Chá de quina vendido no Brasil não combate o coronavírus e pode trazer riscos à saúde
Embora não haja provas de que a hidroxicloroquina seja eficaz contra a covid-19, uma árvore da Amazônia está sendo explorada por seu suposto efeito curativo.
Cinchona succirubra, uma variedade de quina, também conhecida como Cinchona pubescens, em uma plantação do governo em Sikkim, na Índia, em 1866. As cinchonas são árvores nativas da América do Sul, mas foram levadas à Índia para cultivo depois que os colonos europeus descobriram que o extrato de suas folhas era eficaz no combate à malária.
Em um vídeo publicado no Facebook em 30 de março, um homem exibe o conteúdo de um pequeno saco plástico que está segurando: lascas de casca de árvore. Ele mostra aos seus seguidores um produto que é conhecido como “chá de quina” e explica como preparar a bebida que, de acordo com ele, “imuniza o corpo e combate a covid-19”.
Ele avisa que a demanda pelo chá será alta e pede a todos que estão assistindo que realizem a compra naquele momento. Ele não é o único a pensar assim – e isso pode ser um grande problema.
Conforme cientistas de todo o mundo procuram uma maneira de prevenir e tratar a covid-19, alguns brasileiros recorreram à natureza em busca de uma solução. Eles encontraram uma família de plantas conhecida localmente como quina, utilizada frequentemente na Amazônia e em outras comunidades rurais para combater a malária e outras condições inflamatórias. Acredita-se que a árvore tenha inspirado o que mais tarde se tornaria a hidroxicloroquina, o medicamento promovido pelos presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump como tratamento para a covid-19, apesar da falta de evidências científicas concretas.
Há décadas, a hidroxicloroquina é utilizada para tratar doenças como malária e lúpus, apesar de seus efeitos colaterais, incluindo toxicidade cardíaca. A promoção do fármaco pelos dois políticos deu início a um debate sobre a segurança do medicamento para aqueles que tentam evitar os efeitos mais graves do coronavírus. Em 3 de junho, um estudo realizado com 800 pessoas e publicado no periódico New England Journal of Medicine não relatou evidências de que a hidroxicloroquina tivesse qualquer efeito na prevenção da covid-19, o mais recente de uma longa linha de pesquisa que cita deficiências relacionadas ao medicamento.
Além disso, as árvores de quina não são exatamente o que esses brasileiros pensam ser – e o chá promovido em vídeos e mensagens postadas nas redes sociais pode trazer mais malefícios do que benefícios.
Nasce a quina
O ano era 1638. Depois de visitar a floresta amazônica no Peru, a condessa espanhola de Cinchón adoeceu com febre alta. Ela foi tratada por um grupo indígena local com uma substância amarga que eles chamavam de quina. Para sua alegria, a febre cedeu e ela foi curada – do que agora sabemos ser malária.
O remédio veio de uma árvore andina tradicionalmente chamada de quina, ou china, cujo gênero mais tarde seria denominado Cinchona em homenagem à condessa. Os europeus voltaram para casa com a planta e a venderam como um medicamento conhecido como “pó de jesuítas”. Mais de quatro décadas depois, também salvaria da malária o rei Charles II da Inglaterra.
A cinchona-vermelha (Cinchona pubescens; também conhecida como Cinchona cordifolia) produz quinina, o composto antimalárico que é a base da cloroquina e hidroxicloroquina. Esta é uma litografia colorida à mão de Hanhart, após ilustração botânica de David Blair encontrada na obra Medicinal Plants, Londres, 1880, de Robert Bentley e Henry Trimen.
Foi preciso séculos até que os cientistas descobrissem que essa variedade específica de Cinchona era uma fonte de quinina, que mais tarde inspiraria a produção de drogas sintéticas, incluindo a cloroquina e hidroxicloroquina.
Conforme os europeus continuaram extraindo a Cinchona por sua molécula de combate à malária, a árvore peruana foi levada à beira da extinção. No século seguinte, surgiu a necessidade de encontrar alternativas à casca na Amazônia brasileira. Várias plantas foram encontradas e também receberam o nome de quina.
No entanto elas não eram fontes de quinina.
Troca de árvore perigosa
Nenhuma espécie do gênero Cinchona que produz quinina cresce naturalmente no Brasil, explica Maria das Graças Lins Brandão, farmacêutica e química orgânica especializada em plantas medicinais do Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais.
Em vez disso, as árvores alternativas contêm outros alcaloides – produtos químicos naturais de sabor amargo como a quinina, que provavelmente convenceram os europeus de que possuíam as mesmas propriedades medicinais.
Até hoje, no entanto, muitas das quinas brasileiras, frequentemente chamadas de falsas-quinas, não foram amplamente estudadas.
“Elas estão repletas de substâncias químicas sobre as quais ainda não sabemos nada”, diz Brandão. “Muitas delas são tóxicas e não devem ser ingeridas.”
Brandão e sua equipe criaram um banco de dados de plantas brasileiras e estão estudando o DNA de cascas vendidas em mercados livres, como as quinas. Das 36 amostras coletadas até o momento, quatro são falsas-quinas. As outras 32 plantas não têm nenhuma relação com o gênero Cinchona e seus efeitos medicinais são desconhecidos.
Árvore cinchona-vermelha (Cinchona pubescens; também conhecida como Cinchona succirubra). Gravura em aço colorida à mão por Debray após uma ilustração botânica de Edouard Maubert encontrada na obra La Regne Vegetal: Flore Medicale, L. Guerin, Paris, 1864-1871, de Pierre Oscar Reveil, A. Dupuis, Fr. Gerard e Francois Herincq.
Mesmo que as quinas brasileiras contivessem quinina que pudesse ser extraída, isso não faria com que seus derivados fossem iguais à hidroxicloroquina. Ao passo que a quinina é um composto que ocorre naturalmente, o ingrediente ativo da hidroxicloroquina é sintético e possui uma composição química completamente diferente.
“As plantas não produzem nada específico para nós”, diz Vanderlan Bolzani, químico orgânico da Universidade Estadual Paulista, especializado em química de produtos naturais e plantas medicinais. “Elas apenas produzem o que precisam para se defender. E, na maioria das vezes, o que produzem é tóxico.”
Além disso, muitas pessoas consideram o chá uma opção mais segura do que utilizar um medicamento produzido pela indústria farmacêutica, mas isso nem sempre é verdade. Ao adicionar uma substância natural, como a casca de quina, à água fervente, não será extraída apenas a substância desejada, mas também todas as demais substâncias químicas produzidas pela planta e isso pode trazer resultados perigosos. É possível também que um pedaço de casca de quina nem seja quimicamente igual ao outro, dependendo de onde as duas árvores são cultivadas.
“Dependendo da estação, a planta se modifica. Ela para de produzir algumas substâncias e começa a produzir outras”, diz Bolzani. “Quem pode garantir que, para sobreviver, se adaptar e se regular, essa planta tenha produzido a mesma composição química?”
A própria quinina sempre foi conhecida por ser tóxica. Os comprimidos de quinina ainda são utilizados como tratamento alternativo para a malária quando a doença mostra resistência a medicamentos mais recentes, como a hidroxicloroquina. Mas seus efeitos colaterais comuns – visão turva, perda auditiva, náusea, vômito e confusão – podem ser graves. Em 2006, a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos suspendeu a venda de quinina sem receita médica para tratar cãibras noturnas nas pernas, após relatos de efeitos colaterais graves e morte.
Matando árvores
Conforme muitas pessoas recorrem ao falso chá de quinina como tratamento alternativo para a covid-19, também existe a preocupação de que as próprias plantas possam ser prejudicadas.
“Quando você tira a casca de uma árvore, ela morre”, diz Brandão. “Então, ao usar essas plantas dessa maneira, você não está apenas prejudicando a saúde da pessoa que consome o chá, como também está prejudicando o meio ambiente.”
Especialistas concordam que plantas como as quinas brasileiras podem ter outras propriedades terapêuticas – mas não se sabe se são eficazes contra alguma doença, incluindo a covid-19.
“A maioria das descobertas científicas de valor que temos, incluindo a aspirina, foi inspirada na natureza”, diz Lauro Euclides Soares Barata, químico orgânico da Universidade Federal do Oeste do Pará especializado em produtos naturais. “Mas precisamos de mais estudos. Um estudo de tamanho reduzido precisa de pelo menos quatro anos para ser concluído. Estamos lidando com esse vírus há apenas quatro meses. Precisamos de tempo.”