Pica-pau icônico está extinto, para a decepção dos pesquisadores que buscaram avistá-lo por décadas

Vista pela última vez em 1944, espécie foi procurada avidamente por cientistas e admiradores por quase 80 anos. Lamentavelmente, animal agora é considerado extinto.

Por Mel White
Publicado 5 de out. de 2021, 11:24 BRT
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O maior arquivo de pica-pau-bico-de-marfim do mundo, pertencente à Universidade de Harvard, possui 60 espécimes capturados por cientistas entre 1869 e 1914. A extinção da espécie foi causada, em grande parte, pela exploração descontrolada de madeira.

Foto de Joël Sartore, National Geographic Photo Ark

O pica-pau-bico-de-marfim, majestosa ave de cor preta e branca, que um dia aninhou em florestas maduras no sudeste dos Estados Unidos e em Cuba, foi visto definitivamente pela última vez no estado de Louisiana, nos Estados Unidos, em 1944. Sem mais registros confiáveis durante todos esses anos, a maioria dos ornitólogos acreditam que a espécie esteja extinta. Na última quarta-feira, o inevitável aconteceu: o Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos anunciou o plano de remover da lista da Lei de Espécies Ameaçadas 22 espécies de animais, incluindo o pica-pau-bico-de-marfim, e uma espécie de planta por já serem consideradas espécies extintas.

É evidente que todas as espécies que constam nessa triste lista representam perdas para a biodiversidade, desde um pequeno peixe, avistado apenas em um único riacho no estado de Ohio, até brilhantes pássaros canoros cujos cantos nunca mais serão escutados nas florestas tropicais do Havaí. Porém, a atração principal — foco de um dos debates ambientais mais acalorados dos últimos tempos — é, sem dúvida, o pica-pau-bico-de-marfim.

Apesar de não constarem avistamentos comprovados após o ano de 1944, incansáveis observadores de pássaros nunca perderam a esperança na sobrevivência do “pássaro do Senhor Deus” e continuaram as buscas pela espécie nas planícies do sul do Texas até a Flórida. Os relatos de avistamento eram frequentes, mas nenhum pôde ser confirmado. Durante a busca, os comuns pica-paus-de-penacho-vermelho podiam facilmente ser confundidos com os pica-paus-bico-de-marfim, pois possuem o mesmo tamanho e são muito parecidos.

Cerca de 20 biólogos e cem voluntários procuraram a ave no leste do Arkansas, de novembro de 2005 a abril de 2006.

Photography by Joël Sartore

Na ocasião, registraram sete avistamentos em um refúgio nacional de vida selvagem no leste do Arkansas em 2004 e 2005, bem como um vídeo altamente pixelizado de quatro segundos, pareciam suficientemente confiáveis para atrair sério interesse de biólogos. Os relatos foram tão verossímeis, que uma equipe de pesquisadores do prestigioso Laboratório Cornell de Ornitologia aceitou como fato científico a improvável ideia de que o pica-pau-bico-de-marfim tivesse, de fato, ressuscitado dos mortos.

O anúncio oficial foi feito em 28 de abril de 2005, em uma cerimônia amplamente divulgada que contou com a presença do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, do Laboratório Cornell, da organização sem fins lucrativos The Nature Conservancy e de diversos políticos e funcionários públicos ansiosos para fazer parte dessa história de êxito ambiental. A surpreendente, para não dizer chocante, redescoberta do pica-pau-bico-de-marfim logo foi designada como a “maior história de conservação do século”. A notícia foi tão divulgada que até mesmo pessoas que não tinham interesse em aves souberam do retorno do pica-pau-bico-de-marfim.

Pica-pau-bico-de-marfim aninhando em 1935 em Singer Tract, no estado de Louisiana.

Foto de Arthur A. Allen, Courtesy Cornell Laboratory Of Ornithology

Ao ouvir a notícia, muitas pessoas desataram a chorar. Para elas, esse acontecimento quase milagroso dava uma esperança de que os humanos não tinham devastado o planeta de maneira irreversível e que a natureza, afinal, ainda poderia se recuperar.

No entanto não faltaram céticos desde o início desse capítulo da saga do pica-pau-bico-de-marfim. Afinal, os registros históricos indicavam que essas aves precisavam de áreas vastas de mata virgem com árvores de grande porte (principalmente árvores mortas) para sobreviver. Contudo os avistamentos iniciais do Arkansas ocorreram em uma faixa relativamente estreita de floresta ao longo de um pequeno ribeiro, cercado por terras agrícolas, a cinco quilômetros de um McDonald’s, postos de gasolina, hotéis e outros estabelecimentos que acabavam sendo armadilhas para a espécie em um cruzamento de uma rodovia interestadual.

Ainda há outra questão: onde estiveram os pica-paus-bico-de-marfim durantes os últimos 60 anos? Por que não houve relato de um único avistamento confiável, fotos ou vídeos dessa grande, chamativa e barulhenta espécie desde 1944? Ninguém entre os entusiastas da ressurreição do pica-pau-bico-de-marfim conseguiu apresentar uma resposta satisfatória.

Quando uma editora da National Geographic me enviou um ­e-mail em 2005 perguntando se eu estava animado com a redescoberta de uma espécie quase mítica a pouco mais de 100 quilômetros da minha casa, eu respondi: “Olá. Não existe mais pica-pau-bico-de-marfim aqui. Isso tudo é um grande engano”. (Pode ser que eu tenha usado uma palavra mais pesada do que “engano”). Chegando no auge do delírio do pica-pau-bico-de-marfim, quando parecia que o mundo todo havia se unido para celebrar o redescobrimento da espécie, minha declaração categórica a surpreendeu — e logo depois eu escrevi um artigo sobre o pica-pau-bico-de-marfim para a National Geographic.

Veja, eu já estava fazendo parte da redescoberta (ou da não redescoberta) do pica-pau-bico-de-marfim, quase desde o início. Como observador de aves de longa data no Arkansas, fui convidado para uma reunião sigilosa em 2004, na cidade de Little Rock, na qual representantes da Cornell, da The Nature Conservancy e de outros grupos traçaram planos para a busca do pica-pau-bico-de-marfim e para lidar com a inevitável publicidade e com a grande concentração de observadores de aves fanáticos atraídos pela divulgação da notícia dos avistamentos.

A gravura colorida à mão de um pica-pau-bico-de-marfim, do ilustrador Mark Catesby, apareceu pela primeira vez em seu livro “The natural history of Carolina, Florida, and the Bahama Islands” (A História Natural da Carolina do Norte e do Sul, da Flórida e das Ilhas Bahamas”, em tradução livre) no século 18.

Foto de Photography by David Tipling Photo Library / Alamy Stock Photo

Fiz parte da equipe de busca que vasculhou o Refúgio Nacional de Vida Selvagem de White River e suas planícies em busca do pica-pau-bico-de-marfim. Vaguei com os pesquisadores da Cornell pela pequena cidade de Brinkley, no Arkansas, onde contamos várias mentiras para explicar a presença de tantos visitantes com sotaque do norte (que estávamos “procurando uma coruja rara”, foi uma dessas histórias inventadas). Assim que recebi a tarefa do artigo para a National Geographic, entrevistei dezenas de cientistas, funcionários do governo, pesquisadores voluntários e especialistas sobre a identificação da ave, sendo céticos ou não. Desde o início, fui um cético; depois de ouvir as evidências, me tornei um ateu do pica-pau-bico-de-marfim.

Observei a divisão do mundo dos observadores de aves entre crentes e céticos, e vi o antagonismo aumentar. Kenn Kaufman, um dos observadores de aves mais respeitados do país, assistiu ao infame vídeo de quatro segundos que foi aceito como a prova do avistamento de um pica-pau-bico-de-marfim e avaliou o animal do vídeo como um pica-pau-de-penacho-vermelho, filmado pelo ângulo de baixo para cima, voando. Kaufman, um sujeito muito bacana, logo entendeu o que significa ser um cético. “Algumas pessoas chegaram a gritar comigo, furiosas, dizendo que eu era um comunista, ou coisas desse tipo, por ousar questionar essa grande notícia”, me contou na ocasião.

David Sibley, outro especialista na identificação de aves e, como Kaufman, autor de guias de campo de aves, ficou inicialmente intrigado, mas logo “deu uma nova olhada nas evidências e percebeu como eram insuficientes”. Como diversos outros céticos, ele acabou publicando seus questionamentos sobre a descoberta do pica-pau-bico-de-marfim, mas comentou que “era difícil encontrar a melhor maneira de apresentar essas informações, pois estaria anunciando que a história sobre aves considerada a mais alegre por muitas pessoas pode ser falsa. Não existe um jeito fácil de fazer isso”.

Embora Sibley tenha dito que não perdeu nenhum amigo por causa da divisão entre crentes e céticos, muitas pessoas perderam. As discussões em periódicos se tornaram angustiantes. A ética e o senso crítico de acadêmicos muito respeitados foram questionados em artigos concorrentes com um tom que se costuma ler em notícias sensacionalistas nas bancas de jornal. Como é comum acontecer, depois de se posicionarem, poucas pessoas tiveram a humildade de reconsiderar suas posições.

A National Geographic designou seu explorador Joel Sartore, fotógrafo ambiental, para capturar imagens sobre a história do pica-pau-bico-de-marfim. Apropriadamente, suponho, ele acreditava que o pica-pau-bico-de-marfim não estivesse extinto e trabalhou incansavelmente nos pântanos do Arkansas durante semanas para obter a foto perfeita que provaria de uma vez por todas que os pica-paus-bico-de-marfim ainda voavam entre os ciprestes calvos de mil anos, cantando e se alimentando de grandes larvas. Eu admirava sua dedicação, mas não compartilhava de sua fé. Os editores pressionaram o fotógrafo para que o artigo sobre o pica-pau-bico-de-marfim fosse publicado o mais rápido possível enquanto a história ainda estava fresca; Sartore pediu que a publicação fosse adiada em um ano para que ele pudesse trabalhar na próxima temporada de nidificação. Mas os editores publicaram o artigo e a história correu com uma esplêndida seleção de fotografias que evocou o espírito da busca e do habitat onde ocorreu. Mas quanto ao pássaro, o resultado foi apenas uma lista impressionante, embora um tanto horripilante, de mais de 60 espécimes marcados do arquivo da Universidade de Harvard.

O espécime de pica-pau-bico-de-marfim foi coletado por volta de 1900 e faz parte da coleção da Universidade do Estado de Nebraska.

Photography by Joël Sartore, National Geographic Photo Ark

Entre os maiores céticos estavam alguns dos funcionários do Refúgio Nacional da Vida Selvagem de White River, que administra as terras onde muitas das buscas pelo pica-pau-bico-de-marfim ocorreram. Pessoas muito experientes em atividades ao ar livre, que passaram décadas explorando as planícies, foram informadas por especialistas de fora que, durante todos aqueles anos, de alguma forma, eles haviam deixado escapar a oportunidade de avistar uma ave barulhenta e chamativa na floresta. Eu não os culpei por ficarem irritados com isso. Mas eles foram obrigados a seguir o posicionamento do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, que havia oficialmente endossado a redescoberta e participado do anúncio formal. “A Cornell caiu nessa e agora todos nós estamos pagando o pato”, me disse um funcionário do Refúgio Nacional da Vida Selvagem de White River.

Mas aqui estamos, 16 anos depois, e nenhum de nós viu um único pica-pau-bico-de-marfim desde aqueles relatórios iniciais. E o Serviço de Pesca e Vida Selvagem, o órgão dos Estados Unidos que delibera sobre esses assuntos, declarou oficialmente que o pica-pau-bico-de-marfim está extinto — assim como o dodô ou o Tiranossauro rex. Na verdade, seu comunicado à imprensa afirma que o último avistamento confirmado foi em 1944, o que significa que eles agora rejeitaram os avistamentos de 2004 e 2005 no leste do Arkansas, então muitas pessoas vão alegar que todo o falatório foi exagero.

Mas não foi. Se formos conscientes o suficiente, a extinção do pica-pau-bico-de-marfim pode nos ensinar algo. O comunicado de imprensa dessa semana também declara a importância de conservar as espécies “antes que a diminuição do número de indivíduos se torne irreversível”. Isso significa proteger ecossistemas inteiros, não se concentrando apenas em uma única espécie, seja um urso-pardo ou um minúsculo caracol. Proteger um riacho apenas para salvar uma espécie de peixe é insuficiente e pode causar problemas ambientais em pequena escala. Proteger o ecossistema maior que envolve esse riacho poderia salvar os peixes, bem como os habitats de muitas outras espécies.

Cada uma das 23 espécies declaradas extintas nessa semana tinha seus próprios requisitos para conseguirem sobreviver e, em algum momento, a cadeia de sobrevivência falhou. O pica-pau-bico-de-marfim provavelmente recebeu sua sentença no início do século 20, quando as antigas florestas do sul dos Estados Unidos estavam sendo derrubadas em larga escala para que as madeireiras pudessem operar suas fábricas. Mesmo que houvesse uma Lei de Espécies Ameaçadas na década de 1920, teria sido tarde demais para uma espécie de ave que precisava contar com uma área de aproximadamente 15 a 44 quilômetros quadrados de floresta madura por casal de nidificação. Simplesmente não havia floresta suficiente para o pica-pau-bico-de-marfim sobreviver.

É improvável que as florestas do sul, extensas o suficiente para comportar populações sustentáveis de pica-pau-bico-de-marfim, pudessem ter sido protegidas em meio ao desenvolvimento dos Estados Unidos no final do século 19 e no início do século 20, quando a natureza era vista como algo a ser subjugado. Mas, graças à consciência ambiental e à conservação moderna, ainda temos florestas hoje, da Bacia Atchafalaya da Louisiana ao Pântano Big Cypress, na Flórida. Elas são o lar de ursos-negros, panteras, águias, crocodilos e inúmeras outras espécies — mas com a extinção do pica-pau-bico-de-marfim, há um vazio na floresta que nunca mais será preenchido.

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