, agora bióloga e pesquisadora do Serviço de Pesquisa Geológica dos Estados Unidos. Quando ela analisou mais de perto, pôde perceber que as cabeças e mandíbulas daquela população de salamandras eram muito maiores do que o normal. No fim, as bocas grandes tinham um objetivo bastante específico: canibalismo.
Em um dos primeiros artigos da pesquisa sobre o tema envolvendo salamandras, Walls havia descrito que essas grandes mandíbulas também abrigavam dentes vomerianos maiores, que haviam crescido e se pareciam com presas (nessa espécie, esses dentes normalmente se resumem a pequenas saliências atrás da fileira de dentes frontais). Perfeitos para devorarem seus semelhantes — mas por quê?
Enquanto jovens, antes de passaram a viver em terra, as salamandras-de-dedos-largos podem “mudar de forma” — suas cabeças e mandíbulas ficam maiores em relação aos seus corpos, e seus dentes vomerianos ficam mais pronunciados. Caso haja comida e água suficientes, elas não desenvolvem essas características. Mas se estiverem passando fome há dias e precisarem sair da lagoa rapidamente (digamos, durante uma primavera ou verão mais seco), suas cabeças e dentes podem crescer — e posteriormente voltar ao normal também. Bocas e dentes maiores ajudam esses anfíbios a se alimentarem de presas maiores — incluindo seus irmãos. Essa dieta rica em proteína os impede de morrer de fome e os ajuda a se desenvolver mais rápido para que possam sair da lagoa antes que ela seque.
Esse é um exemplo de plasticidade fenotípica — alterações na aparência de um animal induzidas pelo ambiente — e não são apenas as salamandras-de-dedos-largos que recorrem a ela. Esse tipo de plasticidade já foi confirmado em diversas espécies de anfíbios e tipos de animais. “Há alguns insetos que possuem formatos de cabeça maiores e menores, alguns nematódeos se transformam em canibais com dentes, e há protistas (criaturas unicelulares) capazes de produzir indivíduos canibais para combater superpopulações”, afirma David Pfennig, professor de biologia da Universidade da Carolina do Norte, que pesquisa esse fenômeno em salamandras-tigre e sapos-pé-de-espada.
Compreender os mecanismos por trás da plasticidade fenotípica é essencial para que possamos usá-la a favor dos anfíbios, cuja população já diminuiu em 43% em todo o mundo — a maior taxa de perda de diversidade entre os vertebrados. (Leia sobre como até mesmo mais espécies de anfíbios correm risco de extinção do que imaginávamos.)
Tornando-se canibais
A maior parte dos anfíbios possui um ciclo de vida bifásico, ou seja, eles passam suas primeiras semanas na água e a vida adulta em terra. É durante a primeira parte do ciclo de vida que pode ocorrer a plasticidade fenotípica.
As larvas da salamandra-de-dedos-largos, que se parecem bastante com girinos, normalmente não se alimentam umas das outras, mas são agressivas: “Vi muitas mordidas e golpes enquanto observava diretamente esses animais”, afirma Erica Wildy, professora associada de biologia da Universidade do Estado da Califórnia, East Bay, que estudou as mesmas subespécies de salamandras-de-dedos-largos que Walls, além de outras.
Ao longo de sua pesquisa sobre a influência dos alimentos na agressividade de larvas de salamandra-de-dedos-largos, ela observou que as salamandras isoladas nas montanhas se comportavam de modo diferente das que habitavam vales, locais onde há mais alimentos e água disponíveis. Ela descobriu que as salamandras em vales não exibiam tanta agressividade ou nenhum “indivíduo canibal”, o nome dado às salamandras-de-dedos-largos com mandíbulas grandes e pseudopresas. O artigo de Wildy descreve que o estresse causado pelo ambiente pobre em nutrientes é um fator importante por trás da agressividade e do canibalismo das salamandras isoladas nas montanhas.
Wildy também observou que os indivíduos canibais pareciam apresentar uma taxa de crescimento mais rápida comparado aos que se alimentavam de zooplâncton, a dieta típica. Isso aconteceu provavelmente porque precisavam crescer mais rápido e sair da lagoa antes que ela secasse, teorizou ela. Uma lagoa seca significaria a morte imediata de larvas de salamandras que ainda não conseguem se locomover.
Ainda, se salamandras canibais se mudassem para um habitat mais espaçoso e voltassem a se alimentar de sua dieta típica, elas voltariam a assumir seu formato normal, de acordo com Walls.
Espécies que mudam de forma
Que tipo de pressão induz essas alterações tão drásticas? No caso das salamandras-de-dedos-largos, foi a falta de alimentos e a rápida drenagem das lagoas sazonais. Para as salamandras-tigre, é o espaço — em condições de superlotação, encostar umas nas outras pode acionar o desenvolvimento de indivíduos canibais como forma de reduzir a população.
O tamanho da cabeça de girinos de sapos-pé-de-espada se modifica em resposta ao tipo de alimento disponível. Caso se alimentem de presas maiores no início da vida, alguns podem desenvolver cabeças maiores, afirma Pfennig. O indivíduo normal e o carnívoro de cabeça maior são tão diferentes que os cientistas acreditavam ser duas espécies distintas.
Alguns indivíduos fazem tudo para evitar predadores. Girinos de pererecas neotropicais demonstram versões distintas tanto em cor quanto em musculatura em resposta aos tipos de predadores que os cercam.
“Se eles sentem o cheiro de peixes na água, desenvolvem uma cauda longa e transparente e possuem músculos maiores nessa parte do corpo”, explica Justin Touchon, professor assistente de biologia na Vassar College. Isso faz com que os peixes tenham mais dificuldade de vê-los e os permite fugir mais rapidamente.
“Porém, se sentem o cheiro de larvas de libélula, eles desenvolvem uma nadadeira caudal grande e colorida”, explica Touchon. Essa cauda irá distrair as libélulas para que ataquem essa região, que é mais dispensável, e não o corpo maleável e vulnerável do girino.
Evolução em ação?
Não sabemos exatamente o que causa essas mudanças, afirma Touchon, mas a expressão gênica exerce um forte papel. “Um animal sente o cheiro de seu predador ou detecta a temperatura da água e aciona alguns genes que o permitem se desenvolver rapidamente, ou suprime outros genes.”
Ele atualmente pesquisa quais genes podem ser responsáveis por essas alterações nas pererecas.
Parece que a plasticidade fenotípica representa a evolução em ação, bem, talvez represente mesmo: “Muitos pesquisadores acreditam que a plasticidade fenotípica não possui nenhum impacto na evolução, pois as alterações induzidas pelo ambiente geralmente não são herdadas. Outros afirmam que a plasticidade atua reduzindo a evolução. Mas outro argumento sugere que a plasticidade fenotípica acelera a evolução”, afirma Pfennig.
Ser capaz de responder rapidamente a diferentes condições ambientais é uma vantagem de muitas espécies, e isso possui implicações importantes conforme o clima continua a mudar. Os sapos-pé-de-espada de Pfennig no Arizona possuem prazos cada vez menores para passarem de girinos a sapos porque o oeste dos Estados Unidos está sofrendo cada vez mais com secas e queimadas. Indivíduos carnívoros (ou canibais) podem se tornar mais comuns em resposta a isso — mais alimentos ricos em proteína significa que eles serão capazes de crescer mais depressa, sair do berçário aquático e se reproduzir mais rapidamente.
“É provável que a plasticidade seja um tipo de suporte às espécies. Certa flexibilidade pode permitir que as espécies persistam em caso de alterações ambientais”, afirma Touchon.
Isso pode funcionar, mas apenas se a alteração for algo para a qual a plasticidade do animal já esteja preparada. “A capacidade de sobrevivência de um organismo depende de onde ele vive, dos elementos aos quais ele está adaptado devido a seleções passadas e quais influências as mudanças climáticas exercem no lugar que ele habita”, afirma Mary Jane West-Eberhard, cientista sênior emérita do Instituto de Pesquisa Tropical Smithsoniano, uma filial do Instituto Smithsoniano no Panamá voltada à ecologia tropical.
Um exemplo de plasticidade que ajudou na adaptação às mudanças climáticas é o das salamandras-flatwoods na Flórida, que estão ameaçadas de extinção. Em outubro de 2018, o Furacão Michael fez com que água salgada atingisse o Refúgio Nacional de Vida Selvagem de St. Marks na Costa do Golfo, onde essas salamandras se reproduzem em lagoas temporárias de água doce. Após a tempestade, Susan Walls, que trabalha na região agora, encontrou salamandras vivas, até mesmo em locais inundados com água salgada do mar.
Como elas podem ter sobrevivido? “Estudos demonstram que animais relacionados, como as lagartixas, que vivem em áreas costeiras, são mais tolerantes à água salgada do que indivíduos localizados mais longe do mar. Isso é um tipo de plasticidade fenotípica — na qual os animais se adaptam a condições mais locais”, afirma Walls.
Ela diz ter esperança de que conforme os cientistas obtêm mais conhecimento sobre a adaptação dos anfíbios a condições de estresse exacerbadas pelas mudanças climáticas, o homem possa utilizar esse conhecimento para tomar decisões mais inteligentes em relação à proteção dessas espécies.