Uma em cada quatro gestantes com covid-19 pode ter prolongamento da doença

Uma análise abrangente investiga como o coronavírus se desenvolve nesse grupo frequentemente esquecido, porém de alto risco.

Por Maya Wei-Haas
Publicado 15 de out. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
A análise mais abrangente desse tipo até o momento preenche algumas lacunas envolvendo gestantes e a ...

A análise mais abrangente desse tipo até o momento preenche algumas lacunas envolvendo gestantes e a duração dos sintomas da covid-19.

Foto de Callaghan O'Hare, Reuters

COM O AUMENTO DOS CASOS DE CORONAVÍRUS no primeiro semestre, Vanessa Jacoby tinha uma grande preocupação: as gestantes.

Jacoby atua como ginecologista e obstetra da Universidade da Califórnia, em San Francisco, e está bastante familiarizada com o fato de que as gestantes normalmente acabam sendo mais prejudicadas do que o grande público durante os surtos de doenças infecciosas. Durante a pandemia de H1N1 em 2009, elas representaram 5% dos casos de morte notificados, embora representassem apenas 1% da população. E nos primeiros dias da nova pandemia de coronavírus, as poucas informações que surgiram sobre o SARS-CoV-2 ignoraram esse grupo de alto risco.

“Nossos pacientes tinham todas essas dúvidas quando tudo começou e nós não sabíamos o que responder”, diz Jacoby. “Sabíamos que precisávamos de respostas o quanto antes.”

Agora, na análise mais abrangente desse tipo desenvolvida até hoje, Jacoby e seus colegas estão preenchendo algumas dessas lacunas. Eles constataram que os sintomas da covid-19 permaneceram em muitas das participantes do estudo, que incluiu 594 gestantes ou recém-gestantes, a maioria não foi hospitalizada.

Metade das participantes ainda relatou sintomas após três semanas, enquanto 25% ainda estavam se recuperando após dois meses ou mais. (A duração comum para casos leves é de duas semanas).

Os sintomas das participantes também se manifestaram de forma diferente daqueles relatados por mulheres não gestantes, de acordo com o estudo publicado em 07 de outubro na revista científica Obstetrics & Gynecology. A febre foi um sintoma incomum, embora tenha sido sinal característico da doença; foi sintoma inicial em apenas 12% das gestantes e ficou presente em apenas 5% após uma semana da doença. Outros sinais da covid-19, como tosse, perda de olfato, fadiga e falta de ar, persistiram em uma pequena, porém significativa proporção de indivíduos por até dois meses.

Esses sinais de progressão da covid-19 durante a gestação podem ajudar as pessoas e seus cuidadores a entender melhor quando procurar ajuda e o que esperar caso seja contaminado. Também é observado um grupo crescente de pessoas com sintomas prolongados da covid-19 (denominados long-haulers em inglês), cujos meses de persistência dos sintomas confundiram muitos cientistas.

Gemma Maclean foi diagnosticada com covid-19 no primeiro semestre deste ano, quando estava com 36 semanas de gestação. “Não consigo respirar fundo desde maio”, disse ela à National Geographic por e-mail. A jovem de 26 anos de Inverclyde, na Escócia, também sofreu diariamente com palpitações cardíacas, fadiga, problemas gastrointestinais, picos aleatórios de temperatura, dor com sensação de ardor na parte superior das costas e visão embaçada.

Ela lutou para que seus médicos a escutassem, pois eles atribuíram os sintomas à gravidez e a diversas outras condições. “[Eles dizem que] é ansiedade, ansiedade de saúde e o maior insulto foi quando disseram que eu certamente estava com depressão pós-parto”, disse ela. Com os cientistas adquirindo mais conhecimento sobre as doenças de longa duração, menos pacientes deveriam sofrer em silêncio. O novo estudo é um passo nessa direção.

Jacoby, que liderou o trabalho em conjunto com três outros pesquisadores, observa que os resultados são um panorama inicial. Eles planejam realizar análises mais detalhadas das participantes nos próximos meses.

“Muita coisa será extraída desse banco de dados”, diz Sarah Cross, professora assistente na Divisão de Medicina Materno-Fetal da Escola de Medicina da Universidade de Minnesota, que não participou do estudo. “Estou muito ansiosa para ver o trabalho deles.”

Corrida para a largada

O trabalho faz parte de um projeto ambicioso, batizado de Pregnancy Coronavirus Outcomes Registry (Registro de Desfechos do Coronavírus na Gestação) ou PRIORITY, com o objetivo de desenvolver um banco de dados nacional de gestantes com covid-19 e rastrear seu estado de saúde, assim como a de seus bebês, por até um ano após o parto. Com o aumento vertiginoso de casos de coronavírus nos Estados Unidos no primeiro semestre, além dos temores de que os hospitais ficariam superlotados e da escassez de equipamentos de proteção individual, Jacoby e seus colegas embarcaram em uma corrida insana para lançar o banco de dados.

“O trabalho que normalmente fazíamos em três meses, fizemos em cerca de... duas semanas e meia”, disse Jacoby. “Nós realmente sentimos essa necessidade urgente.”

A gestação causa mudanças profundas no funcionamento do organismo, o que o deixa mais suscetível a algumas doenças infecciosas. Uma mudança importante envolve uma ligeira supressão do sistema imunológico. A razão é simples e reflete o motivo dos pacientes tomarem medicamentos supressores do sistema imunológico para evitar a rejeição de um órgão transplantado, explica Cross. Metade de um feto em crescimento provém do DNA paterno que pode ser registrado no sistema imunológico como um invasor estranho, assim, o corpo materno deve ajustar suas defesas para permitir seu crescimento.

A gestação de uma criança também pode causar estresse nos pulmões de duas maneiras. À medida que o útero se expande, ele pressiona o diafragma ou o músculo plano que controla a quantidade de ar que os pulmões suportam, reduzindo a capacidade respiratória da gestante. Além disso, o feto em crescimento também aumenta a demanda do organismo por oxigênio. Ambos os impactos tornam a condição dos pulmões das gestantes “um pouco mais frágil”, diz Cross.

Surpresas da covid-19

A equipe do projeto PRIORITY começou as inscrições em 22 de março e seu banco de dados agora soma 1,3 mil pessoas de todos os Estados Unidos. O novo estudo é focado no primeiro grupo de participantes, ou seja, cerca de 600 gestantes com covid-19, que se inscreveram até 10 de julho.

Desde o início, a diversidade racial foi foco central do recrutamento, diz Jacoby. Muito antes do surgimento da covid-19, o racismo sistêmico levou a grandes disparidades nos cuidados de saúde e nas oportunidades socioeconômicas, que se refletem nos desfechos da gravidez. As mulheres negras têm até seis vezes mais probabilidade de falecer por complicações durante a gravidez do que as mulheres brancas.

A pandemia aumenta essas desigualdades. A proporção de negros e latino-americanos hospitalizados por covid-19 é quase cinco vezes maior do que a de pessoas brancas. Inscrever um grupo diversificado no estudo PRIORITY permitiria aos pesquisadores abordar questões de progressão da doença específicas para essas comunidades vulneráveis. O novo relatório inclui 41% de negros, indígenas e pessoas de cor, e até 15% do grupo de estudo preencheu a inscrição em um idioma diferente do inglês.

“Como sabemos, o idioma não é uma barreira para a contaminação pelo vírus”, diz Jacoby.

Além disso, a maioria dos estudos anteriores sobre covid-19 e gestação foi realizada com pessoas que foram hospitalizadas, o que significa que apresentavam sintomas moderados e graves. Mas 95% dos participantes do PRIORITY estão combatendo a doença em casa, assim como a grande maioria das pessoas com a doença nos Estados Unidos. A esperança era obter uma noção representativa de como ocorre a progressão da doença, não apenas entre as gestantes, mas também nas comunidades dos Estados Unidos.

“São seus amigos, vizinhos e familiares que convivem com a covid-19, mas que não estão doentes o suficiente para precisar de hospitalização”, disse ela.

No geral, os resultados sugerem que muitas gestantes podem ter sintomas prolongados da covid-19, mas o motivo exato permanece incerto. A equipe está trabalhando para desvendar os fatores envolvidos e planeja desenvolver estatísticas mais abrangentes agora que o estudo PRIORITY completo concluiu o recrutamento.

Em geral, pessoas com sintomas prolongados da covid-19 permanecem um mistério. Não está claro por que seus sintomas não desaparecem em duas semanas, como os casos leves comuns, e quão comuns eles são na população em geral. Até agora, pequenas diferenças nos grupos inscritos em estudos de pessoas com sintomas prolongados tornam as comparações diretas desafiadoras, observa Cross. Ela aponta para uma investigação em um hospital francês que constatou que dois terços dos adultos com casos leves de covid-19 seguem relatando sintomas até dois meses depois de começarem a se sentir mal. No entanto, uma pesquisa por telefone conduzida pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos descobriu que apenas 35% das pessoas tiveram consequências prolongadas duas a três semanas após o teste.

O próprio projeto PRIORITY, como qualquer estudo, apresenta limitações. Jorge Salinas, epidemiologista do hospital da Faculdade de Medicina Carver da Universidade de Iowa, observa que há uma tendência de os participantes serem mais ricos e mais instruídos do que a população em geral, com 41% informando uma renda de mais de US$ 100 mil por ano. Em parte, isso ocorre porque as profissionais de saúde grávidas constituem uma grande parte (um terço) dos participantes do estudo.

“A covid tem nos surpreendido todas as semanas desde que surgiu”, diz Salinas, ressaltando que não faz nem um ano dos primeiros casos notificados na China. “Continuaremos aprendendo sobre as consequências em longo prazo da covid nos próximos anos e décadas.”

Cross observa que a tendência do estudo para indivíduos com maior poder aquisitivo pode significar que seu quadro geral é ligeiramente mais “otimista” do que o que está acontecendo na realidade em todo o país.

“Estamos entrando em uma fase diferente da pandemia e temos sorte de ter pessoas desenvolvendo essa importante pesquisa”, diz Cross. “Temos alguns dados aos quais podemos recorrer, o que nos faz sentir um pouco mais confiantes no aconselhamento de pacientes e tomadas de decisões de tratamento”.

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