Após quatro décadas em busca de vacina contra o HIV, surge uma nova esperança

Embora a realidade envolva muito mais nuances do que sugere a recente comoção em torno do assunto, uma estratégia inovadora finalmente proporciona novas ferramentas para combater esse vírus devastador.

Por Emily Sohn
Publicado 17 de mai. de 2021, 10:29 BRT
HIV Vaccine

Imagem de computador da proteína imunoestimulante eOD-GT8.

Image Courtesy of Joseph Jardine, Sergey Menis, William Schief of Scripps Research and IAVI.

Quando o virologista José Esparza começou a trabalhar com a Organização Mundial da Saúde para combater a epidemia de aids na década de 1980, ele e diversos colegas estavam convencidos de que uma vacina seria a solução — e que ela seria desenvolvida rapidamente.

O otimismo se respaldava em pura ciência: os pesquisadores já sabiam que o organismo produz anticorpos contra o vírus da imunodeficiência humana, que causa a aids. E estimular o corpo a produzir esses anticorpos já era uma estratégia de vacina comum e bem-sucedida, responsável por reduzir drasticamente os casos de sarampo, varíola e muitas outras doenças. Combater a aids parecia igualmente possível.

“Achávamos que seria moleza”, disse Esparza, ex-consultor sênior da Fundação Bill & Melinda Gates e agora afiliado à Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland. “Não conhecíamos a complexidade do HIV.” Mais de três décadas depois, ainda não existe uma candidata viável a vacina contra o HIV, mesmo que os cientistas tenham produzido diversas vacinas eficazes contra o vírus SARS-CoV-2 que causa a covid-19 menos de um ano após seu surgimento.

No entanto, descobertas recentes estão gerando novas esperanças. Em uma conferência internacional sobre a aids em fevereiro, pesquisadores da Scripps Research e IAVI, uma organização sem fins lucrativos de pesquisa de vacinas, anunciaram resultados promissores em testes sanguíneos em um estudo clínico de fase 1 realizado em humanos para testar uma nova estratégia de vacina contra o HIV. Os resultados, que ainda não foram publicados, atraíram a atenção do público de uma forma que só seria possível na era das redes sociais. “ISSO É GIGANTESCO”, dizia um tweet do usuário @AugustusRotter. O tweet foi curtido e retuitado milhares de vezes no início de abril.

A realidade envolve muito mais nuances do que sugere a comoção exagerada, diz William Schief, imunologista da Scripps e diretor executivo de design de vacinas do Centro de Anticorpos Neutralizantes da IAVI. Embora, de acordo com ele, a resposta imunológica detectada por sua equipe seja uma prova de conceito importante; na prática, ainda levará muitos anos até que se consiga produzir vacinas que tornem as pessoas menos suscetíveis a contrair o HIV. Ainda assim, uma eventual vacina provavelmente será composta de diversas doses, o que pode dificultar sua comercialização.

“Do ponto de vista científico, é um belo conceito”, afirma Esparza. “Na prática, não será fácil implementar.”

Ainda assim, após de décadas de contratempos, os resultados são uma boa notícia. Além disso, há ligações intrigantes com os esforços realizados para a produção de vacinas contra a covid-19, que podem ajudar a acelerar as pesquisas de uma vacina que combata o HIV.

“É um pequeno passo em direção à produção de uma vacina contra o HIV, mas também não deixa de ser um passo gigantesco”, sugerindo um caminho viável pela frente, diz Schief. “E, de fato, nesse caso específico, deu incrivelmente certo.”

Três ondas de esperança

A busca por uma vacina contra o HIV começou logo depois que os cientistas isolaram o vírus e confirmaram que ele era responsável por causar a aids, em 1984. Desde então, a busca científica está na terceira onda de pesquisas, conta Esparza, que publicou um relato histórico da busca por uma vacina contra o HIV em 2013.

Na primeira onda, tentou-se colocar em prática um conceito bastante conhecido: estimular o sistema imunológico a produzir os anticorpos neutralizantes, que inativam vírus específicos. Diversas outras vacinas funcionam assim, incluindo aquelas contra a covid-19. Durante anos, os pesquisadores trabalharam para identificar os anticorpos produzidos em resposta à infecção pelo HIV para, então, desenvolver vacinas que induzissem a produção de anticorpos semelhantes.

Mas o vírus HIV se mostrou um inimigo difícil de enfrentar. Os anticorpos têm como alvo proteínas específicas na superfície de um vírus. No entanto, o HIV sofre mutações rapidamente criando variantes que os anticorpos não conseguem reconhecer, o que significa que está sempre um passo à frente do sistema imunológico. Em um estudo clássico, conta Schief, os pesquisadores testaram repetidamente amostras sanguíneas de pessoas infectadas com HIV e descobriram que os anticorpos produzidos pelo sistema imunológico estavam sempre cerca de três a seis meses atrasados em relação ao vírus.

“O HIV ainda é um alvo científico muito mais difícil” do que o SARS-CoV-2, diz Larry Corey, especialista em virologia, imunologia e desenvolvimento de vacinas do Centro Fred Hutchinson de Pesquisa contra o Câncer, em Seattle, e pesquisador da HIV Vaccine Trials Network. “Cerca de 98% das pessoas se recuperam do SARS-CoV-2, mas nenhuma consegue vencer o HIV, e são cerca de 78 milhões de infectados.”

No início dos anos 2000, os pesquisadores iniciaram a segunda onda de pesquisas para desenvolvimento de uma vacina contra o HIV, dessa vez com foco nos linfócitos T citotóxicos, que são semelhantes a soldados responsáveis por “matar” células infectadas, em vez de tentar estimular a produção de anticorpos. Nos humanos, a imunidade em longo prazo depende de dois grupos principais de células: os linfócitos B e os linfócitos T. Ambos ajudam a produzir anticorpos, mas os linfócitos T também procuram e destroem células infectadas. A ideia das vacinas de linfócitos T era estimular as células que reconhecem proteínas internas no vírus.

Em 2007, a ideia não apenas falhou no fornecimento de proteção em um ensaio clínico randomizado e duplo-cego de fase 2 chamado STEP, como também pareceu aumentar o risco de infecção pelo HIV. “O estudo foi um fracasso”, conta Esparza.

Mas essa estava longe de ser a única tentativa fracassada de produzir uma vacina. Após décadas de estudos em humanos, apenas um deles demonstrou algum grau de eficácia no mundo real. A combinação de duas vacinas em 2009 na Tailândia, que adotou a estratégia da primeira onda de induzir a produção de anticorpos, reduziu as taxas de infecção por HIV em 31% — mas o resultado não foi suficiente para obter aprovação regulatória.

Linfócitos B naïve

A terceira e atual onda de pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV começou no fim dos anos 2000, quando os pesquisadores descobriram que algumas pessoas infectadas com o HIV, a minoria delas, produzem anticorpos especialmente potentes que podem neutralizar diversas cepas do HIV de uma só vez. Até o momento, os cientistas identificaram dezenas desses anticorpos amplamente neutralizantes, que têm como alvo partes da superfície viral (semelhante às proteínas de espícula no SARS-CoV-2) que são as mesmas independentemente da cepa.

As pessoas que produzem essas proteínas ainda não conseguem vencer o HIV porque a produção desses anticorpos não acontece até que a infecção viral tenha se instalado e o vírus continua a sofrer mutações nesse meio tempo, afirma Schief. Mas a descoberta gerou uma ideia nova: talvez uma vacina eficaz pudesse ficar um passo à frente do vírus ao ter como alvo os chamados linfócitos B naïve (também conhecidos como células precursoras), que circulam em nosso sangue, diz Schief. Se uma vacina pudesse fazer com que os linfócitos B naïve sofressem mutações que os transformassem em células capazes de produzir anticorpos amplamente neutralizantes antes da infecção pelo HIV, o organismo poderia combater a infecção quando encontrasse o vírus pela primeira vez.

Em 2010, o grupo de Schief começou a trabalhar com uma classe de anticorpos amplamente neutralizantes chamados VRC01, o primeiro a ser descoberto pelo NIH Vaccine Research Center. Primeiro, eles desenvolveram uma nanopartícula de proteína que, de acordo com o grupo, poderia se ligar aos linfócitos B naïve em amostras de sangue humano. Em estudos com camundongos, a nanopartícula conseguiu ativar essas células e induzi-las a se multiplicar e sofrer mutações para produzir anticorpos semelhantes aos VRC01. O objetivo do novo estudo foi descobrir se o mesmo poderia acontecer em humanos.

Foi um grande “se”. Apenas um a cada 300 mil linfócitos B naïve aproximadamente tem potencial para se transformar em células que produzem anticorpos VRC01, diz Schief. Mas em uma análise sanguínea complexa, a equipe constatou que 35 das 36 pessoas que receberam a vacina (uma “nanopartícula de proteína projetada”) produziram as respostas desejadas nos linfócitos B.

As descobertas, que ainda estão sendo analisadas e não foram enviadas para publicação, estão longe de demonstrar qualquer tipo de efeito protetor contra o HIV, diz Schief — embora diversas pessoas nas redes sociais tenham comentado sobre o assunto como se uma vacina contra o HIV estivesse na reta final.

“No Twitter, uma pessoa disse que nosso estudo estava induzindo respostas que poderiam oferecer proteção contra o HIV a 97% dos vacinados”, diz ele. “Isso não é totalmente verdade.”

É possível, afirma Schief, que as pessoas recebam diversas doses ao longo de semanas ou anos. A primeira dose teria como objetivo iniciar o processo pesquisado no novo estudo: interagir com os linfócitos B naïve certos para dar início ao processo. As doses subsequentes orientariam os linfócitos B a produzir anticorpos amplamente neutralizantes que já estivessem totalmente maduros.

“Estamos tentando assumir o controle do sistema imunológico e educá-lo passo a passo com uma vacina”, explica Schief. A mesma ideia pode algum dia possibilitar o desenvolvimento de vacinas contra o vírus da zika, hepatite C, malária e outros, incluindo uma vacina universal contra a gripe e futuros coronavírus.

O trabalho também é um sinal importante de que os cientistas estão no caminho certo, diz Corey, mencionando um estudo recente que concluiu que a administração de altos níveis de anticorpos neutralizantes pode prevenir infecção por HIV.

“O grande avanço — e usarei a palavra “avanço” — do estudo conduzido pela Scripps é que podemos fornecer um antígeno que tinha esses precursores em alta prevalência nas pessoas, e eles não estão sendo excluídos”, Corey diz. “O primeiro passo foi um avanço.”

Aproveitando a infraestrutura utilizada no desenvolvimento de vacinas contra a covid-19 

Além dos desafios científicos, as pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV são, há muito, limitadas pela falta de um senso de urgência. Embora a vontade pública e política, em conjunto com grandes investimentos da indústria, tenha impulsionado o desenvolvimento em tempo recorde das vacinas contra a covid-19, o HIV causa uma doença que afeta desproporcionalmente grupos marginalizados, Esparza diz, e as empresas farmacêuticas nunca quiseram investir em ensaios clínicos caros sobre o HIV até os cientistas desvendarem mais conceitos científicos básicos.

“Se a sociedade realmente valorizasse uma vacina contra o HIV, teríamos realizado diversos estudos de eficácia em paralelo, como foi feito com a covid-19”, afirma Esparza. “Os investimentos são altos. Mas o custo da epidemia de HIV é enorme.”

De acordo com um estudo, os gastos com saúde envolvendo HIV/aids somaram mais de US$ 562 bilhões em 188 países de 2000 a 2015.

Assim, enquanto o mundo assiste à chegada das vacinas contra a covid-19 a uma velocidade sem precedentes, espera-se que o entusiasmo incentive esforços em longo prazo para o desenvolvimento de vacinas que serão cruciais para combater o HIV.

Já há uma relação entre os dois. Os esforços para desenvolver as vacinas contra a covid-19 aproveitaram a infraestrutura clínica, laboratorial e bioestatística criada pela HIV Vaccine Trials Network, afirma Corey. Há anos, acrescenta Schief, seu grupo colabora com a Moderna para testar a entrega de suas proteínas por RNAm em modelos animais. Eles planejam trabalhar juntos para desenvolver, com rapidez, vacinas candidatas contra o HIV para uso em ensaios clínicos em humanos.

Considerando o entusiasmo pelas vacinas contra a covid-19 e pela nova tecnologia de RNAm capaz de produzir variações da vacina rapidamente, este pode ser o momento de gerar novo interesse pela busca por vacinas contra o HIV, o que também exigirá a colaboração da população.

“Se descobrirmos uma vacina contra o HIV”, diz Schief, “acredito que a experiência mundial com as vacinas contra a covid-19 poderá facilitar a implementação.”

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