Ingestão de plástico já foi registrada em mais de 1,5 mil espécies animais

Adaptados ao longo de milênios para reconhecer alimentos rapidamente, os animais não identificam os itens plásticos. Pela semelhança com a comida – sacolas e águas-vivas no mar, por exemplo –, acabam os ingerindo. Isso é a armadilha evolutiva.

Peixe-porco busca se esconder embaixo de um cesto de plástico no Mar de Sargaços, no Atlântico Norte. Artigo da edição especial sobre plástico da revista científica Science revisou a literatura em busca de casos de ingestão de plástico.

Foto de David Doubilet
Por Paulina Chamorro
Publicado 9 de jul. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 12 de jul. de 2021, 18:52 BRT

• Ingestão de plástico por animais já foi registrada em oito filos e mais da metade das ordens de vertebrados.

• Ciência registrou mais de 1,5 mil espécies de animais, de pequenos invertebrados terrestres e elefantes a zooplâncton e baleias, ingerindo plástico.

• O ambiente marinho é o que acumula a maior quantidade de registros, com mais de 1,2 mil espécies.

• Hoje, em ambientes marinhos, há sete vezes mais registros de ingestão de plástico por animais do que mostrou o primeiro trabalho de revisão de literatura, conduzido em 1997.

• Mais de 60% das espécies de aves marinhas e mamíferos marinhos já foram registradas ingerindo plástico, abrangendo todas as famílias desses grupos.

O Julho sem Plástico, movimento mundial da sociedade dedicado a discutir e intensificar os alertas a respeito do impacto desse tipo de poluição nos ambientes, nas pessoas e na biodiversidade ganhou um componente de peso este ano: uma edição especial da revista científica Science.

O texto de abertura diz que a “hora de prevenir a poluição do plástico já passou – a hora de mudar o futuro dos plásticos em nosso mundo, entretanto, é agora”.

Com o título de Our Plastic Dilema (O Dilema do Plástico, em tradução livre), o especial traz uma série de revisões – um tipo de artigo científico que organiza e analisa, em um único texto, estudos sobre um determinado tema. Uma das que se destacam é o trabalho A ingestão do plástico como armadilha evolutiva: Em direção a uma compreensão holística, que apresenta o impacto do material nas cadeias alimentares e em diversos ramos da árvore da vida.

O artigo é assinado pelo brasileiros Robson G. Santos – da Universidade Federal de Alagoas – e Ryan Andrades – da Federal do Espírito Santo – e pelo argentino Gabriel E. Machovsky-Capuska – pesquisador das universidades Massey, na Nova Zelândia, e de Sidney, na Austrália. Os três estudam como a ingestão de plástico provocada por ações humanas é um problema para a evolução das espécies animais do mar, da terra e da água doce.

A ingestão de plástico já foi registrada em mais de 1,5 mil espécies e está em quase todos os lugares – das cadeias alimentares aquáticas a mais da metade da ordem dos vertebrados, aponta a revisão.

“É generalizado. Do invetebrado na Antártica, elefantes, passando por baleias e zooplâncton. Está todo mundo comendo plástico, não importa sua história evolutiva nem sua posição ecológica”, disse Robson G. Santos em entrevista à National Geographic.

A constatação faz parte da primeira etapa do trabalho, na qual os cientistas fizeram uma amostragem geral do problema. Eles buscaram pesquisas sobre plástico em todo tipo de organismo, passando por peixes, aves, mamíferos, reptéis e invertebrados.

“Tentamos fazer uma revisão mais profunda possível. Tínhamos uma base de mais de cinco mil artigos, começamos a organizar quais realmente eram sobre plástico e quais artigos caíam dentro do critério para ser considerado ingestão desse material. Tinha que estar claro que era plástico e tinha que ter o registro da espécie. E foi assim que chegamos nesses números”, explica o pesquisador.

A velocidade com que estamos transformando os ambientes se reflete inclusive no método de estudo e registro. O número de espécies impactadas, e consequentemente os seus registros em artigos científicos, aumenta a cada mês.

“Se a gente fizer a pesquisa agora, o número aumentou. No próprio processo de revisão, quando entrava na literatura para revisar, já tinha mais quatro espécies que não estavam no meu trabalho”, diz Santos.

Quanto mais se pesquisa, maior é a tendência de crescimento dos números, acredita o professor.

Principalmente porque ambientes terrestres e de água doce ainda são muito pouco explorados se comparados ao ambiente marinho. Quando se trata de ingestão por plástico, e se pensarmos no trajeto que os resíduos fazem, é um ponto importante: são gerados, na sua maioria, no ambiente terrestre, levados por ambientes de água doce (rios) até chegar no oceano. Estudos do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo apontam que pelo menos 80% dos resíduos plásticos que acabam no mar tem origem terrestre.

Já o solo agrícola tem mais partícula plástica do que sedimento marinho, ressalta Santos, mas ainda falta um foco maior da ciência no plástico para entender o problema. “Muitos dos registros terrestres dos artigos não eram sobre plástico, mas sobre alimentação de animais, onde tinha sido encontrado plástico”, explica.

Já o ambiente marinho acumula a maior quantidade de registros de ingestão de plástico, com mais de 1,2 mil espécies registradas, incluindo todas as famílias de mamíferos marinhos e aves marinhas.

Do ponto de visto ecológico, o material está presente praticamente em todos os nós das teias alimentares aquáticas. Por outro lado, o ambiente marinho é o que possui mais dados disponíveis em artigos científicos.

A armadilha evolutiva

Responder por que organismo vivos ingerem plástico é a grande chave do trabalho dos pesquisadores. É onde entra a teoria da armadilha evolutiva – quando há uma alteração antrópica muito rápida no ambiente, gerando sinais que podem ser entendidos erroneamente pelos animais, que evoluíram, aprendendo e se relacionando com esses sinais, ao longo de milhares de anos. Ou seja, a espécie humana interfere de maneira abrupta no ambiente, confundindo os ciclos da vida.

O pesquisador explica a ideia usando o caso do ambiente terrestre. “Ela começa com uma ideia inicial de alteração de habitat – se desmata um pedaço e surge uma área de borda de floresta. Então, os bichos acabam optando por aquele lugar. Só que aquele lugar não é tão bom. Ele emite os sinais de uma coisa boa, mas, quando o animal vai para lá, atraído, tem consequências negativas.” O animal é induzido por uma ideia de que o ambiente pode ser propício para sua sobrevivência.

No contexto do plástico, é mais ou menos a mesma coisa. A história evolutiva dos animais constrói o que eles entendem por alimento, para que não precisem identificar detalhes sobre a alimentação. Assim, para entender que um peixe é um peixe, a baleia não precisa saber que ele tem escama, basta que ele se assemelhe suficientemente para ultrapassar um limite de aceitação. Essa semelhança pode se dar pela forma, cor ou até odor. São os ‘sinais’, como aprendemos na publicação.

Sabe a história da tartaruga que confunde sacola plástica com água viva? Ou da ave marinha que leva para o ninho pequenos fragmentos de tampas? É disso que estamos falando.

“Do ponto de vista evolutivo e biológico, o plástico surge de repente no oceano. De 1950 para cá, temos milhares de toneladas entrando diariamente nos mares”, calcula o pesquisador, lembrando que faz parte da evolução encontrar os sinais possíveis e não custosos, mais fáceis e disponíveis.

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    Lixo plástico no Mar de Sargaços, no Atlântico Norte. A semelhança entre certos itens, que levam séculos para se desfazerem, e potenciais fontes de alimentos de animais é evidente.

    Foto de David Doubilet

    “Existem plásticos de múltiplos usos. Tem plástico rígido, flexível, em forma de fita, em todos os tamanhos, cores e formas. Só que ele se fragmenta também. Isso inevitavelmente emite muitos sinais para os organismos.”

    Outro motivo para a ingestão de lixo proposto no trabalho é o estado nutricional que o animal se encontra. Quanto mais fome, mais risco de ingerir plástico.

    Robson começou a estudar o impacto do plástico na dieta animal em 2010, em sua tese de doutorado. Estudando a ecologia alimentar da tartaruga-verde marinha, na Universidade Federal do Espírito Santo, ele descobriu uma enorme incidência de plástico em animais encontrados mortos.

    “Quando comecei a analisar o conteúdo dos animais encalhados e mortos, era plástico e mais plástico. Se transformou na minha linha de pesquisa”, diz Santos. “O meu doutorado, que seria só sobre ecologia alimentar, acabou sendo um pedaço sobre ecologia alimentar e o resto com dados por poluição por plástico.”

    O embrião do artigo publicado com destaque na Science surgiu ali e se aprimorou com contribuições e a partir da troca de informações com seu então colega de laboratório e coautor do artigo, Ryan Andrades. Gabriel E. Machovsky-Capuska, especialista em nutrição animal, somou-se à dupla em 2019.

    Desarmar a armadilha

    “Não dá para esperar pela evolução e pelo aprendizado dos animais. A gente tem que atuar. Não dá para ser passivo neste ponto”, diz Robson, remetendo à conclusão do artigo. Uma das soluções que podem desarmar essa armadilha “é a redução de entrada de plástico nos ecossistemas. Esse cenário pede um compromisso internacional, com uma mudança que deve incluir soluções pré e pós-consumo guiadas por ciência”, aponta o texto.

    Para o pesquisador, é difícil separar o cientista do cidadão e da pessoa que sabe do problema. Ele conta que, como professor, tem levado para as aulas o senso de urgência e a constatação de que o impacto do plástico é um dos problemas da grave crise ambiental que atravessamos.

    “Não dá mais para enxergar a crise em separado. Tudo está conectado. Tem um nexo causal nas coisas. Tenho me dedicado a impactos antrópicos para tentar passar esse senso de urgência”, diz Santos. “Uma coisa que acho importante sobre o plástico é que ele também pode servir para mobilizar a sociedade, porque é uma coisa que muita gente enxerga e identifica. Talvez a própria divulgação do plástico e as ações em cima dele possam nos ajudar a mover essa máquina e mitigar a nossa crise ambiental.”

    Toda a produção escrita da publicação foi feita no período da pandemia e acabou levando transformações para dentro de casa. “Trago a ciência para vida. Não se publica um trabalho como este, volta para casa e usa descartáveis”, diz Santos, que conta que a família tem inclusive mudado a dieta. “É um processo transformativo.”

    Ele não deixa de apontar, em vários momentos da conversa, a importância e o apoio de sua companheira, a também pesquisadora Louisa Andrade, no processo. “Ela foi a pessoa que mais leu esta publicação”, brinca, ao contar emocionado da importância de ter seu primeiro artigo na revista em meio à dificuldade de fazer ciência no Brasil, à pandemia e com um filho pequeno para cuidar.

    Trazer um ambiente mais justo para todas a espécies, mais limpo de plástico, desmontando as armadilhas desde sua produção e distribuição, impedindo que cheguem nos ambientes, é uma ação que pode engajar todos os elos importantes nesta cadeia. Já temos alguns caminhos e soluções, todas exigem que sociedade, empresas e governos trabalhem juntos nesta meta.

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