Algum dia voltaremos a nos sentir confortáveis nas multidões?

Se você estremece só de pensar em socializar, você não está sozinho. Cientistas dizem que a pandemia está mudando nossa forma de perceber o medo e a repulsa, e não está claro quanto tempo irá durar essa mudança.

Por Philip Kiefer
Publicado 2 de out. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Neurocientistas e psicólogos sugerem que o que está fazendo as pessoas se afastarem de desconhecidos e ...

Neurocientistas e psicólogos sugerem que o que está fazendo as pessoas se afastarem de desconhecidos e multidões não são sentimentos pré-existentes de medo ou aversão. Em vez disso, muita gente está aprendendo uma nova experiência emocional.

Foto de Richard Heathcote, Getty Images

QUANDO ASSISTI RECENTEMENTE à Seinfeld, uma série da década de 1990, percebi que a covid-19 talvez estivesse mudando minha maneira de pensar de forma definitiva. Na cena, os personagens se sentaram à mesa, em frente uns aos outros no Monk’s Café. Kramer apareceu, apoiando seu braço sobre outra cadeira ocupada. Quando seu braço tocou outra pessoa, me contorci fisicamente.

Na ocasião, minha cidade natal, Nova Orleans, nos EUA, tinha sido atingida pela pandemia havia algumas semanas, e eu já evitava cruzar com desconhecidos na calçada. Em meus momentos de paranoia, se alguém me pegasse desprevenido na rua, eu prendia a respiração e revirava os olhos até a pessoa passar.

Esses comportamentos pareciam naturais, embora em meados de março os cientistas já falassem sobre o baixo risco de transmissão do coronavírus em ambientes externos. Todos os meus amigos relataram ter sentido algo semelhante e um deles me disse que precisava desligar a TV quando via uma cena de metrô. Não estamos sozinhos. De acordo com uma pesquisa realizada recentemente pela Morning Consult, a maioria dos norte-americanos — independentemente de sua filiação política — diz que se sente desconfortável em meio a multidões, em ambientes internos e externos, mesmo com a reabertura em alguns estados.

Neurocientistas e psicólogos sugerem que as pessoas não estão evitando desconhecidos e multidões devido a sentimentos pré-existentes de medo ou repulsa. Em vez disso, muita gente está aprendendo uma nova experiência emocional.

O nosso cérebro contextualiza as experiências viscerais que temos do mundo real por meio da construção de emoções para que possamos categorizar melhor diferentes tipos de ansiedade ao nosso redor. Essas reações mentais nem precisam envolver um contato direto com o coronavírus, diz Lisa Barrett, neurocientista e psicóloga da Northeastern University, em Boston. “É possível ter reações desse tipo simplesmente ao ler um jornal ou ouvir alguém comentar sobre o assunto”, acrescenta ela. Depois de “ficar sabendo que alguém pegou covid e morreu porque esteve em um ambiente com aglomeração, não é preciso muito para o seu cérebro aprender essa contingência”.

Para entender por que as pessoas estão desenvolvendo forte aversão a multidões, pode ser necessário compreender a diferença entre sentir uma emoção e um desconforto reflexivo. E, conforme mostram os fatos históricos, é possível que as pessoas simplesmente “desaprendam” a sentir aversão a aglomerações quando a pandemia terminar.

Quando um reflexo instintivo se transforma em emoção?

Só porque alguém se arrepia ao avistar muitas pessoas juntas não significa necessariamente que ela sinta um medo instintivo da situação. Uma reação automática se transforma em emoção ao longo do tempo e mediante repetição, à medida que o cérebro aprende a classificar o novo cenário e a sensação.

“O nosso organismo está sempre enviando ao cérebro informações sobre o estado dos sistemas corporais. Isso se traduz em um sentimento de calma e conforto ou de nervosismo ou angústia”, explica Barrett. “A maioria das pessoas chama isso de sentimento instintivo — os cientistas chamam de afeto.”

A pesquisa de Barrett constatou que as emoções não são iguais em todas as pessoas, e também não são as mesmas em uma mesma pessoa ao longo do tempo. O conceito de medo é um conjunto de instâncias que o cérebro consegue nomear da mesma forma. Há a náusea que acompanha o medo de altura, mas também a emoção de andar em uma montanha-russa ou o pavor causado pelo ranger do assoalho em uma casa vazia. Nosso cérebro conecta todas essas experiências, rotulando-as como medo. É por isso que temos a impressão de que o medo pode se manifestar como qualquer coisa, desde um vazio no estômago e uma sensação de paralisação à vontade de gritar e correr.

Devido à pandemia e à ameaça invisível daqueles que estão infectados mas são assintomáticos, as pessoas estão aprendendo a categorizar a sensação incômoda de estar em meio a uma multidão ou de ver alguém descumprindo as normas sociais relacionadas à covid-19, afirma Barrett. A mente das pessoas está em busca do rótulo correto.

Assim como eu comecei a sentir medo ou repulsa ao assistir cenas de multidões na televisão, outra pessoa pode manifestar o mesmo sentindo raiva. Uma terceira pessoa pode simplesmente querer alertar a multidão sobre o distanciamento social e não pensaria nisso como algo emocional.

Uma variedade de reflexos instintivos

Os animais podem oferecer algumas pistas sobre o motivo de esses diferentes reflexos instintivos terem se desenvolvido. Uma pesquisa do neurocientista Cornelius Gross sobre o cérebro de camundongos e macacos sugere que diferentes reações ao perigo operam por meio de vias independentes no cérebro dos animais. Ele afirma ser razoável acreditar que uma situação semelhante se aplicaria aos humanos, considerando que parte da arquitetura cerebral permanece a mesma ao longo da evolução dos mamíferos.

“Sentir medo de tocar no fogão quente ou medo de alguém que está lhe dirigindo um olhar ameaçador é muito diferente de sentir medo de um predador”, explica Gross, que dirige uma unidade do Laboratório Europeu de Biologia Molecular em Roma.

Ele acredita que essas diversas vias de resposta existam porque as ameaças à nossa existência vêm com diferentes níveis de risco e as nossas mentes tentam se adaptar a cada uma delas. Segundo Gross, assim que seu cérebro definir que uma pessoa sem máscara representa um perigo físico, ele vai soar um alarme toda vez que virmos ou encontrarmos uma pessoa assim. “Acredito que o motivo seja porque a ideia de contágio e ameaça tenha sido recentemente imposta às pessoas”, explica ele. Algumas pessoas entendem que a ameaça está relacionada ao corpo de outras pessoas e sentem o perigo fisicamente.

Esse tipo de aprendizado acontece o tempo todo. Sentir-se nauseado ao pensar em um prato que lhe causou intoxicação alimentar é basicamente a mesma coisa que sentir uma certa repulsa quando alguém se aproxima demais em meio a uma multidão.

De acordo com Erika Siegel, psicóloga cognitiva da Universidade da Califórnia em San Francisco que estuda a relação entre fisiologia e emoção, os humanos adaptaram essas reações instintivas que protegem nossa segurança física e, nos Estados Unidos, elas tendem a ser utilizadas para entender como as pessoas absorvem estruturas culturais e sociais. Na cultura norte-americana, diz Siegel, muitas vezes falamos sobre tabus sociais utilizando uma linguagem de repulsa: o assassinato mais sórdido e moralmente repugnante. “As pessoas normalmente descrevem outras pessoas que consideram questionáveis do ponto de vista moral como se elas dessem vontade de vomitar.” Durante a pandemia, aglomerações não necessariamente precisam ser perigosas para provocar uma dessas respostas — a reação pode ser desencadeada apenas pelo fato de parecer ser a escolha errada.

Atualmente, a repulsa a multidões pode se manifestar até mesmo em pessoas que não conhecem amigos ou familiares que contraíram o vírus, tudo isso devido à capacidade de empatia. Gross aponta para pesquisas sobre “neurônios-espelho” que parecem permitir que ratos sintam dor quando veem outro rato ser atacado. Além disso, estudos psicológicos reforçam a ideia de que a ansiedade após um desastre — como surtos ou tiroteios em massa — está intimamente ligada a ler ou assistir notícias sobre o evento. É por isso que imagens de multidões ou de pessoas esbarrando umas nas outras na televisão acabam sendo perturbadoras. Imagine, diz Gross, observar alguém tocar em um fogão quente e o reflexo imediato que acompanha a ação.

“Os humanos têm essa capacidade incrível de se colocar no lugar de outras pessoas”, explica Gross.

Para onde vamos?

Apesar da intensidade emocional da pandemia, pesquisas sobre outros momentos de estresse e ansiedade coletivos sugerem que o ímpeto instintivo de se distanciar socialmente pode ser temporário. Isso pode ocorrer porque a memória é passageira ou porque a maioria das pessoas se adapta de maneiras que nem sequer percebem. De qualquer forma, o precedente histórico é categórico.

“É incrível como as pessoas se esqueceram da gripe espanhola tão rapidamente”, afirma Peter Stearns, historiador especializado em emoções da George Mason University. “Há um estudo sobre as reações dos norte-americanos à gripe espanhola que argumenta que a única mudança permanente resultante foi que as escolas pararam de compartilhar copos de bebidas.”

Esse estudo, da historiadora local Judith Johnson, é baseado na resposta do estado do Kansas à pandemia de gripe de 1918. Johnson observou que as autoridades sanitárias tentaram fazer com que os governos locais investissem em hospitais públicos para atendimento às vítimas da gripe, mas que a proposta foi arquivada quando a pandemia acabou. Durante o pico da doença, ela observa, as crianças “desviavam do quintal de alguém para evitar passar por uma casa onde havia uma pessoa com gripe” e milhares de empresas foram fechadas para conter a disseminação do vírus. Contudo, quando as determinações foram suspensas, essas medidas rapidamente desapareceram da memória. Tudo o que restou foram os copos de papel que substituíram os copos compartilhados nas escolas.

Isso também pode ter ocorrido porque a gripe de 1918 foi a última “pandemia clássica” a atingir todas as classes da sociedade norte-americana — até a chegada da covid-19. Agora, Stearns se pergunta se a atual pandemia poderá deixar uma marca psíquica maior devido à mídia moderna. Nossa exposição ao grande volume de notícias e dados sobre a pandemia é completamente diferente da exposição gerada pela mídia que noticiou a gripe de 1918.

Alguns estudos realizados por Stearns sugerem que, conforme o tempo passa, as pessoas ficam mais propensas a reagir a eventos semelhantes com medo. Com base em seu livro de 2006, American Fear (Medo americano, em tradução livre), no qual ele comparou matérias de jornal e outros relatos históricos sobre Pearl Harbor e os ataques terroristas de 11 de setembro, Stearns afirma que “é possível alegar que o medo se intensificou após o 11 de setembro”. Em relatos escritos e verbais sobre as consequências de Pearl Harbor, a tendência dos entrevistados foi reconhecer que “os tempos seriam difíceis”, mas disseram estar confiantes de que a liderança norte-americana ajudaria o país. Por outro lado, os entrevistados após o 11 de setembro estavam mais inclinados a descrever um sentimento de medo e ansiedade em relação ao futuro.

George Bonanno é professor de psicologia clínica na Universidade de Columbia e estuda pessoas que se recuperaram de traumas e luto sem sintomas permanentes. Ele diz que os efeitos em longo prazo da covid-19 serão mais difíceis de prever porque ele acredita que a pandemia representa um estresse crônico e não um trauma agudo.

Ele constatou que a maioria das pessoas se recupera do estresse agudo — ataques terroristas, hospitalizações pela doença SRAG, morte de um parente próximo — com poucos sintomas de trauma em longo prazo. Mas “normalmente não encaramos o estresse crônico tão bem. Ficamos desnorteados”. Esse tipo de estresse não se apresenta da mesma forma para todos. Pessoas que sentem um leve pânico ao se aproximarem de outras em público não sentem a mesma pressão constante que aquelas que perderam um ente querido ou um emprego — ou das pessoas que são obrigadas a continuar trabalhando em salões de beleza ou restaurantes para sobreviver.

Ainda assim, diz ele, a maioria das pessoas mostra características que ele descreve como “flexibilidade regulatória”, que lhes permite reconhecer o contexto de suas preocupações, desenvolver estratégias de enfrentamento e monitorar suas próprias respostas. “Constatamos que a maioria das pessoas é razoavelmente boa em todas essas três ações e que algumas apresentam déficits perceptíveis em uma ou mais delas.”

A neurocientista Barrett acredita que mesmo que nos lembremos claramente da covid-19 décadas após o fim da pandemia, os medos relacionados à doença não persistirão.

É possível que você nunca tenha pensado duas vezes sobre uma aglomeração, mas “agora aprendeu que multidões onde as pessoas não usam máscaras são perigosas”, afirma ela. “Contudo, assim que o vírus estiver sob controle, seu cérebro recalibrará a situação.”

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