Os caminhos de Che Guevara na Bolívia, 50 anos depois

O fotógrafo da National Geographic Izan Petterle viajou à Bolívia para acompanhar mais um capítulo da construção de um mito.

Por Izan Petterle
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Publicado 24 de nov. de 2017, 15:31 BRST, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
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Entre novembro de 1966 e outubro de 1967, Che Guevara esteve na Bolívia para tentar repetir o sucesso da revolução em Cuba. O projeto fracassou depois que Che foi fuzilado, mas o personagem mítico do guerrilheiro sobrevive.
Foto de Izan Petterle

Às 13:10 em 9 de outubro de 1967, há 50 anos, o sargento do exército boliviano Mario Téran apertou o gatilho de seu rifle semiautomático e executou Che Guevara em La Higuera, na região de Vallegrande, na Bolívia.

Pouco tempo depois, um retrato de Che tirado por Albert Korda em 1960, mas que circulava apenas em Havana, começou a ganhar fama no mundo inteiro. Versões apareceram nas demonstrações estudantis de Maio de 1968, em Paris, em uma obra de arte falsamente atribuída a Andy Warhol cuja autoria até hoje é desconhecida e em um cartaz que promovia os Diarios in Bolivia, versão italiana dos Diários de Che na Bolívia publicado originalmente em Cuba.

Boliviano se veste de Che Guevara em Vallegrande.
Foto de Izan Petterle

Assim, antes mesmo da década de 1960 acabar, a icônica imagem do guerrilheiro de esquerda com olhar destemido já tinha alçado Che à categoria de herói para muitos jovens revolucionários. Entre eles, o fotógrafo Izan Petterle, nascido em 1956, que rapidamente colocou o guerrilheiro argentino no seu rol de ídolos, ao lado de Jim Morrison, Janis Joplin e Jimmy Hendrix.

Nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul, há 300 km de Rosário, cidade natal de Che, Izan abraçou o personagem histórico. Em 2007, no cinquentenário da Revolução Cubana, o fotógrafo embarcou para Havana com o amigo escritor Frans Glissenaar. Já críticos do regime e disfarçados de professor de história holandês e fotógrafo assistente amador, os dois refizeram os caminhos que Che documentou no seu diário Passagens da Guerra Revolucionária – resultado do que escreveu durante a campanha revolucionária em Cuba, desde o desembarque do Granma na Playa los Coloradas até a chegada triunfal em Havana. A aventura do jornalista holandês e do fotógrafo gaúcho foi publicada no livro Cuba de Che – 50 anos depois da Revolução.

Agora, no cinquentenário da morte de Che Guevara, Izan viajou até a região de Vallegrande, onde Che foi fuzilado, para acompanhar mais um capítulo da construção de um mito. Dessa vez, o fotógrafo percorreu os caminhos descritos no diário que o guerrilheiro escreveu na Bolívia. O resultado é outro diário, o de um "tchê" gaúcho atrás do Che argentino.

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    4 de outubro de 2017

    Antes de amanhecer, pego uma carona de carro de Cuiabá até Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. Vou a convite de uma gentil família boliviano-brasileira, o casal Roberto e Elisete Hurtado e o filho Robertito. Decidi viajar ontem. É uma viagem improvável, sem planejamento, a mercê das forças do inesperado. Meu objetivo é refazer os caminhos de Che durante o cinquentenário de sua morte na Bolívia. Faltam poucos dias para os eventos em Valle Grande, onde seu corpo foi exposto, e em La Higuera, onde foi executado.

    O Diário de Che na Bolívia, escrito pelo guerrilheiro, é meu guia. Ainda na bela estrada, a caminho da Bolívia, e inspirado pelas conversas com Roberto e Elisete, decidi focar no Che lendário – no mito que nasce após sua morte. Quero retratar o Che criado pelo imaginário das pessoas, especialmente em terras latino-americanas, onde a imagem crística de seu cadáver ajudou a criar o mito que ainda sobrevive.

    5 de outubro

    Acordo de madrugada apreensivo em relação a organização da viagem para Valle Grande. Entro em contato com dois amigos fotógrafos que vivem em Santa Cruz, Edmond Sanchez e Eduardo Diaz. Juntos, alugamos uma pick-up 4x4 – sabíamos que os caminhos seriam difíceis. Partimos em direção a Samaipata, onde uma coluna de Che invadiu a cidade em busca de medicamentos para o líder guerrilheiro, que estava acampado perto do povoado, nos contrafortes orientais da cordilheira dos Andes. Depois da primeira sessão de fotos em busca de Che, passamos a noite nessa pequena vila, linda e boêmia, hospedados na casa de um casal de amigos, Giovanni Guidetti e Sandra Serrate.

     

    Carlos Giacomam tinha 22 anos quando encontrou Che Guevara em Samaipata. O guerrilheiro passou pela cidade para buscar medicamentos.
    Foto de Izan Petterle

    6 de outubro 

    Partimos cedo em direção a Valle Grande, cidade onde o corpo de Che foi exposto, na lavanderia do Hospital Señor de Malta. Junto com o pequeno povoado de La Higuera, esse será o epicentro das atividades das comemorações do cinquentenário. Nos instalamos em uma hospedaria e saímos para visitar a famosa lavanderia e fotografar o cenário. Logo após o almoço, fomos para La Higuera.

    A enfermeira Suzana Osinaga Robles lavou o cadáver de Che Guevara em La Higuera, antes de ser exposto na lavanderia do Hospital Señor de Malta.
    Foto de Izan Petterle

    A estrada de terra que liga Valle Grande a La Higuera serpenteia montanhas com 3 mil metros de altitude, e proporciona visões tirar o fôlego – é certamente um dos lugares mais lindos do mundo.

    7 de outubro

    De volta a Valle Grande, reservei o dia para fotografar a cidade, o memorial de Che e revisitar o Hospital Señor de Malta. Por causa de Che, Valle Grande é uma cidade turística. Tem variedade cultural e arquitetônica e fica em uma região com grande produção de alimentos. O mercado público é excelente, pode-se comer as deliciosas salteñas acompanhadas de chá de coca, ótimo para aliviar o desconforto causado pelo sorochi, o mal da altitude.

    Quadro de Che Guevara adorna restaurante em Vallegrande. Foto originalmente publicada em "Os caminhos de Che Guevara na Bolívia, 50 anos depois" em dezembro de 2017.
    Foto de Izan Petterle

    8 de outubro – Che é capturado

    Acordamos 4h30 e partimos para La Higuera, desta vez passando por Pucará, onde os batalhões que caçavam Che estavam baseados. Ainda estávamos no alto das montanhas quando o dia nasceu, um espetáculo indescritível. Chegando em Pucará, fomos aconselhados a adiantar viagem para La Higuera. Assim, chegaríamos antes das multidões que peregrinam a essa espécie de santuário da esquerda latino-americana. Algumas horas depois, o helicóptero presidencial aterrissa a alguns quilômetros de onde estávamos. Decidi caminhar na estrada de terra para ver se encontrava o presidente para fotografá-lo. Para minha surpresa, depois de andar uns 1,5 km, logo após uma curva, vejo uma multidão liderada por Evo Morales. Eles entoavam palavras de ordem contra o “imperialismo ianque” e portavam bandeiras dos mais diversos movimentos sociais. Com a ajuda do meu crachá de imprensa internacional, fiquei cara a cara com o presidente. Talvez também por estar “uniformizado” – com roupa camuflada e portando somente um iPhone – pude, caminhando de costas por mais de um quilômetro, fotografar e filmar Evo e seus seguidores a uma distância de no máximo quatro metros. Deve ter sido o dia mais movimentado da história de La Higuera. Milhares de pessoas, vindas de muitas partes do mundo, fizeram uma romaria para reverenciar o personagem Che Guevara, um dos maiores ícones da rebeldia juvenil e da esquerda latino-americana. 

    Como parte das celebrações do cinquentenário da morte do Che, o presidente boliviano, Evo Morales, liderou uma marcha anti-imperialista até La Higuera.
    Foto de Izan Petterle

    9 de outubro – Che é executado

    Valle Grande amanheceu com as festividades oficiais. Aproveitei para fotografar um pouco dos aspectos arquitetônicos e humanos da cidade.

    Antes conhecida como Jesús y Montes Claros de los Caballeros, a pequena vila fundada em 1612 escondeu, em vala comum, os restos mortais de Che por quase 30 anos. Em 1997, seu corpo foi encontrado e enviado a Cuba.

    10 de outubro

    Partimos de Valle Grande de manhã, teríamos que atravessar uma parte alta da cordilheira e depois descermos bruscamente rumo ao Vale do Rio Grande e seus afluentes afim de alcançar a primeira parada, em Masicuri, pequeno povoado onde guerrilheiros e forças do governo duelaram. Depois, seguimos até o povoado de Vado del Yeso, onde uma coluna de Che, comandada por Joaquim e sua companheira Tania, uma guerrilheira teuto-argentina, foi dizimada com rajadas de metralhadora quando cruzava o rio Grande.

    No rio Grande, uma coluna de Che – liderada por Joaquin e sua companheira Tania, uma guerrilheira teuto-argentina – foi dizimada com rajadas de metralhadora pelo exército boliviano.
    Foto de Izan Petterle

    Às margens do rio Grande, encontramos os restos da casa do campesino Honorato Rojas, que aconselhou os guerrilheiros a cruzarem o rio naquele local. Honorato os traiu, e avisou as forças bolivianas sobre a travessia. 

    Depois, rumamos para Camiri, onde ficava a base das forças policiais que investigaram e combateram Che e seus companheiros. Elas que obrigaram o grupo a deixar o acampamento em Ñancahuazú e partir em direção norte, decisão que se mostraria fatal.

    11 de outubro 

    De Camiri, partimos em direção a Lagunillas, onde Che montou a base de treinamento de guerrilheiros. Eles escolheram um lugar remoto, na zona rural do município, e compraram uma fazenda às margens do rio Ñancahuazú. Vindo de carro de La Paz, Che chega na propriedade em 7 de novembro de 1966 para dar início a sua saga em território boliviano. Aqui construíram a famosa casa Calamina. Formado principalmente por bolivianos e cubanos, o grupo liderado por Che Guevara é hoje conhecido por Guerrilha de Ñancahuazú, graças ao rio que margeava sua base.

    13 de outubro

    De volta a Santa Cruz de la Sierra, fui conhecer a Avenida Che Guevara, local de comércio popular na periferia da cidade de quase 2 milhões de habitantes. Che perambulou pelo local em sua primeira viagem de reconhecimento à Bolívia.

    Açougue na cidade de Lagunillas, próximo à fazenda que serviu de base do Che Guevara na Bolívia.
    Foto de Izan Petterle

    14 de outubro

    Fui conhecer La Esperanza, um antigo engenho de açúcar onde agentes norte-americanos da CIA teriam treinado as forças especiais bolivianas que derrotaram, capturaram e executaram Che Guevara.

    15 de outubro de 2017

    O pelotão que capturou Ernesto Che Guevara era liderado pelo capitão Gary Prado Salmón. Eu precisava conversar com ele. Com ajuda de um amigo, Walter Guzman Ferrel, seu genro, consegui uma entrevista. Ele foi enfático, disse que esta seria sua última entrevista, não queria mais alimentar o mito.

    O capitão Gary Prado comandou o batalhão que capturou Che Guevara. Ele recebeu e encaminhou ordens superiores para executar o guerrilheiro argentino.
    Foto de Izan Petterle

    O ex-capitão me pareceu um homem tranquilo, em paz com sua consciência. Ele contou-nos do momento da captura, quando lhe foi apresentado dois guerrilheiros – estavam irreconhecíveis, eram verdadeiros farrapos humanos. “Cheguei e os perguntei: ‘Quem são vocês?’”, disse o capitão. “Um disse Willy, e eu soube que era Simeón Cuba, boliviano. ‘E você?’, perguntei, ‘Sou o Che Guevara’. Olhei e pedi para que mostrasse sua mão direita, onde tinha uma cicatriz. ‘Eu valho mais vivo do que morto’. Via-se um homem derrotado, no fim de sua aventura.”

    Perguntei qual a lição que ele tirava da experiência, 50 anos depois do episódio. “A primeira coisa que precisamos aceitar é o respeito a vontade das maiorias e o direito das minorias de se rebelar”, disse Prado. “No ordenamento jurídico, há razões para se preferir a vida democrática à luta armada.

    A Quebrada de Ñancahuazú foi onde, em novembro de 1966, Che Guevara montou o primeiro acampamento e centro de treinamento de guerrilheiros na Bolívia.
    Foto de Izan Petterle

    Izan Petterle é fotógrafo baseado em Cuiabá, no Mato Grosso. Já publicou os livros Caubóis do PantanalCuba de Che: 50 anos depois da revolução. Para esta reportagem – e para capturar a espontaneidade do povo boliviano – escolheu utilizar uma câmera compacta, a de um iPhone 7 Plus. Conheça mais do seu trabalho no Instagram.

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