Conheça a mulher que presenteou o mundo com medicamentos antivirais

Há 50 anos, raros eram os cientistas que acreditavam que um medicamento fosse capaz de combater vírus com poucos efeitos colaterais. Eis que Gertrude Elion mostrou aos descrentes o “que era capaz de fazer por conta própria”.

Por Patrick Adams
Publicado 4 de set. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Nascida em Manhattan, em 1918, Gertrude Elion desenvolveu o medicamento aciclovir, um inibidor potente dos vírus ...

Nascida em Manhattan, em 1918, Gertrude Elion desenvolveu o medicamento aciclovir, um inibidor potente dos vírus do herpes com toxicidade notavelmente baixa, revelado por sua equipe em 1978.

Foto de <a href="https://en.wikipedia.org/wiki/Gertrude_B._Elion#/media/File:Gertrude_Elion.jpg" target="_blank">Creative Commons</a>

QUANDO SURGIRAM EM ABRIL notícias de que a droga remdesivir havia acelerado a recuperação de pacientes internados com covid-19, Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos (NIAID), aclamou o fato como “uma prova de conceito importante” na corrida para conter a pandemia.

Ao contrário de uma vacina, que estimula o corpo a criar uma defesa contra vírus invasores, o remdesivir é um antiviral que prejudica a capacidade de um vírus de se replicar e se disseminar. Até o momento, os resultados a respeito do remdesivir são inconclusivos, apesar de alguns estudos ainda indicarem que o medicamento pode melhorar o desfecho de pacientes com manifestações agressivas da covid-19. Entretanto, há apenas algumas décadas, grande parte dos cientistas duvidava que uma partícula nociva minúscula, totalmente dependente de uma célula hospedeira para se reproduzir, pudesse ser combatida sem causar danos à própria célula.

Hoje, os antivirais são usados para tratar herpes, hepatite, HIV, ebola e muitas outras doenças. Sem dúvida, nenhum existiria se não fosse por Gertrude “Trudy” Elion.

Nascida em Manhattan, Nova York, em 1918, Elion superou no início de sua vida dificuldades financeiras e enfrentou preconceito por ser mulher, mas ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1988, tornando-se a quinta mulher a recebê-lo. Ela dividiu o prêmio com seu colega de longa data, George Hitchings, que a contratou em 1944 para trabalhar em seu laboratório de bioquímica na empresa farmacêutica Burroughs Wellcome (agora parte da GlaxoSmithKline).

Foi somente após Hitchings se aposentar e interromper suas atividades de pesquisa científica em 1967 que Elion embarcou no que viria a descrever mais tarde como sua “odisseia antiviral”. A essa altura, Elion “já estava cansada de ficar na sombra” e, finalmente, aproveitou a oportunidade “para mostrar o que era capaz de fazer por conta própria”, contou à escritora Sharon Bertsch McGrayne, autora do livro Mulheres que ganharam o prêmio Nobel em ciências, de 2001.

Abordagem racional

Elion tinha apenas 19 anos quando se formou summa cum laude em Química na Hunter College, em 1937. Seus pais, imigrantes da Europa Oriental, foram à falência devido à Grande Depressão. Eles não podiam pagar pela pós-graduação da filha, e nenhum dos programas ao qual ela havia se candidatado ofereceu auxílio financeiro.

Pior que isso, mesmo tendo se formado com honras na universidade, os laboratórios de pesquisa não contratariam uma mulher. Como ela mesma recordou anos depois, em mais de uma ocasião lhe disseram que, ainda que atendesse aos requisitos necessários, ela seria uma “distração” para a equipe do laboratório.

Apesar disso, Elion não desistiu. Trabalhou em empregos temporários e continuou morando na casa dos pais para economizar. Trabalhou como analista de alimentos para uma rede de supermercados, foi secretária em um consultório médico e lecionou química em escolas de ensino médio em Nova York, enquanto cursava o mestrado na Universidade de Nova York à noite e aos fins de semana.

Finalmente, devido à escassez de mão de obra causada pela Segunda Guerra Mundial, oportunidades reais começaram a surgir, primeiro na Johnson & Johnson e, depois, na Burroughs Wellcome.

Até a década de 1970, a maioria dos novos medicamentos era descoberta por meio de tentativa e erro ou simplesmente por acaso. Um exemplo disso é a penicilina, descoberta acidental de Alexander Fleming, que revolucionou o tratamento de infecções bacterianas. Outro exemplo foi a observação casual de um cirurgião do exército francês, Henri Laborit, que constatou que um anestésico chamado clorpromazina produzia efeito calmante em pacientes com esquizofrenia, a primeira de uma série de descobertas na medicação psiquiátrica.

Hitchings propôs uma nova abordagem para a descoberta de medicamentos — racional e científica — com base no conhecimento de um alvo biológico. Ele levantou a hipótese de que os cientistas conseguiriam conter a replicação de células do patógeno com cópias defeituosas de seus alicerces genéticos. Assim que essas cópias fossem integradas às vias metabólicas do germe, elas bloqueariam o funcionamento celular, interferindo nas reações necessárias para a síntese de DNA.

Logo após ter contratado Elion, Hitchings a colocou para trabalhar com purinas. Essas moléculas de nitrogênio em formato anelar eram conhecidas por serem um tipo de nucleosídeo, o termo amplo para as bases estruturais do DNA. Elion não sabia o que eram purinas, mas, depois de meses debruçando-se sobre o assunto, começou a fazer compostos “que nunca haviam sido descritos antes” e “sentiu a empolgação de inventar uma 'nova composição de matéria'.”

“Trudy produzia nucleosídeos antes mesmo de conhecermos a estrutura do DNA”, explica Marty St. Clair, virologista que trabalhou para Elion em 1976. “Era assim que ela entendia a química”.

Juntos, Elion e Hitchings foram os pioneiros no uso do design racional de medicamentos e tiveram grande sucesso. Ao longo de 20 anos, a dupla inventou novos medicamentos para uma longa lista de doenças graves: leucemia, malária, gota, artrite reumatoide, rejeição de órgãos, infecção bacteriana e muito mais.

Seu primeiro medicamento, a 6-mercaptopurina (6-MP), originou-se da ação colaborativa de pesquisadores do Centro de Câncer Memorial Sloan-Kettering de Nova York, em 1951. Até hoje um pilar no tratamento combinado de leucemia linfoide aguda (LLA) em crianças, a 6-MP tornou possível uma das grandes histórias de sucesso no tratamento do câncer, ajudando a aumentar a taxa de cura da LLA em crianças de 10%, na década de 1950, para mais de 80% hoje.

Alguns anos depois, Elion e Hitchings desenvolveram o agente antimalárico pirimetamina, atualmente utilizado principalmente para tratar a toxoplasmose, doença de origem alimentar que pode ser fatal. (Mais conhecido por sua marca comercial Daraprim, o medicamento ganhou as manchetes por ter sido comprado e tido seu preço inflado em 2015 por Martin Shkreli, ex-diretor de empresa farmacêutica odiado por muitos.) E, com o desenvolvimento de trimetropim — ainda amplamente prescrito como parte de um tratamento combinado para infecções urinárias — os dois agentes complementaram o crescente estoque de medicamentos produzidos durante a chamada era de ouro da descoberta dos antibióticos.

Por outro lado, a busca por medicamentos antivirais estava muito atrasada.

A cereja do bolo

Os primeiros antivirais aprovados não chegaram às prateleiras até o início da década de 1960, e todos ficaram muito aquém das expectativas. Conforme demonstrado pela história de alguns antivirais, as versões iniciais desses medicamentos estavam em “algum ponto entre os princípios da quimioterapia para tratamento do câncer e a medicina popular”. Altamente tóxicos e pouco eficazes, eles apenas confirmaram o que a maioria dos cientistas havia previsto há tempos: por haver uma interligação inseparável entre o vírus e a célula, as doenças virais simplesmente não podiam ser tratadas.

Em algum momento, Elion pode até ter concordado com essa afirmação. Em 1948, ela notou que um composto que havia sintetizado para o tratamento do câncer — a 2,6-diaminopurina — havia demonstrado atividade antiviral impressionante. Ela ficou intrigada, mas desanimada com a toxicidade da droga, e acabou deixando-a de lado para se concentrar em outro projeto.

Em 1968, pouco depois de Hitchings deixar o laboratório para se tornar vice-presidente de pesquisa, Elion descobriu um relatório que dizia que algo semelhante à 2,6-diaminopurina havia mostrado atividade antiviral recentemente. A notícia “pareceu familiar”, contou ela mais tarde, impelindo-a, na companhia de sua equipe de “cientistas diligentes e dedicados”, a retomar o que havia engavetado duas décadas antes.

Nos quatro anos seguintes, estudaram em segredo um composto totalmente inédito, que chamaram de aciclovir, e trabalharam para desvendar os mistérios de sua atividade e metabolismo sem alertar a concorrência sobre o que haviam encontrado.

Apresentado em 1978 em uma conferência em Atlanta, Geórgia, o aciclovir era diferente de tudo aquilo que o mundo já tinha visto. Um inibidor potente dos vírus do herpes com toxicidade incrivelmente baixa, ele abalou a sabedoria convencional. Muito parecido com a penicilina de meio século antes, o agente anunciou o advento de uma nova era terapêutica.

“O aciclovir foi a droga que mudou tudo no cenário de desenvolvimento de antivirais eficazes”, relata Keith Jerome, diretor do laboratório de virologia molecular da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington. “Foi a prova de que era possível desenvolver drogas altamente específicas que visavam vírus sem causar efeitos colaterais indesejados”.

Elion chamou o aciclovir de sua “cereja do bolo” e, de fato, foi a última droga que ela desenvolveria durante seu mandato oficial na Burroughs Wellcome. Ela se aposentou em 1983, mas aqueles que trabalhavam em seu laboratório quase não perceberam. “Ela vinha trabalhar todos os dias”, lembra St. Clair, que desempenhou um papel fundamental em desvendar o mecanismo de ação do aciclovir.

Em 1991, Elion recebeu a prestigiosa Medalha Nacional de Ciências do então presidente George Bush, que a considerou um exemplo de como o trabalho de uma pessoa pode ajudar a “banir o sofrimento e prolongar a vida de milhões de pessoas”. Elion morreu em 1999, aos 81 anos.

St. Clair disse que ela e seus colegas “usaram muitos dos mesmos procedimentos realizados com o aciclovir para descobrir um medicamento contra o HIV”. Eles logo o encontraram em outro análogo de nucleosídeo selecionado entre alguns dos compostos mais promissores da empresa. “Isso não teria acontecido sem Trudy”, afirma St. Clair. “Fizemos o que ela nos ensinou e descobrimos o AZT”, ou azidotimidina, o primeiro medicamento aprovado para o tratamento do HIV.

Embora apenas moderadamente eficaz, o AZT abriu caminho para as gerações posteriores de terapia antirretroviral, responsável por salvar vidas. Fauci, do NIAID, acredita que o remdesivir seja capaz de fazer o mesmo, abrindo portas para a descoberta e o desenvolvimento de novos medicamentos mais eficazes no combate à covid-19.

“Trudy nos mostrou que éramos capazes”, conclui St. Clair. “E que as coisas que parecem impossíveis para algumas pessoas, na verdade, não o são”.

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