Raposas-voadoras estão morrendo em massa devido ao calor extremo na Austrália
No fim de 2019, milhares de mamíferos morreram em um parque de Melbourne devido ao calor de mais de 43 graus.
Dezenas de raposas-voadoras-de-cabeça-cinza ofegantes e sufocadas se aglomeram na tentativa de suportar o calor de mais de 43 graus Celsius no Parque Yarra Bend, nos arredores de Melbourne, no fim de dezembro de 2019. Cerca de 4,5 mil raposas, incluindo muitas das observadas na imagem, morreram no parque no decorrer de três dias.
30 MIL RAPOSAS-VOADORAS-de-cabeça-cinza que viviam no Parque Yarra Bend, próximo ao centro de Melbourne, na Austrália, tiveram um início de primavera bastante comum.
Em setembro e outubro — primavera na Austrália e principal temporada de nascimento dos enormes morcegos de quase 30 centímetros — muitas das raposas-voadoras haviam retornado ao parque após a migração do inverno para a costa. Os filhotes nasciam normalmente, afirma Stephen Brend, biólogo encarregado de monitorar raposas-voadoras-de-cabeça-cinza na província de Vitória, inclusive no Parque Yarra Bend, que abriga uma colônia significativa de morcegos. Tudo corria como sempre.
“Foi então que o terror começou”, lamenta Brend. “Ficou quente demais muito rápido.”
Incapazes de suportar o calor extremo e implacável que atingiu Melbourne em dezembro, as raposas-voadoras começaram a morrer. Ao longo de três dias, pouco antes do Natal, quando a temperatura excedeu os 43oC, 4,5 mil das raposas-voadoras dessa espécie que viviam no parque pereceram — 15% da população da colônia.
A tragédia das raposas-voadoras no parque repete as cenas de sofrimento de animais silvestres em todo o país e coloca em evidência os perigos do calor extremo, que, para algumas espécies, pode ser tão letal quanto o fogo. Grandes e pequenos, rápidos e lentos, os animais endêmicos da Austrália são as maiores vítimas das ondas de calor e incêndios que assolam o país em uma escala sem precedentes. É o verão mais quente e mais seco já registrado na história da Austrália. À medida que o planeta aquece, incêndios em larga escala estão se tornando mais frequentes e as temporadas de incêndios estão cada vez mais longas.
Para as raposas-voadoras dessa espécie, classificadas como vulneráveis à extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza, o ocorrido em Yarra Bend não foi um caso isolado. “A colônia em Adelaide sofreu um baque ainda maior”, conta Brend. Milhares de filhotes de raposa-voadora morreram ali em decorrência do calor extremo entre novembro e janeiro, afirma Justin Welbergen, professor associado de ecologia animal na Universidade do Oeste de Sydney e presidente da Sociedade de Morcegos da Australásia. Em 4 de janeiro, milhares de filhotes de raposa-voadora morreram em várias áreas de concentração dos animais na região e nas redondezas de Sydney, em Nova Gales do Sul, onde a temperatura atingiu um recorde de quase 50oC. A equipe da Welbergen, que monitora as condições de estresse térmico da raposa-voadora, está calculando o número total de mortos.
O calor causticante e os grandes incêndios deste verão, que devastaram toda a costa leste da Austrália — principal habitat das raposas voadoras — “têm o potencial de exterminar toda a geração de morcegos recém-nascidos de 2019”, afirma Brend. Aproximadamente 80% dos filhotes de raposa-voadora nascem em outubro. Eles estavam jovens e vulneráveis quando ocorreram as ondas de calor e incêndios florestais no fim do ano passado.
Relato de um dia no calor extremo
Um dia na vida de uma raposa-voadora em uma onda de calor é implacável. Às 5h30 da manhã, ao amanhecer, os morcegos voltam para as árvores depois de passarem a noite se alimentando de néctar e frutas. Às 8 horas da manhã, explica Brend, seus ninhos aquecem. Os morcegos batem as asas para se refrescar, mas por pouco tempo, pois logo se cansam, afirma ele. Ao meio-dia, estão exaustos e as temperaturas continuam a subir. Os morcegos começam a ficar ofegantes, o que acelera a desidratação.
A essa altura, ainda poderiam voar para o rio para beber água (o rio Yarra corta ao meio o parque de cerca de 260 hectares), “mas é difícil voarem no meio de uma onda de calor”, explica Brend. Voar requer energia e, como estão exaustos e desidratados, simplesmente ficam parados.
Aflitos e começando a entrar em pânico, os morcegos tentam encontrar um local fresco. As mães deixam os bebês em galhos e se afastam, afirma Brend, em busca de um tronco mais fresco. Os morcegos seguem uns aos outros — e avistar um em um tronco parece um sinal de refúgio ao restante. Assim, começam a se amontoar. “É uma aglomeração de morcegos”, afirma Brend. “Para um observador, pode parecer irracional”. Os que chegaram primeiro agora estão cercados e sufocados por dezenas de outros.
“A essa altura, deu tudo errado”, conta Brend. É quando a equipe dele, formada por funcionários do parque e voluntários, interfere para tentar desfazer os aglomerados e lançar jatos d’água neles, o que os esfria e mata a sede.
Tragédia nas árvores
Em 20 de dezembro, no auge do fenômeno térmico de três dias que matou 4,5 mil raposas-voadoras, “não houve trégua”, diz Brend. Às 21 horas, a equipe estava lançando jatos d’água. Mas ficou completamente escuro, galhos caíam e havia cobras peçonhentas na mata. “Tivemos que cancelar as atividades. Não conseguíamos enxergar. Estava 38oC. Foi bastante desolador”, conta ele. “Foi uma carnificina.”
“Um deles caía e o restante caía no chão em cascata, esmagando e sufocando uns aos outros. Dezenas, senão centenas de morcegos mortos ou moribundos caíram embaixo das árvores”, afirma Douglas Gimesy, fotojornalista de Melbourne, que documentou as iniciativas de resgate em dezembro. “Era possível vê-los ofegantes, sufocando e aquecendo. Voluntários tentaram intervir e procurar entre os mortos alguns que ainda estivessem vivos. Mas são apenas 20 a 30 socorristas para 4,5 mil morcegos. É como uma zona de guerra. É triste, angustiante, de cortar o coração, e é claro que se repetirá.”
“Conseguimos salvar alguns a tempo”, afirma Tamsyn Hogarth, integrante da equipe de resgate. “Outros morreram em nossas mãos.” No terceiro dia, em 20 de dezembro, “havia um cheiro forte de morte”, afirma ela. Hogarth administra o Fly By Night, um abrigo de animais silvestres em Melbourne dedicado a resgatar, reabilitar e soltar de volta na natureza as raposas-voadoras dessa espécie. Ela e outros voluntários resgataram 255 filhotes durante os picos de calor ocorridos em dezembro no Parque Yarra Bend. Atualmente, dezenas de voluntários em toda a província de Vitória se revezam nos cuidados com os morcegos, com idades entre duas e doze semanas.
Temporada diferente
É normal ocorrerem dias quentes que causem mortes de morcegos no Parque Yarra Bend. “Estamos sempre preocupados com fenômenos térmicos. Todo verão tem dias muito quentes”, afirma Brend. No verão passado, por exemplo, centenas de morcegos morreram, diz ele. Um estudo constatou que, entre 1994 e 2007, aproximadamente 30 mil raposas voadoras-de-cabeça-cinza morreram devido ao calor extremo na Austrália.
Mas neste ano, a época em que veio o calor extremo — logo após a temporada de nascimento de filhotes — contribuiu para uma mortalidade extraordinariamente elevada. Como os jovens ainda estavam em fase de amamentação, as reservas de energia de suas mães esgotaram e todos eles — mães e filhotes — ficaram mais vulneráveis, afirma Brend. O primeiro fim de semana de dezembro foi extremamente quente e foi seguido por uma profusão de dias quentes durante todo o mês, culminando com o fenômeno mortal de três dias, atingindo um pico de cerca de 43oC em Yarra Bend em 20 de dezembro.
“É deprimente e assustador para a espécie e está acontecendo em toda a sua área de ocorrência”, conta Brend. Embora o Parque Yarra Bend não tenha sido atingido por incêndios, grande parte do habitat das raposas-voadoras fica diretamente nas zonas de incêndio ao longo da costa leste da Austrália.
Um pombo-viajante dos dias atuais?
Uma pesquisa nacional estimou, em maio de 2019, que existem cerca de 589 mil raposas-voadoras-de-cabeça-cinza na Austrália. Embora sua população atual seja expressiva, os animais enfrentam uma série de ameaças, como picos frequentes de calor, o enroscamento em infraestrutura urbana, como em redes e arames farpados, além da importunação de moradores que os consideram pragas.
Os morcegos são nômades. Atualmente, boa parte de sua área de ocorrência está localizada em zonas de incêndios. Muitos viajam para o norte no inverno, fazendo ninhos em florestas ao longo da costa, que agora encontrarão queimadas. Os “incêndios florestais destruíram alimentos básicos em escalas sem precedentes”, afirma Welbergen. “Não há refúgio para eles”, afirma Brend. “Não existe o consolo de que Melbourne está arruinada, mas a situação está melhor no norte de Nova Gales do Sul — as condições estão ruins por toda parte”.
“Se isso persistir por muitos ciclos, a população dessa espécie entrará em declínio”, diz Brend. “Não quero soar alarmista ou dramático — ainda existem milhares desses morcegos — mas não há mais motivo para estar confiante.”
“Nossa preocupação é termos um novo pombo-viajante”, diz ele, referindo-se ao que já foi o pássaro mais abundante da América do Norte antes de ser caçado até a extinção no século 19.
'Os morcegos precisam da floresta e a floresta precisa dos morcegos'
As raposas-voadoras desempenham um papel vital na floresta. “O papel ecológico delas é como o de grandes abelhas noturnas”, explica Brend. Elas transportam sementes e polinizam árvores, fazendo a jardinagem da floresta à noite. “Os morcegos precisam da floresta e a floresta precisa dos morcegos”, afirma Brend.
E ainda estamos na metade do verão na Austrália. “Vamos lutar pelos nossos amigos que vivem de cabeça para baixo”, afirma Lawrence Pope, socorrista que cuida de cinco morcegos órfãos em casa, “mas o cenário parece muito sombrio”.
“Neste ano de terror, todas as espécies estão sofrendo. É muito assustador”, lamenta Brend. “Nós estamos com calor, eles estão com calor, é um pesadelo.”
Confira o Especial Austrália, de 8 a 11 de janeiro, às 17h10; e domingo, 12 de janeiro, a partir das 12h30, no National Geographic.