O que a Nova Zelândia fez para 'efetivamente eliminar' o coronavírus

Preso no país depois de ter seu voo – e de todos visitantes – cancelado, jornalista conta como a nação insular optou por bloqueios rígidos e austeridade para frear a pandemia.

Por Aaron Gulley
Publicado 6 de mai. de 2020, 19:30 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Ciclistas percorrem as trilhas do parque Totara, no sul de Auckland, na Nova Zelândia, depois que ...

Ciclistas percorrem as trilhas do parque Totara, no sul de Auckland, na Nova Zelândia, depois que o governo flexibilizou as medidas de bloqueio para enfrentamento do coronavírus em 28 de abril.

Foto de Phil Walter/, Getty Images

Em uma tarde fria, quatro ciclistas percorriam em suas mountain bikes a via de duas pistas que serpenteia as margens sul do lago Wanaka. Os dias mais claros nesta parte acidentada da Ilha Sul na Nova Zelândia normalmente são em abril. Nos finais de semana, há um burburinho de veículos de turistas e campistas com destino final no Parque Nacional Mount Aspiring. Mas nesta tarde de sábado, nenhum carro passou, deixando espaço para as bicicletas transitarem pelo meio da rua.

A estrada deserta foi apenas um dos exemplos da resposta resoluta da Nova Zelândia ao surto de Covid-19. Sob decretos de bloqueio rígidos, as luzes se apagaram e todos os lugares ficaram vazios, desde bares e cafeterias a empresas do centro de Wanaka. A fita amarela da polícia bloqueava o parque de skate e o playground, balanços foram amarrados para ficar fora de alcance e não passar vontade em quem passasse perto. Se bem que não havia risco de transgressão: além de uma ou outra pessoa praticando corrida ou de um casal que saía para tomar um pouco de ar, as ruas da cidade ficaram tão abandonadas quanto um cenário de The Walking Dead.

No caminho para o Mount Aspiring, os ciclistas, eu era um deles, pararam na baía Glendhu, que tinha uma placa marcando o mais novo parque de mountain bike da Nova Zelândia, o Bike Glendhu. Uma barreira com placas pintadas à mão indicando “Fechado" bloqueava a entrada da estrada que levava à fazenda; uma trilha se curvava de forma tentadora ao sul na encosta da montanha, coberta por uma plantação de linho, antes de desaparecer em picos irregulares.

 

Natasha Parkinson atende pedidos para retirada na Amano Bakery em 29 de abril. No dia anterior, a Nova Zelândia anunciou a eliminação do coronavírus no país e flexibilizou seu Alerta de Covid-19 do Nível 4 para o Nível 3, permitindo que algumas empresas reabrissem com certas restrições.

Foto de Fiona Goodall, Getty Images

Um belo dia para um passeio pelo parque Waitangi, com vista para a baía Oriental, em Wellington, capital da Nova Zelândia. O Nível 3 ainda exige distanciamento social nas ruas.

Foto de Mark Tantrum, Getty Images

Embora cerca de quatro milhões de visitantes – aproximadamente 80% da população residente – tenham visitado a Nova Zelândia em 2019 para desfrutar desse tipo de paisagem natural, a Covid-19 forçou o país a fechar esses cenários e também suas fronteiras. O mais próximo que esses ciclistas conseguiriam chegar dos grandes Alpes do Sul na Nova Zelândia é a ciclovia vazia e pavimentada que liga a cidade.

Um neozelandês esguio com um tufo de cabelo castanho trotava pela estrada de cascalho. Era John McRea, proprietário da Glendhu Station, a fazenda onde o parque de bicicletas foi construído. Ele estava praticando corrida nas trilhas do parque e voltava para casa. “Não temos visto muito tráfego até aqui, exceto alguns ciclistas por dia. Coloquei aquela barreira para que ninguém entre”, ele disse, afastando-se de nós quatro. “Odeio ver o parque fechado. Mas neste momento, o melhor é que todos fiquemos em casa.”

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    Um plano rumo ao sucesso

    Se existe um lado otimista na resposta global à pandemia, certamente a Nova Zelândia o representa. Enquanto governos do mundo inteiro hesitavam sobre como responder ao surto e viram os casos de contaminação pelo vírus dispararem, a Nova Zelândia deu um exemplo firme e baseado na ciência. Embora a proibição de viagens partindo da China tenha entrado em vigor a partir de 3 de fevereiro (um dia após os Estados Unidos) e sua trajetória de novos casos parecesse descontrolada em meados de março, medidas de austeridade aparentemente controlaram a Covid-19.

    O país iniciou quarentenas obrigatórias para todos os visitantes em 15 de março, uma das políticas mais rígidas do mundo na época, embora houvesse apenas seis casos em todo o país. Apenas 10 dias depois, instituiu um bloqueio completo, incluindo uma moratória para viagens domésticas. As restrições de Nível 4 autorizavam o funcionamento apenas de supermercados, farmácias, hospitais e postos de gasolina; a movimentação de veículos era restrita; e a interação social ficou limitada às famílias que moram na mesma residência.

    A campeã de surfe da Nova Zelândia Ava Henderson no mar em Christchurch em 28 de abril, a primeira vez que conseguiu surfar desde que o país foi fechado em 26 de março.

    Foto de Kai Schwoerer, Getty Images

    “Devemos lutar com firmeza e antecedência,” disse a primeira-ministra Jacinda Ardern em comunicado ao país em 14 de março.

    Sem querer, minha esposa e eu nos vimos no meio dessas restrições. Ela, fotógrafa editorial, e eu, jornalista de viagem, viajamos para a Nova Zelândia para trabalhar com garantia dos Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália de que nenhum controle estava vigente. Mas entre o momento em que saímos de casa até o pouso, a Nova Zelândia decretou quarentena para os visitantes. Antes que pudéssemos obter novas passagens de volta para casa, o país interrompeu todas as viagens completamente. Assim como aproximadamente 100 mil visitantes internacionais, estávamos presos.

    A austeridade repentina poderia ter sido motivo de pânico. Mas todos os dias, Ardern, de 39 anos, ou “Jaz”, como é conhecida popularmente, fazia declarações claras e concisas sobre a situação do país, com o apoio de uma equipe de cientistas e profissionais de saúde. Poucos dias após o bloqueio, ela anunciou que em vez de apenas reduzir a transmissão do vírus, a Nova Zelândia havia iniciado um processo de erradicação da Covid-19 da região costeira, impedindo a chegada de novos casos e freando os casos existentes com as restrições. “Temos a oportunidade de fazer algo que nenhum outro país conseguiu: a eliminação do vírus”, disse Ardern em uma de suas declarações diárias.

    Do ponto de vista de um estrangeiro, o mais interessante observado na Nova Zelândia é que o país simplesmente colaborou. No primeiro dia do bloqueio, as ruas e rodovias estavam vazias, as lojas fechadas e todos ficaram em casa. “Acho que para nós, neozelandeses, é mais fácil obedecer, pois confiamos em nossos líderes”, disse-me Sue Webster, proprietária da acomodação do Airbnb onde eu e minha esposa nos abrigamos por quase quatro semanas.

    O músico Orson Paine, da Orquestra da Marinha Real da Nova Zelândia, toca “The Last Post” no cornetim, na entrada de sua casa em comemoração ao Dia do Anzac, em 25 de abril. Normalmente, o feriado nacional que honra os soldados mortos em batalhas é celebrado com eventos públicos e multidões, que foram proibidos durante o rígido bloqueio do país.

    Foto de Phil Walter, Getty Images

    O plano parece ter funcionado. A taxa diária de infecção na nação insular de 4,9 milhões de habitantes caiu constantemente de um máximo de 146 casos no fim de março para apenas alguns casos por dia em meados de abril. Ao todo, a Nova Zelândia registrou um pico de 1.476 casos e 19 mortes. Em 26 de abril, o país vivenciou um marco: nenhum novo caso de covid-19 e nenhuma transmissão comunitária foram relatados pela primeira vez em mais de seis semanas, embora sete novos casos tenham surgido até 30 de abril.

    Ainda assim, o baixo número de novos casos deixou o governo confiante para flexibilizar suas restrições de distanciamento social para o Nível 3. Em 28 de abril, Ardern declarou que o vírus havia sido eliminado, esclarecendo mais tarde que “a eliminação não significa que não exista nenhum caso... teremos que continuar eliminando a Covid até o desenvolvimento de uma vacina”.

    Vida após o coronavírus?

    Embora a Nova Zelândia pareça confiante em eliminar a Covid-19, o sucesso não é garantido. Países como Singapura, que pareciam ter controlado o vírus, enfrentam uma segunda onda de infecções. E a China, que parecia ter interrompido completamente a transmissão, agora está enfrentando novas ondas.

    Mesmo que a Nova Zelândia consiga eliminar a Covid-19, o caminho à frente não será fácil. Quando o país estiver livre do vírus, precisará manter a suspensão total de chegadas do exterior até que uma vacina seja desenvolvida e amplamente distribuída – ou poderá correr o risco da ameaça de reinfecção. Essa é uma perspectiva difícil para um país onde o turismo – o maior setor de exportação da Nova Zelândia em termos de receita cambial – representa 10% do PIB e cerca de 15% da força de trabalho. Centenas de milhares de empregos estão em jogo e, de acordo com as previsões, a economia da Nova Zelândia não se recuperaria até pelo menos 2024.

    Ainda assim, uma pesquisa recente mostrou que 87% dos neozelandeses apoiam a forma como o governo gerenciou a crise. Depois de passar um mês lá durante o bloqueio, entendo o motivo: as ruas estavam calmas e limpas, os serviços públicos estavam funcionando, as lojas estavam bem abastecidas e, o mais importante, o risco de contrair Covid-19 parecia remoto e em constante redução.

    Quando finalmente consegui reservar voos de volta para casa, tive que me perguntar se realmente queria ir embora da Nova Zelândia. Mesmo não podendo aproveitar as trilhas em Bike Glendhu, a serenidade daquele passeio na estrada com destino ao monte Aspiring me marcou.

    Já de volta em casa, entrei em contato com Charlie Cochrane, diretor do Bike Glendhu, para ver como estava a situação do parque. “Como a maioria das empresas aqui, nosso fluxo de caixa foi reduzido a zero, colocando uma enorme pressão sobre nós. Certamente o crescimento será mais desafiador,” contou Cochrane. Mas ele disse que, apesar de tudo, estava otimista. “Acreditamos que o governo administrou a crise muito bem e sentimos que temos sorte por morar na Nova Zelândia.”

    Aaron Gulley é jornalista, mora em Santa Fé, no estado americano do Novo México, e há duas décadas escreve sobre viagens, ciclismo, esportes e saúde. Siga-o no Instagram.

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