Araras selvagens estão prosperando no Mato Grosso do Sul, mas em áreas urbanas
Décadas atrás, as araras-canindé fugiram da seca e de incêndios florestais e desembarcaram em Campo Grande. Hoje, são adoradas pelos moradores.
CAMPO GRANDE (MS) A bióloga especialista em papagaios Larissa Tinoco não passa seus dias em florestas tropicais, mas sim enfrentando a hora do rush na movimentada Campo Grande. Num recente dia de inverno em junho, ela percorreu subúrbios tranquilos e arborizados, um estacionamento vazio, uma grande horta e, depois, a Avenida Afonso Pena. Sua rota passa geralmente por 158 ninhos de araras-canindé, nos quais estimam-se viver por volta de 700 delas.
Mas, hoje, os ninhos em sua rota estão vazios. Enfrentando o trânsito intenso do fim do dia, Tinoco, uma pesquisadora do Projeto Aves Urbanas, grita de repente.
À nossa frente, o sol ilumina o peito e as asas coloridas de uma arara-canindé. A ave sai rapidamente de nossa vista, e momentos depois, um ruído alto indica que pousou em alguma árvore próxima.
Dezenas destes grandes animais apareceram pela primeira vez na cidade em 1999, fugindo de secas severas e incêndios em regiões selvagens nos arredores, como o Pantanal.
“Eles encontraram um ambiente favorável aqui, e a notícia se espalhou”, diz Neiva Guedes, presidente-fundadora do Instituto Arara Azul, cujo Projeto Aves Urbanas monitora a população de araras de Campo Grande.
De fato, em 2018, houve um grande aumento no número de ninhos e acasalamentos em Campo Grande, com 184 araras-canindé nascendo no perímetro urbano, bem acima das 133 nascidas no ano anterior, de acordo com a pesquisa de Tinoco no âmbito do Projeto Aves Urbanas.
A União Internacional para a Conservação da Natureza aponta que o número desta espécie fascinante está diminuindo em toda a América do Sul, em grande parte devido ao desmatamento. Embora a taxa de perda florestal tenha diminuído no Mato Grosso do Sul nas últimas décadas, de acordo com dados oficiais, a agricultura e a pecuária continuam a expandir, mesmo que em ritmo mais lento.
O desmatamento contínuo pode afastar ainda mais as araras de seu habitat natural, fazendo das cidades o último – e nada ideal – reduto para as aves. Estudos recentes sugerem que a população de araras-canindé está aumentando no Brasil, possivelmente porque as aves de Campo Grande estão se espalhando em outros lugares.
“Araras-canindé têm sido vistas novamente em locais que já haviam desaparecido, como nos estados de São Paulo e Paraná, o que pode ser um sinal de que sua população esteja crescendo”, diz Guedes.
Por enquanto, a ave é amada pelos moradores de Campo Grande. Como símbolo oficial da cidade, está estampada em suvenires, pinturas em prédios públicos e em uma escultura gigante na apropriadamente chamada Praça das Araras. Em 2018, a prefeitura aprovou uma lei proibindo a derrubada de qualquer árvore utilizada como ninho para os papagaios.
Guedes espera que as aves inspirem a população a se importar com as questões de conservação no Brasil. Temos que “continuar lutando para que essas araras se tornem uma bandeira de verdadeiro compromisso com o meio-ambiente”, diz ela.
Aves adoradas
Como a maioria das araras, as canindés gostam de fazer seus ninhos dentro de troncos de palmeiras mortas. Campo Grande, uma cidade de cerca de 885 mil habitantes, está cheia de exóticas palmeiras imperiais que atingem até os 130 metros de altura e fornecem ninhos mais espaçosos do que as palmeiras nativas.
Moradores frequentemente ajudam araras jovens a retornarem a seus ninhos após tentativas frustradas dos primeiros voos. Algumas pessoas chegaram a construir telhados de madeira sobre seus ninhos para protegê-las da chuva.
“Converso com elas o tempo todo”, diz Ana Paula Marques da Silva, uma dona de restaurante cujo jardim abriga dois ninhos de araras. “Elas são pontuais como os ingleses, então quando chegam à tarde, gosto de cumprimentar e brincar que é tão bom que chegaram novamente para o chá das cinco horas”.
Em geral, a vida é boa em Campo Grande. Não há predadores naturais e a cidade possui uma grande quantidade de frutas e nozes em vários parques e espaços verdes.
De fato, a taxa de sobrevivência de araras-canindé em Campo Grande é maior do que na natureza, de acordo com Guedes, que também é professora na Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp).
Refúgio urbano?
No entanto, é um equilíbrio delicado.
As araras enfrentam perigos urbanos, tais como ficarem presas em linhas de energia e cercas elétricas ou serem atingidas por carros. De 2011 até 2019, 38 araras-canindé morreram eletrocutadas em Campo Grande, cerca de quatro por ano, de acordo com Guedes.
E embora o contrabando de aves vivas e ovos pareça estar diminuindo no Mato Grosso do Sul, ainda é uma preocupação séria, diz ela. Nos últimos quatro anos, o governo do estado interceptou seis araras bebês que caçadores haviam raptado em Campo Grande.
Seu instituto trabalha em cooperação com a polícia local e agências federais do Brasil e de países vizinhos como Bolívia, Paraguai e Argentina no combate a tais caçadores que vendem as aves a compradores nos EUA, Europa e Ásia, onde são cobiçadas como animais de estimação.
E, à medida que a cidade se expande, canteiros de obras estão tomando o lugar de lotes vazios e jardins onde havia palmeiras. O governador do estado, Reinaldo Azambuja, fez a controversa proposta de converter uma grande parte do Parque dos Poderes em um estacionamento e prédios públicos. O gabinete do governador recusou-se a comentar esta história.
A proposta não agrada alguns moradores, como Simone Mamede, bióloga e proprietária de uma agência de ecoturismo, Instituto Mamede.
O parque, uma área de conservação, é “crucial para a preservação do corredor de biodiversidade que temos na cidade”, diz Mamede. “É um dos últimos vestígios de vegetação nativa do cerrado em Campo Grande”.
“Isso é importante não só para as araras, mas para as mais de 400 espécies de aves que temos aqui”, acrescenta.
Surpreendentes
A arara-vermelha também começou a aparecer na cidade em 1999. Elas voam para Campo Grande nos primeiros meses do ano e voltam para natureza no início da época de acasalamento, por volta de julho.
A presença de ambas as espécies na cidade inspirou Guedes a criar o Projeto Aves Urbanas em 2011, e, desde então, pesquisas têm revelado descobertas intrigantes sobre o comportamento e a dieta das araras urbanss.
Por exemplo, Tinoco constatou araras-canindé acasalando com araras-vermelhas – algo inédito fora de cativeiro. Também foi surpreendente a descoberta de que estes híbridos sejam férteis.
Os cientistas também constataram araras-canindé comendo 31 tipos diferentes de frutas e nozes, como mangas, goiabas, cajás e frutas dos buritis e macaúbas. Uma dieta muito mais diversificada do que se pensava.
Uma manhã, nos Parque dos Poderes, fiz um passeio de bicicleta esperando ver mais aves. O extenso e arborizado parque de 2,5km² é cercado por grandes avenidas e prédios do governo, onde a vida selvagem brasileira, como quatis e capivaras, perambula entre transeuntes que se apressam para o trabalho ou moradores pegando sol nos fins de semana.
Logo encontrei um ninho em uma palmeira, perto de onde corredores e ciclistas passavam. Um casal de araras-canindé sentava-se silenciosamente no topo do tronco enquanto as pessoas paravam para filmar e fotografar.
“Aposto que olham as pessoas tirando fotos e se perguntam: Que animais estranhos são esses?”, disse Donisete Alves, um comerciante que vende água de coco e castanhas-d0-pará em um estande bem em frente ao ninho. Há apenas duas semanas, Alves me disse, uma pessoa foi pega tentando roubar ovos deste mesmo ninho.
Enquanto conversávamos, passou um grande caminhão deixando para trás um rastro de fumaça negra e espessa. As araras continuavam de pé no tronco, aparentemente imperturbadas, parecendo ao mesmo tempo majestosas e frágeis no meio da nuvem de fumaça.