2020 parece ser o pior ano de todos? A ciência explica o porquê

O consumo desenfreado de mídias sociais distorce nossa percepção do presente. Veja como quebrar esse ciclo.

Por Rebecca Renner
Publicado 10 de set. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Não é preciso se desligar de toda a sua vida digital para ter um panorama melhor ...

Não é preciso se desligar de toda a sua vida digital para ter um panorama melhor sobre o ano.

Foto de Zak Bennett, AFP via Getty Images

NO ANO DE  2020, Jenny Eastwood se tornou viciada em notícias ruins. A jovem de 26 anos de Auckland, Nova Zelândia, não conseguia parar de ver as notícias da pandemia mortal, de brutalidades policiais, protestos, teorias da conspiração e política à medida que cada crise se manifestava, principalmente por estar nos Estados Unidos, a meio mundo de distância de sua terra natal. A cada 10 minutos surgia uma nova publicação assustadora no Reddit ou Instagram.

“Depois de alguns meses do início da pandemia, eu já estava esgotada”, diz Eastwood, que trabalha com marketing. “Eu sentia como se a humanidade inteira não prestasse, mas não conseguia me concentrar em nada, porque estava sempre pensando em ver as últimas atualizações.”

Assim como muitas pessoas, Eastwood ficou obcecada pelo perigo aparentemente cada vez maior do nosso mundo — uma resposta que tem suas raízes em nosso desenvolvimento evolutivo. Histórias de medo e perigo estimulam nossa ansiedade. Elas colocam nosso cérebro em alto estado de alerta, uma vantagem que um dia protegeu nossos ancestrais hominídeos de predadores e desastres naturais, mas que agora nos faz ter o hábito de “doomscrolling”, palavra em inglês que significa acessar incessantemente as redes sociais e notícias online para ficar a par das últimas ameaças. Nossos batimentos cardíacos se aceleram e nossa mente fica em constante estado de alerta, esperando pela próxima catástrofe. Queremos nos sentir preparados, então ficamos viciados nas atualizações, sempre voltando para ver mais até que o mundo pareça pior do que nunca.

Há muitas tragédias acontecendo, e isso nos deixa vidrados nas telas de nossos smartphones. A pandemia já matou quase 900 mil pessoas — e esse número continua a crescer conforme a crise destaca a gigantesca desigualdade social e econômica. Sofremos um número recorde de incêndios florestais no Brasil, EUA e Austrália, uma intensa temporada de furações no Atlântico, enxames de gafanhotos devastadores de plantações na África Oriental e uma enorme explosão de substâncias químicas que destruiu o porto de Beirute e causou a morte de pelo menos 190 pessoas, resultando em custos de cerca $15 bilhões de dólares em danos. Protestos contra a brutalidade policial e os símbolos de opressão da bandeira confederada da era colonial levaram milhões de pessoas às ruas no mundo todo. E como se não fosse o suficiente, esse também é um ano eleitoral altamente disputado nos Estados Unidos.

Mas certamente 2020 não foi um ano de apenas acontecimentos ruins. A telemedicina está tornando os cuidados com a saúde mais acessíveis do que nunca. Livros antirracistas estão nos topos das listas dos mais vendidos. Um número infinitamente maior de pessoas está lavando suas mãos. Cidadãos norte-americanos adotaram centenas de milhares de animais de abrigos e agora parece que todo mundo tem um cachorro.

Se algum ano parece ser o pior, isso ocorre principalmente pelo fato de que nosso cérebro tende a julgar o presente com mais austeridade. O consumo desenfreado de mídias sociais distorce nossa percepção e fica fácil cairmos em padrões de crenças nada saudáveis.

Você não precisa se desligar de toda a sua vida digital para ter um panorama melhor sobre o ano. De acordo com os especialistas, aprender a controlar crenças negativas persistentes ou a inclinação de olhar para o passado através de lentes cor-de-rosa pode funcionar como uma pausa muito necessária do estresse deste ano.

Foi a melhor época, foi a pior época

Nossos ancestrais podem descordar que 2020 é o pior ano já registrado. É evidente que coisas assustadoras estão acontecendo, mas muitas delas já aconteceram no passado, incluindo a pandemia de gripe de 1918, que resultou na morte de 50 milhões de pessoas. Além disso, a crença de que a civilização está em declínio é uma tradição tão antiga quanto a civilização em si. Até mesmo os antigos atenienses queixaram-se no século 5 a.C. de que sua democracia já não era como costumava ser. Hoje em dia, chamamos essa crença de “declinismo” ou “viés do declínio”.

Antes da pandemia, a maioria dos norte-americanos já acreditava que o país estava indo ladeira abaixo. De acordo com uma pesquisa de 2019 do Pew Research Center, cerca de 60% das pessoas que participaram da pesquisa acreditavam que a influência da nação sobre o mundo estava diminuindo. Apenas 12% das pessoas que responderam estavam “muito otimistas” com relação ao futuro do país, enquanto 31% estavam “um pouco pessimistas” e 13% estavam “muito pessimistas” sobre o futuro dos Estados Unidos.

Agora, os norte-americanos podem se sentir ainda pior com relação ao futuro do que já se sentiam antes, principalmente porque as medidas determinando que a população fique em casa e mantenha o isolamento estão afetando nossa saúde mental, o que, por sua vez, aumenta a probabilidade de vermos o mundo através da lente do viés da negatividade.

Na cultura ocidental, as pessoas já apresentam propensão a interpretar os acontecimentos do presente de forma negativa e tendem a preferir o passado, de acordo com a pesquisa de Carey Morewedge, professora de marketing da Universidade de Boston. Isso ocorre porque nossas memórias autobiográficas têm tendência à positividade. Quando pensamos no passado, tendemos a nos lembrar de nossas experiências positivas. Às vezes chamamos isso de “retrospectiva idílica” ou “viés de nostalgia.”

“Se eu pensar, por exemplo, no quanto eu gosto de assistir a jogos de beisebol presencialmente, não vou me lembrar das vezes que meu time perdeu”, diz Morewedge. “Julgamos o passado com base nos principais êxitos alcançados, mas julgamos o presente com base em tudo o que temos ao nosso dispor.”

Até mesmo historiadores já caíram na armadilha de venerar versões positivas nada realistas do passado. É comum que esse tipo de veneração apareça em termos deslumbrantes, como a “Era Dourada”, diz a historiadora da Universidade Internacional da Flórida, em Miami, Erika Harlitz-Kern. Na história dos Estados Unidos, a Era Dourada se refere ao período entre 1870 e 1900, em que a Revolução Industrial deu origem a grandes avanços na tecnologia, cultura e arte.

“Mas esse período também foi marcado por desigualdade social, grande pobreza e pelo genocídio e deslocamento contínuo de nativos americanos”, explica Harlitz-Kern. No entanto, o termo Era Dourada pinta o período em um tom indiscutivelmente positivo.

E eis que surgem as mídias sociais, que nos oferecem porções infinitas de nosso presente bagunçado, cheio de nuances e aparentemente tenebroso. Não é à toa que o passado parece um mar de rosas quando temos tantos dados sobre os problemas do mundo atual disponíveis com um simples toque.

Doomscrolling e as mídias sociais

Não é surpresa para ninguém que o consumo excessivo de notícias causa estresse. Uma pesquisa realizada em 2017 pela Associação Norte-Americana de Psicologia revelou que os participantes que se mantiveram a par do ciclo de notícias relataram perda de sono, estresse, ansiedade, fadiga e outros sintomas negativos na saúde mental. Essa mesma pesquisa constatou que até 20% dos norte-americanos monitoram constantemente suas mídias sociais para ver as atualizações e um a cada 10 verificam as notícias de hora em hora.

Embora pareça que as notícias de hoje sejam mais chocantes do que nunca, a ideia de que o consumo de mídias afeta negativamente nossa percepção do mundo não é algo novo. Em 1968, uma ambiciosa investigação foi iniciada na Escola Annenberg de Comunicação da Universidade da Pensilvânia. Denominado Cultural Indicators Project, se tornou um dos primeiros estudos abrangentes sobre a influência da televisão nas atitudes e percepções de expectadores norte-americanos. O estudo, liderado por George Gerbner, reitor da universidade, encontrou uma correlação direta entre o tempo gasto assistindo à televisão e a probabilidade do expectador de perceber o mundo como um lugar mais assustador ou perigoso, um fenômeno chamado “síndrome do mundo cruel.”

Gerber constatou que os expectadores que assistiam a programas violentos na televisão geralmente acreditavam que a violência era comum na realidade. Isso se alinhava com sua “teoria do cultivo”, que apresenta a hipótese de que quanto mais uma pessoa assiste à televisão, mais ela passa a acreditar que a televisão reflete a realidade em vez de ser estilizada para um efeito dramático.

Pesquisas modernas continuam a reforçar essas ideias, mas os efeitos nem sempre são negativos. Tudo depende do meio de consumo e a forma de uso, de acordo com Mesfin Awoke Bekalu, cientista de pesquisa que estuda a relação entre mídias sociais e a saúde pública da Escola de Saúde Pública T.H. Chan da Universidade de Harvard.

Bekalu nos alerta para que os efeitos das mídias sociais não sejam associados a pesquisas anteriores sobre o consumo de televisão. Diferentemente de assistir à televisão, que é uma atividade passiva, o envolvimento nas redes sociais exige participação ativa, o que significa que o estudo de seus efeitos abrange questões mais complexas. O lado positivo é que as mídias sociais podem proporcionar apoio emocional e social aos seus usuários, algo que muitos consideraram indispensável durante a pandemia. No entanto as mídias sociais também podem nos trazer a experiência do “efeito de deslocamento”, um fenômeno em que atividade mental ocorre no lugar de uma necessidade física humana.

“As mídias sociais substituem as interações sociais da vida real, como interações sociais presenciais ou comunicação familiar”, diz Bekalu. “Substituem até mesmo atividades que fazem bem para a saúde, como exercícios físicos e o sono”.

Como constatado por Eastwood, o consumo de mídias sociais pode se tornar um círculo vicioso. A cada vez que voltamos a elas, temos várias outras oportunidades de cairmos em armadilhas psicológicas. Pessoas que sentem medo de perder os acontecimentos com frequência passam mais tempo em mídias sociais do que outras, o que pode resultar em fadiga e, por fim, em esgotamento digital. “Para os jovens, a comparação social ascendente pode se tornar um problema”, afirma Bekalu. “Pessoas jovens se comparam a outras pessoas com frequência, o que muitas vezes leva a sentimentos de inadequação e baixa autoestima”.

Mas o tempo gasto em mídias sociais não é tão importante quanto como os usuários gastam esse tempo. O envolvimento ativo em conversas positivas com amigos e membros da família pode melhorar o estado psicológico geral de uma pessoa. Por outro lado, “ficar à espreita” ou percorrer as atualizações publicadas por amigos ou desconhecidos sem se envolver tende a resultar em efeitos psicológicos negativos.

Retrospectiva idílica

Os psicólogos dizem que é possível que nunca enxergaremos o presente como algo perfeito, mas podemos aprender a controlar nossas tendências. O primeiro passo é reconhecer como as mídias que consumimos mudam nossas percepções. Elas dão aos nossos cérebros de primatas propensos ao pânico mais motivos para nos sentirmos estressados e mais exemplos do presente para compararmos com nossa versão altamente editada do passado. Quando estamos atentos aos nossos padrões de pensamento, conseguimos controlá-los e reconhecer a realidade, diz Morewedge.

“Precisamos estar atentos quanto ao tipo de rede social em que estamos, com quem nos envolvemos e quais tipos de conteúdo consumimos”, alerta Bekalu. “As mídias sociais podem nos fazer perceber o presente como pior do que o passado, mas isso não ocorre com todo mundo”.

Para controlarmos nosso viés de nostalgia, precisamos de uma visão mais realista da história e compará-la de verdade com o presente. A pandemia é realmente assustadora, mas pelo menos você não é um camponês medieval que enfrenta a peste bubônica a cada esquina sem entendimento algum sobre como os germes atuam.

Coloque o presente sob perspectiva avaliando também aquilo que nós temos. Estamos fazendo progressos sociais e científicos, e equipes de pesquisa do mundo todo estão trabalhando em vacinas contra o coronavírus, um empreendimento que não teria sido possível cem anos atrás.

Eastwood não percebeu o impacto que sua obsessão pelas notícias estava tendo em sua saúde mental até que seu parceiro sugeriu que ela desse um tempo nas mídias sociais. “Decidi ali mesmo que ia abandonar de uma vez”, diz Eastwood, e, desde então, não se arrependeu de sua decisão.

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