O que é preciso para detectar o real número de mortes causadas pela covid-19

Brasil se aproxima das 24 mil mortes pela doença, enquanto os EUA caminham para os 100 mil óbitos – mas esses números podem estar longe de refletir a realidade.

Por Carrie Arnold
Publicado 26 de mai. de 2020, 11:15 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Vítima fatal da covid-19 em Bruxelas, Bélgica, em 9 de abril de 2020.

Vítima fatal da covid-19 em Bruxelas, Bélgica, em 9 de abril de 2020.

Foto de Yves Herman, Reuters

TODAS AS MANHÃS, ROBERT Anderson realiza o sombrio trabalho de atualizar o número de mortes pela covid-19 nos Estados Unidos, o mais alto do mundo até o momento. A longa crise poderia ser motivo de desespero, mas, para Anderson, chefe da Divisão de Estatísticas sobre Mortalidade dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, ela fornece um senso de propósito em meio ao caos da pandemia.

“Sinto que estou prestando um serviço importante aos que faleceram, garantindo que eles sejam contabilizados e que sua experiência possa servir para direcionar programas e políticas públicas com o objetivo de ajudar outras pessoas”, conta ele.

Os Estados Unidos estão próximos a ultrapassar a marca de 100 mil mortes pelo novo coronavírus. No Brasil, a triste marca se aproxima dos 24 mil óbitos. E a pandemia nesses países, respectivamente o primeiro e o segundo lugares do mundo com mais casos confirmados da doença, está longe do fim.

Nos EUA, esses números oficiais permitem que cientistas e autoridades do governo monitorem a gravidade da pandemia e implementem medidas preventivas com precisão, incluindo a realização de testes e a expedição de decretos para o distanciamento social.

Na teoria, essa tarefa mórbida de contabilização parece tão simples quanto contar os cadáveres. No entanto, a experiência com emergências anteriores mostra que elaborar uma lista completa pode ser um desafio, mesmo nas melhores circunstâncias. Diagnósticos perdidos, irregularidades no rastreamento de dados e mortes indiretamente relacionadas, como aquelas associadas a vacinas em atraso, podem ofuscar a verdadeira intensidade da fúria mortal da pandemia.

Outros países relatam o mesmo padrão com o coronavírus. Uma análise ainda não concluída das estatísticas italianas calculou que a taxa real de mortes nas áreas mais atingidas do país poderia ser 1,5 vez maior do que o número notificado oficialmente. Uma equipe britânica tentou fazer uma previsão de como o coronavírus afetará as taxas de mortalidade no próximo ano, incorporando idade, doenças crônicas e medidas do governo. No pior cenário, quase 600 mil mortes adicionais podem ocorrer no Reino Unido. Tudo isso significa que determinar o impacto total será um desafio em longo prazo, que sempre envolverá certa incerteza.

“Não saberemos o número real de mortes até que os ânimos se acalmem, por isso precisamos estar cientes da natureza incompleta dos dados”, diz Daniel Weinberger, epidemiologista da Universidade de Yale. “Mas essa informação vai orientar muitas decisões políticas importantes.”

Por que é necessário monitorar o número de mortes?

No verão sufocante de 1665, quando os londrinos enfrentaram uma praga muito diferente — a Peste Negra — as autoridades da cidade elaboravam uma Relação dos Mortos semanalmente, na tentativa de listar todos os óbitos ocorridos na cidade, juntamente com a causa. Agora, os historiadores sabem que cerca de 70 mil londrinos morreram devido à peste naquele ano, e um número semelhante morreu de doenças como “infecção e febre” (provavelmente malária) e devido a “problemas odontológicos e vermes”. Os dados obtidos nessas listagens serviram de base para algumas das primeiras análises estatísticas da saúde da população no mundo.

Embora os métodos modernos utilizados para monitorar e contabilizar as mortes tenham se tornado mais precisos e sofisticados, esses dados antigos continuam sendo extremamente importantes para a saúde pública. “O número de nascimentos e de mortes — são dados básicos e primordiais que formam a base do trabalho em campo”, diz Dominique Heinke, epidemiologista de Massachusetts.

Quando uma pessoa morre nos Estados Unidos, agentes funerários, médicos e médicos legistas têm de 48 a 72 horas para comunicar o óbito e a causa, e registrar uma declaração de óbito no estado. O estado então encaminha os dados para a Divisão de Estatísticas sobre Mortalidade do CDC. Independentemente de a morte ter sido causada por um acidente de carro ou pela covid-19, o processo permanece basicamente o mesmo, diz Anderson, mas pode haver um atraso de uma ou duas semanas entre a morte de uma pessoa e o registro do óbito na divisão em que ele trabalha.

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Devido à escassez contínua de testes nos Estados Unidos, nem todos os pacientes hospitalizados serão necessariamente testados para detectar infecção por SARS-CoV-2, razão pela qual o CDC também conta com a experiência clínica do médico para confirmar a causa da morte, explica Anderson. O problema, de acordo com Weinberger, é que alguns estados contabilizam casos de covid-19 diagnosticados apenas com base nos sintomas (conhecidos na epidemiologia como “casos prováveis”), ao passo que outros não. Além disso, a causa listada na declaração de óbito pode ser imprecisa, afirma ele.

Nos primeiros dias da pandemia, algumas mortes por covid-19 não foram detectadas e a identificação incorreta das causas de morte permanece um problema constante. Uma análise preliminar que utilizou dados do CDC detectou um aumento no número de mortes por pneumonia em março que, embora não tenham sido atribuídas à covid-19, podem muito bem ter sido  determinadas incorretamente devido ao baixo número de testes disponíveis. Se houvesse mais testes, diz Weinberger, o problema poderia ser menos preocupante.

Apesar da fatoração em casos prováveis, a equipe de Yale que realizou a análise preliminar descobriu que os Estados Unidos estavam subnotificando o número de mortes por coronavírus. Da mesma forma, em Wuhan, cidade onde a pandemia provavelmente começou, as autoridades anunciaram em 17 de abril que haviam subestimado o número de mortes causadas pelo coronavírus em 50%, aumentando o número para 3.869.

“Não existe uma abordagem consistente para rastrear esses dados e os números nem sempre são precisos”, diz Samantha Montano, gerente de emergências da Universidade Estadual da Dakota do Norte, que se considera uma “especialista em desastres”.

Alterações na contagem de mortes, tanto para mais quanto para menos, podem ser esperadas no início de uma pandemia à medida que novas informações surgem, diz Montano. Uma autópsia pode revelar uma doença não associada como a verdadeira causa da morte, em vez da covid-19, ou o teste de amostras armazenadas pode revelar infecções por coronavírus antes de os indivíduos terem sido submetidos a uma triagem de rotina.

O rastreamento intencionalmente inconsistente também pode influenciar a contagem final, observa Megan Price, estatística do Human Rights Data Analysis Group. Durante a Guerra do Iraque, por exemplo, as autoridades trabalharam para ocultar o número de mortes ou selecionar intencionalmente certos dados a fim de direcionar a narrativa política. Embora as guerras sejam tratadas de maneira diferente das pandemias, Price acredita que os dados referentes à covid-19 ainda correm o risco de sofrer esse tipo de manipulação.

Encontrando o número real

Além dos desafios mencionados, o desastre em si costuma ser apenas a ponta do iceberg quando se trata de mortalidade, afirma Price. Como o SARS-CoV-2 modificou a vida de milhões de pessoas em todo o mundo, há maior probabilidade de morte devido a outros problemas causados pela crise.

Uma pessoa pode morrer de ataque cardíaco porque esperou tempo demais para ir ao pronto-atendimento. Outras podem ter uma overdose fatal pelo uso de opioides devido ao isolamento social. Compreender o escopo total da pandemia significa contabilizar essas fatalidades indiretas e comparar os números com os de anos anteriores para determinar se houve alteração nas taxas de mortalidade por causas gerais  e a dimensão disso.

Em sua análise, Weinberger e seus colegas descobriram que as mortes por todas as causas aumentaram de 1,5 a três vezes em Nova York e Nova Jersey nos primeiros dias da pandemia, mesmo aquelas aparentemente não relacionadas a vírus respiratórios, como ataque cardíaco e derrame.

Esse “excesso de mortalidade”, definido como o aumento da taxa de mortalidade em relação à linha basal diária, é ainda mais difícil de calcular do que as mortes diretas causadas pela covid-19, de acordo com o pesquisador especialista em desastres e saúde Ilan Kelman, da University College London. No entanto, o excesso de mortalidade oferece uma noção mais clara da gravidade da epidemia e de como os governos administraram as consequências.

“Um terremoto não é um desastre. Desastre é quando o sistema não consegue dar conta e a situação em si se torna um desastre”, diz Kelman. Além disso, os efeitos posteriores geralmente persistem por muito tempo após a crise inicial. Quando uma equipe de cientistas da Universidade de Porto Rico e da Universidade George Washington analisou o excesso de mortalidade que se seguiu ao furacão Maria, que devastou Porto Rico em 2017, eles descobriram que o aumento no número de mortes persistiu por pelo menos um ano.

Identificar se qualquer aumento no número de mortes está realmente relacionado à covid-19 é quase impossível. A pessoa teria sobrevivido a um ataque cardíaco se tivesse procurado atendimento médico? Cabe ao médico que vai assinar a declaração de óbito fazer esse julgamento, diz Anderson, e é um processo que está sujeito a erros e tendenciosidade.

Em vez de analisar as mortes individualmente, Stéphane Helleringer, demógrafo da Universidade Johns Hopkins, e outros pesquisadores estão utilizando ferramentas estatísticas para estimar o aumento do número total de mortes durante a pandemia. Calcular essa alteração depende de uma compreensão detalhada dos padrões de mortalidade do país durante os anos sem pandemia. Alguns dos modelos que os epidemiologistas utilizam para fazer esses cálculos provêm do trabalho com doenças sazonais, como pneumonia bacteriana e influenza.

Durante uma intensa temporada de gripe, por exemplo, estatísticos tendem a observar um aumento nas mortes por doenças cardiovasculares. Utilizando essas dados como base, os epidemiologistas podem fazer previsões informadas sobre como as mortes cardíacas podem ser afetadas durante a pandemia de coronavírus.

O problema, segundo o epidemiologista Joseph Wu, é que a resposta do mundo à pandemia pode anular muitas dessas previsões. O estresse da pandemia e a turbulência econômica resultante podem aumentar as mortes por doenças cardiovasculares, independentemente da doença respiratória, afirma ele, o que provavelmente distorcerá a relação entre coronavírus e ataques cardíacos.

“O desafio é fazer o melhor uso possível das informações disponíveis e elaborar o melhor modelo matemático possível”, diz Wu, que trabalha na Universidade de Hong Kong.

E, por mais precisos que esses métodos estatísticos possam ser, são apenas estimativas sujeitas a erros e tendenciosidades na maneira como os dados são relatados e interpretados. Pelo menos durante os próximos dois anos, afirma Price, a resposta para o número total de mortes causadas pelo coronavírus será: 'Ainda não sabemos', até que todas as autópsias sejam feitas, a papelada seja arquivada e os pesquisadores realizem verificações de qualidade nos dados.

“Há uma razão para chamarmos o vírus de o novo coronavírus”, diz ela, referindo-se à peculiaridade da doença. Levará tempo até que consigamos nos aproximar da verdade, acrescenta Price, mas “eu tenho fé na ciência”.

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