O Mediterrâneo quase secou, mas foi salvo por um dilúvio

Novas evidências reacendem um longo debate sobre como o mar se reconectou ao oceano.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 19 de mar. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
A única conexão do mar Mediterrâneo com os oceanos do mundo se dá por uma estreita ...
A única conexão do mar Mediterrâneo com os oceanos do mundo se dá por uma estreita faixa de água entre a Europa e a África conhecida como Estreito de Gibraltar, mostrada nesta imagem feita pela Estação Espacial Internacional.
Foto de NASA

AS ÁGUAS SERENAS DE COR AZUL-TURQUESA do mar Mediterrâneo escondem um segredo de sabor acentuado: uma camada de sal de até três quilômetros de espessura, escondida nas profundezas da bacia. Os minerais brancos são um dos poucos vestígios de um antigo mar Mediterrâneo que desapareceu milhões de anos atrás. Alguns cientistas acreditam que o mar inteiro evaporou por um tempo e secou como o Saara ao sul.

Mesmo depois de décadas de estudo, os detalhes sobre o desaparecimento do mar e sobre as torrentes de água que reabasteceram a bacia ainda permanecem um mistério. O reabastecimento do Mediterrâneo cerca de cinco milhões de anos atrás pode ter sido a maior inundação da história do planeta. Segundo uma estimativa, a cascata de água que inundou a bacia de aspecto cavernoso era cerca de 500 vezes maior do que a vazão do rio Amazonas.

“Foi algo espantoso”, diz Daniel García-Castellanos, do Instituto de Ciências da Terra Jaume Almera, na Espanha. Em uma recente análise publicada na revista científica Earth-Science Reviews, García-Castellanos e sua equipe identificaram um bolsão de sedimentos que pode ter sido depositado pela megainundação.

Sem essa reconexão cataclísmica com o oceano Atlântico, o Mediterrâneo, na forma em que conhecemos hoje, não existiria. Navios não teriam conseguido atravessar a via navegável para alimentar as ricas culturas que pontilham sua orla desde os primórdios da civilização humana. E hoje, o mar Mediterrâneo exerce um papel vital para a circulação global da água. A evaporação infunde suas águas com uma dose extra de sal; essas águas deságuam no Atlântico e ajudam a acionar movimentos oceânicos que percorrem o mundo todo, influenciando temperaturas, padrões de tempestades e muito mais.

À medida que as temperaturas modernas continuam subindo e as calotas polares diminuem, é “muito importante” descobrir quais processos levaram à formação do planeta que conhecemos hoje, diz Rachel Flecker, geóloga da Universidade de Bristol.

A maior inundação de todos os tempos

Hoje, os milhões de quilômetros cúbicos de água do mar Mediterrâneo evaporam constantemente e cerca de um metro e meio de água se transforma em vapor todos os anos. Chuvas e rios não são suficientes para abastecer o sistema. A única fonte de água que mantém o corpo estável é um fluxo constante proveniente do vizinho Atlântico, que flui por um canal entre a Espanha e o Marrocos, o Estreito de Gibraltar.

Há milhões de anos, mudanças tectônicas nas profundezas podem ter forçado a superfície para cima, impedindo a vital conexão entre o Mediterrâneo e o Atlântico. É provável que as águas tenham continuado a fluir para a bacia, mas a mudança teria interrompido a rota de fuga de correntes salinas densas que se movimentavam no leito da bacia até atingirem o oceano aberto. Há cerca de seis milhões de anos, os sais começaram a se acumular — o suficiente para dar a cada um dos 7,7 bilhões de pessoas no mundo cerca de 50 Grandes Pirâmides de Gizé preenchidas com o mineral.

Alguns pesquisadores sugerem que a região quase secou antes de ser inundada, deixando uma bacia de aspecto cavernoso mergulhada mais de um quilômetro e meio abaixo do nível atual do mar. Tudo o que havia entre a bacia vazia e o poderoso Atlântico pode ter sido um acanhado pedaço de terra onde hoje está localizado o Estreito de Gibraltar (embora a largura exata dessa antiga ponte ainda permaneça desconhecida).

Cerca de 5,3 milhões de anos atrás, uma inundação de enormes proporções invadiu a divisão e reconectou o mar com o oceano. Mas, assim como a questão da estiagem do Mediterrâneo é discutida, o mesmo ocorre em relação à dimensão da inundação. Com poucas evidências disponíveis, García-Castellanos e sua equipe se perguntavam a que velocidade a bacia vazia do Mediterrâneo poderia ser reabastecida. O fenômeno provavelmente começou com um gotejamento na barragem natural que conecta a Europa moderna à África, de acordo com modelos de um estudo de 2009. Mas a erosão rapidamente tomou conta. “O processo se torna irreversível muito rapidamente”, diz García-Castellanos.

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À medida que a água subia, um caminho mais profundo se abria, permitindo a passagem de ainda mais água. No auge, o fluxo pode ter jorrado 100 milhões de metros cúbicos por segundo, enchendo o mar em dois anos ou menos. Tal evento teria gerado o equivalente a pelo menos 400 milhões de piscinas olímpicas cheias de sedimentos, abrindo um canal através do Estreito de Gibraltar e esculpindo um desfiladeiro que se estende até o fundo do mar.

“É como a água que sai de uma mangueira dos bombeiros”, diz William Ryan, geólogo marinho da Universidade de Columbia que participou dos primeiros trabalhos de identificação dos depósitos de sal no Mediterrâneo.

O evento cataclísmico transformou toda a região, movimentando não apenas água, mas removendo pedaços de rocha, areia e qualquer outra coisa que estivesse no caminho. “Quando se trata desse nível de força, os sedimentos não são movimentados como pequenos grãos sobre o leito. Tudo fica em um estado caótico e extremamente turbulento”, diz Victor Baker, geólogo da Universidade do Arizona e especialista em grandes inundações.

Desvendando um mistério pré-histórico

Os geólogos do século 19 não acreditavam que inundações dessa magnitude seriam possíveis. Eles precisavam de evidências coletadas em processos modernos para comprovar a possibilidade de ocorrência de um evento antigo. “O problema é que inundações de enormes proporções são raras”, diz Baker. Assim como o impacto catastrófico do asteroide de Chicxulub que mudou para sempre a vida na Terra, as megainundações não acontecem todos os anos — ou nem mesmo a cada um milhão de anos.

Os cientistas começaram a investigar a história do Mediterrâneo já na década de 1950, quando encontraram depósitos de sal na orla, sugerindo um mar antigo particularmente salgado. Na década de 1970, pesquisadores a bordo do Glomar Challenger perfuraram o leito do mar e conseguiram, finalmente, visualizar resíduos de sal provenientes desse tumultuado período da história do mar.

Incorporados às camadas superiores de sal, foram encontrados trechos com características que se assemelhavam à superfície rachada de um pântano após ter secado ao sol — um indício de que o local nem sempre esteve preenchido com água, diz Ryan. Mas questões como a quantidade exata de água que desapareceu do Mediterrâneo e por quanto tempo a bacia ficou seca ainda precisam ser respondidas.

Ao longo dos anos, diversos pesquisadores mergulharam nessas águas intrigantes e, à medida que mais evidências se acumulam, mais complexa fica a situação. Em toda a bacia, podem ser encontrados fósseis de criaturas que apontam para um Mediterrâneo quase repleto de água pouco antes de se reconectar ao Atlântico, diz Wout Krijgsman, geólogo da Universidade de Utrecht, na Holanda. Talvez antes da inundação a região não fosse um deserto, mas um mar de pequenas proporções.

Uma das principais perguntas que García-Castellanos e outros tentam responder é: para onde foram todos os sedimentos? Estima-se que mil quilômetros cúbicos de sedimentos teriam se espalhado pela bacia do Mediterrâneo, acumulados em bolsões onde o fluxo de água era baixo. Mas os sedimentos, depositados muito antes de as pessoas chegarem na região pela primeira vez, agora estão enterrados sob o leito do mar.

Para encontrar as pistas pré-históricas, os pesquisadores utilizam um método semelhante a um ultrassom geológico, enviando vibrações sísmicas de um barco para o fundo do Mediterrâneo e medindo os ecos. Um bolsão de rochas e areia, possivelmente depositado pelo dilúvio, foi descoberto logo a leste da fronteira que divide as bacias ocidental e oriental. E, analisando dados sísmicos antigos, García-Castellanos e seus colegas acreditam ter encontrado outro depósito de sedimentos que assume o formato de uma cauda rochosa, localizado atrás de um vulcão submarino. Embora os bolsões de sedimentos sejam descobertas intrigantes, não foram coletadas amostras desses materiais; portanto os cientistas não sabem exatamente quando se formaram, explica Flecker.

No entanto as respostas podem surgir em breve. Flecker e outros pesquisadores pretendem perfurar vários pontos do Mediterrâneo em busca de mais pistas sobre esses momentos importantes do passado geológico da região.

“A perfuração pode ter um grande impacto positivo, pois poderá revelar o que realmente aconteceu e como aconteceu”, afirma Ryan.

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