Variante com ‘dupla mutação’ agrava crise da covid-19 na Índia

Embora sua disseminação na Índia seja preocupante, estudos preliminares comprovam que vacinas ainda são eficazes contra essa nova variante viral.

Por Sanjay Mishra
Publicado 5 de mai. de 2021, 17:00 BRT
India Coronavirus

Manoj Kumar sentado ao lado da mãe no carro enquanto ela recebe oxigênio gratuitamente para tratamento de problema respiratório, durante o surto de covid-19 em Ghaziabad, Índia, em 24 de abril de 2021.

Foto de Danish Siddiqui, Reuters

O comportamento humano é provavelmente mais responsável pela segunda onda da pandemia de covid-19 do que as novas variantes mutantes que surgem em todo o país. Mas a combinação de ambos os fatores está se revelando catastrófica.

A Índia apresentou mais de 382 mil novos casos de covid-19 nas últimas 24 horas, e as mortes ultrapassaram 3,7 mil neste mesmo período. Muitos especialistas suspeitam que os números podem ser ainda maiores. O país representa atualmente uma em cada três infecções notificadas diariamente em todo o mundo.

“O fator principal de propagação do vírus é o comportamento das pessoas. A propagação do vírus se deve, em grande parte, à falta de cuidado de uns com os outros. As variantes apenas se aproveitam de nosso descuido”, afirma Rakesh Mishra, diretor do Centro Indiano de Biologia Celular e Molecular.

Esse aumento de casos de covid-19 ocorre três meses depois da declaração do ministro da saúde indiano de que “a Índia havia controlado a pandemia com sucesso”. Ele se baseou em estudos pautados por um “supermodelo matemático indiano” que sugeriam que o país “poderia ter atingido a imunidade coletiva” por meio de infecções naturais. Mas havia falhas no modelo e os resultados foram distorcidos pela falta de dados precisos. Agora, a quantidade de novas infecções diárias paralisou o sistema de saúde; o oxigênio e os suprimentos de proteção individual esgotaram, não há leitos hospitalares disponíveis e os pacientes estão morrendo nas calçadas e nas ruas enquanto aguardam do lado de fora dos hospitais.

Alarmado pelos surtos locais de B.1.1.7, variante identificada pela primeira vez no Reino Unido, o governo formou uma rede composta por diversos laboratórios denominada Consórcio Indiano de Genômica de Sars-CoV-2 (Insacog) para monitorar a evolução do Sars-CoV-2, vírus que causa a covid-19. Em 24 de março, após sequenciar menos de 1% das amostras do novo coronavírus coletadas por seus laboratórios integrantes em todo o país, o Insacog anunciou ter encontrado “uma nova variante com dupla mutação”. O que deixou os cientistas alarmados foi o fato de que a variante apresentava características de duas linhagens preocupantes: as variantes identificadas pela primeira vez na Califórnia (B.1.427 e B.1.429), e as descobertas na África do Sul (B.1.351) e no Brasil (P.1).

O surgimento de uma variante

Apesar de não ter sido notada na época, a mutação já havia sido sequenciada e seu código genético já constava do banco de dados global em outubro de 2020, mas “parece que simplesmente passou despercebida”, afirma David Montefiori, especialista em imunologia viral e desenvolvimento de vacinas do Instituto Duke de Vacinas Humanas. Essa nova variante se espalhou rapidamente, causando mais de 60% de todas as infecções pelo novo coronavírus apenas no estado indiano de Maharashtra, que apresentou o maior número de todos os casos de covid-19 na Índia.

O surgimento de variantes mais transmissíveis destaca as grandes limitações na situação atual da vigilância global não apenas do Sars-CoV-2, mas de todas as doenças emergentes em regiões remotas. Havia uma expectativa de que o Insacog sequenciaria 5% das amostras que testaram positivo em todos os estados da Índia, mas o total sequenciado foi muito menor: apenas cerca de 13 mil até 15 de abril. “É um problema mundial”, lamenta Montefiori.

“Evidentemente, há muita vigilância genômica no mundo, mas estou convicto de que a Índia precisa elevar seu percentual. É comum perguntarem qual seria o percentual ideal. O Reino Unido, padrão de referência em vigilância genômica, talvez sequencie entre 5% e 10%. A Índia sequencia muito menos de 1%”, revela o Dr. Ashish Jha, especialista em políticas de saúde pública na Universidade Brown.

O que é uma “dupla mutação”?

Os vírus sofrem mutações frequentes, que surgem aleatoriamente, explica So Nakagawa, da Universidade de Tokai, que vem estudando as variantes identificadas pela primeira vez na Califórnia. Aliás, os vírus Sars-CoV-2, HIV e influenza, todos os quais codificam suas instruções genéticas por meio da molécula de RNA, sofrem mutação com mais frequência do que outros tipos de vírus devido a erros de replicação ao se copiar em suas células hospedeiras.

Mais de um milhão de sequências distintas de Sars-CoV-2 foram registradas no Gisaid, banco de dados público global. Muitas mutações irrelevantes passam despercebidas. Porém algumas mutações podem alterar aminoácidos, que são as bases das proteínas virais, “o que pode alterar suas características”, observa Nakagawa. Quando uma ou mais mutações persistem, em vez de serem eliminadas evolutivamente, produzem novas variantes distintas daquelas que já estão em circulação e recebem nomes.

A nova variante, agora identificada como B.1.617, apresenta duas mutações conhecidas; a primeira na posição 452 da proteína de espícula e a segunda, na 484. “Mas não deveria ser denominada como dupla mutação, é um nome incorreto”, assegura Mishra.

Na verdade, a B.1.617 apresenta 11 outras mutações —13 ao todo, das quais sete estão situadas na proteína de espícula que pontilha a superfície do Sars-CoV-2 e confere ao vírus sua estrutura de “coroa” característica. O vírus utiliza as proteínas de espícula para se fixar à proteína receptora ECA2 existente na superfície do pulmão e em outras células humanas e assim infectá-las. Uma oitava mutação na B.1.617 localizada no centro da proteína de espícula imatura — e também encontrada em algumas variantes de Nova York — pode aumentar a transmissão do vírus, proporcionando a ele uma vantagem adaptativa.

“As mutações da B.1.617 foram estudadas isoladamente, mas não em conjunto”, explicou o virologista Benjamin Pinsky. “O mais importante é que há diversas mutações surgindo na proteína de espícula.”

Localização é importante

“É algo muito frequente nos vírus”, comenta Grace Roberts, virologista da Queen’s University Belfast. “As proteínas da superfície apresentam uma evolução mais rápida, sobretudo em um vírus novo, pois ele precisa evoluir para se ligar melhor às células”.

Como a proteína de espícula recobre a superfície do vírus Sars-CoV-2, ela é, portanto, o principal alvo do sistema imune. As células do sistema imune produzem anticorpos que reconhecem e se ligam ao vírus e o “neutralizam”. É por isso que todas as vacinas atuais contra a covid-19 também recorrem à proteína de espícula para desenvolver imunidade no organismo humano.

Embora aleatórias, as mutações na proteína de espícula que mudam de aparência e estrutura podem ajudar o vírus a se esquivar dos anticorpos. Essas adaptações aumentam a sobrevivência e a capacidade de replicação do vírus. “Qualquer mutação na proteína de espícula pode afetar o fenótipo de neutralização do vírus e sua infectividade, transmissibilidade e talvez até sua patogênese”, afirma Montefiori. Ele demonstrou que as variantes da Califórnia com mutações L452R são entre duas e três vezes menos suscetíveis a anticorpos induzidos por vacinas e em amostras de plasma convalescente.

Estudos semelhantes sugerem que a mutação L452R pode aumentar a quantidade de vírus capazes de infectar uma única célula, o que poderia promover a replicação viral e ajudar o vírus a se ligar mais firmemente ao receptor ECA2 na superfície das células. No entanto Kei Sato, pesquisador líder de um desses estudos alertou que, “não se sabe ao certo se essa mutação pode ser mais perigosa à população humana.”

Qualquer mutação na posição E484, por si só, como é o caso das variantes B.1.351 e P.1, pode ajudar o vírus a se esquivar de anticorpos neutralizantes, adverte Montefiori. Como, além disso, está associada à mutação L452R, provavelmente também responsável por ajudar o vírus a se esquivar de anticorpos, a B.1.617 pode ser uma variante muito problemática. “É uma grande prioridade caracterizar a B.1.617,” acrescentou Montefiori.

Viajante internacional

A B.1.617 rapidamente pegou carona pelo mundo e se espalhou por todo o planeta. Em 3 de abril, a variante B.1.617 foi identificada em um paciente dos Estados Unidos. “Monitoramos todos os positivos que chegam ao nosso laboratório em busca de três mutações associadas a variantes preocupantes ou variantes de interesse”, explica Pinsky. “Conseguimos identificar aquela mutação porque ela se destacou para mim”.

A variante poderia ter surgido de forma independente nos Estados Unidos? “Os casos identificados no país não surgiram de forma independente, mas sim por meio de transmissões globais”, responde Pinsky. A variante B.1.617 foi identificada, até o momento, em 16 países em todos os continentes, exceto na África.

Como a B.1.617 reúne diversas mutações ameaçadoras, seus efeitos cumulativos parecem ter sido “confirmados por sua rápida expansão atualmente na Índia”, prossegue Pinsky.

Mas nem todos concordam.

“Também é preciso ressaltar que a quantidade de sequências virais analisadas na Índia (cerca de 100 sequências por dia) é muito inferior à quantidade de novos casos na Índia (cerca de 300 mil por dia). Portanto, ainda não se sabe ao certo se o grande aumento atual de covid-19 na Índia se deve à B.1.617 “, escreveu Sato por e-mail.

“A chamada variante de disseminação rápida ainda persistente no país representa cerca de 10% dos casos, o que significa que 90% dos casos na atualidade são provenientes de outras formas virais e não daquelas com dupla mutação”, disse Rakesh Mishra, do Centro Indiano de Biologia Celular e Molecular.

A vigilância genômica poderia ter reduzido a segunda onda?

Embora a vigilância genômica das variantes seja fundamental, ela isoladamente não é capaz de evitar novos surtos ou eventos de supercontágio, tampouco de pôr fim à pandemia. A vigilância genômica permite apenas aos cientistas monitorar a circulação das infecções, as formas de transmissão e os locais afetados pelo vírus.

“A Índia se revelou alheia a isso”, conta Jha. Ele acredita que o país precisa aumentar o sequenciamento, algo que teria sido útil. Porém não está certo de que os dados de vigilância teriam evitado ou reduzido a segunda onda. “E um dos motivos é que também é preciso tomar medidas com base nessas informações. Certamente havia informações suficientes até mesmo sem a vigilância genômica no fim de março e, ao meu ver, entre o início e meados de março, o cenário já vinha se deteriorando”, afirma Jha.

“Vacinar o máximo possível de pessoas, o quanto antes, é a chave para controlar essa pandemia”, observa o virologista Pinsky.

Existem algumas evidências preliminares de que as vacinas existentes são eficazes contra a B.1.167 e outras variantes. “Enquanto a imunização não termina, é importante que todos adotem todas as medidas de saúde pública já conhecidas por todos, pois elas continuam sendo extraordinariamente eficazes contra a propagação dessa doença infecciosa”, acrescenta Pinsky. “As medidas consistem em usar máscaras, praticar distanciamento social e lavar as mãos. Todas essas medidas ainda funcionam contra as variantes e é preciso mantê-las até que mais indivíduos sejam vacinados.”

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