China promove uso de bile de urso como tratamento contra o coronavírus

A Comissão Nacional de Saúde da China publicou uma lista de tratamentos recomendados, incluindo injeções que contêm pó de bile do animal.

Por Rachel Fobar
Publicado 7 de abr. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Em fazendas de ursos na China e no sudeste da Ásia, a bile utilizada na medicina ...

Em fazendas de ursos na China e no sudeste da Ásia, a bile utilizada na medicina tradicional é extraída pela inserção de um cateter, seringa ou tubo na vesícula biliar dos animais — um processo invasivo e doloroso. Este urso-negro-asiático em um cercado no Centro de Resgate de Ursos, no Vietnã, foi um dos mais de mil ursos resgatados de fazendas ilegais de extração de bile no país em 2017.

Foto de Roberto Schmidt, AFP, Getty

Menos de um mês após tomar medidas para banir permanentemente o comércio e uso de animais silvestres vivos para alimentação, o governo chinês recomendou o uso de Tan Re Qing, uma injeção contendo bile de urso, para tratar casos graves e críticos de Covid-19. Esse medicamento é um dos diversos tratamentos — tradicionais e ocidentais — recomendados contra o coronavírus, incluídos em uma lista publicada em 4 de março pela Comissão Nacional de Saúde da China, o órgão governamental responsável pela política nacional de saúde. Essa recomendação destaca uma abordagem em relação à vida selvagem que ativistas dizem ser contraditória: por um lado, banir o comércio de animais vivos para alimentação; mas, por outro, promover o comércio de partes desses animais.

Secretada pelo fígado e armazenada na vesícula biliar, a bile de várias espécies de ursos, incluindo ursos-negros-asiáticos e ursos-pardos, tem sido usada na medicina tradicional chinesa desde pelo menos o século 8. A substância contém altos níveis de ácido ursodesoxicólico, também conhecido como ursodiol, que é clinicamente comprovado por ajudar a dissolver cálculos biliares e tratar doenças hepáticas. O ácido ursodesoxicólico está disponível como uma droga sintética em todo o mundo há décadas.

A Organização Mundial da Saúde diz que não existe cura para a Covid-19, embora alguns medicamentos, como analgésicos e xaropes para a tosse, possam tratar os sintomas associados à doença.

Os praticantes da medicina tradicional chinesa geralmente usam Tan Re Qing para tratar bronquite e infecções do trato respiratório superior. Clifford Steer, professor da Universidade de Minnesota, em Minneapolis, estudou os benefícios clínicos do ácido ursodesoxicólico. De acordo com ele, não há evidências de que a bile de urso seja um tratamento eficaz contra o novo coronavírus. Contudo ele afirma que o ácido ursodesoxicólico é diferente de outros ácidos biliares em sua capacidade de manter as células vivas e pode aliviar os sintomas da Covid-19 devido às suas propriedades anti-inflamatórias e capacidade de amenizar a resposta imune.

Promulgada em 1989, a lei chinesa de proteção da vida selvagem considera os animais silvestres como um recurso a ser utilizado para o benefício dos humanos. Em 2016, foi alterada para legitimar ainda mais o uso comercial da vida selvagem, afirmando explicitamente que os animais podem ser usados para a medicina tradicional chinesa, escreveu Peter Li, especialista em políticas chinesas da Humane Society International.

O governo da China recomendou tratar casos graves e críticos de Covid-19 com uma injeção contendo pó de bile de urso. Não há evidências que comprovem que a substância seja eficaz contra a doença.

Foto de Str, AFP, Getty

Embora o uso de bile de ursos criados em cativeiro seja legalizado na China, a bile de ursos selvagens é proibida, assim como a importação de bile de urso de outros países. De acordo com Aron White, ativista dos direitos dos animais silvestres na Agência de Investigação Ambiental (EIA) — uma organização sem fins lucrativos sediada em Londres, na Inglaterra, que expõe crimes contra a vida selvagem —, sua organização ficou sabendo das recomendações do governo chinês sobre o tratamento da Covid-19 por meio de publicações de comerciantes ilegais nas redes sociais.

 “Percebemos como a recomendação do governo estava sendo utilizada pelos contrabandistas para anunciar seus produtos ilegais como tratamento”, afirma White. Bile de ursos selvagens é produzida ilegalmente na China, diz ele, e também é importada do Laos, Vietnã e Coréia do Norte de ursos selvagens e ursos em cativeiro. O comércio ilegal persiste, embora os ursos-negros asiáticos, uma das espécies mais cultivadas para extração da bile, sejam protegidos do comércio internacional pela Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Flora e Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção, que regulamenta o comércio transfronteiriço de animais silvestres e produtos provenientes desses animais.

Defensores da vida selvagem temem que o uso, recomendado pela China, das injeções de Tan Re Qing, que contêm pó de chifre de cabra e extratos de várias plantas além do pó de bile, aumente o comércio de produtos ilegais da vida selvagem e justifique o abuso de animais. “Há uma grande preferência entre os consumidores pelo produto selvagem, que geralmente é considerado mais poderoso ou ‘autêntico’”, explica White. “Portanto a regulamentação do mercado de animais em cativeiro não reduz a pressão sobre as populações selvagens — na verdade, apenas mantém a demanda que impulsiona a caça furtiva.”

Nas fazendas de extração de bile de urso na China e no sudeste da Ásia, os animais podem ser mantidos por décadas em pequenas gaiolas. A bile é rotineiramente extraída inserindo-se um cateter, seringa ou tubo na vesícula biliar. Todos os métodos para extrair bile são invasivos e “causam sofrimento, dor e infecções”, de acordo com a Animals Asia, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao fim da criação de ursos para extração da bile. Negligência e doenças são comuns nessas fazendas e os consumidores correm o risco de ingerir bile de ursos doentes, que pode estar contaminada com sangue, fezes, pus, urina e bactérias, de acordo com a Animals Asia.

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    Processo de extração da bile da vesícula biliar de um urso-negro-asiático sedado. Como doenças são comuns nas fazendas de extração de bile de urso, de acordo com a organização sem fins lucrativos Animals Asia, a bile de animais doentes pode estar contaminada com sangue, fezes, pus, urina e bactérias que podem ameaçar a saúde humana.

    Foto de Mark Leong, Nat Geo Image Collection

    Outro medicamento tradicional na lista aprovada da Comissão Nacional de Saúde que poderia ter sua demanda aumentada para uso contra a Covid-19 é um comprimido chamado Angong Niuhuang Wan. Utilizado para tratar a febre e diversas doenças, tradicionalmente contém chifre de rinoceronte, cujo comércio é rigorosamente proibido em todo o mundo. Segundo as leis chinesas, os comprimidos devem conter chifre de búfalo, explica White, mas alguns comerciantes continuam vendendo comprimidos que contêm chifre de rinoceronte.

    A divulgação das injeções de Tan Re Qing e de outros tratamentos à base de produtos de animais silvestres em um momento em que Pequim parece ter a intenção de banir o comércio de animais silvestres vivos do país “realmente demonstra as mensagens contraditórias da China no momento”, afirma White.

    Mas na China, a medicina tradicional, que em geral utiliza plantas, é praticada há milhares de anos e foi a principal forma de assistência médica até o início dos anos 1900, quando o último imperador da dinastia Qing foi derrotado por um médico de formação ocidental. Os tratamentos tradicionais são frequentemente endossados pelo governo como um pilar da cultura chinesa e, em 2018, a Organização Mundial da Saúde incluiu diagnósticos da medicina tradicional em seu compêndio médico. Durante a pandemia de coronavírus, as autoridades enfatizaram seu uso e 85% dos pacientes com Covid-19 recebem algum tipo de tratamento fitoterápico, de acordo com o Ministério da Ciência e Tecnologia.

    A Comissão Nacional de Saúde da China não respondeu aos pedidos de comentário.

    Riscos para a saúde humana

    Todas as fazendas que criam animais selvagens representam riscos à saúde, independentemente de o objetivo ser o uso da carne dos animais ou a produção de remédios tradicionais, diz White. Por exemplo, em ambos os casos, centenas de animais selvagens geralmente vivem em recintos superlotados e as pessoas frequentemente entram em contato com as carcaças.

    “Independentemente de [a vida selvagem] ser destinada à obtenção de carne ou como medicamento, ainda existem riscos na forma como os animais são abatidos, removidos, armazenados, processados e consumidos”, explica White. Se a China está fechando fazendas que produzem carne de animais selvagens, como pavões, porcos-espinhos e javalis, por apresentarem risco de doenças, diz White, “por que também não estão considerando as fazendas de ursos e tigres? Os problemas são basicamente os mesmos”. Além disso, ele acrescenta, “grande parte da medicina tradicional chinesa não utiliza partes de animais silvestres. Ela não precisa ser uma ameaça à vida selvagem”.

    Quando se trata da Covid-19, Clifford Steer, da Universidade de Minnesota, afirma que está bem claro o que precisamos agora. “No fim das contas”, diz ele, “o mundo só precisa desenvolver uma vacina contra o vírus para proteger as pessoas”.

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