‘Voltar ao normal’ pode parecer assustador. Você também se sente assim?

Após vários meses de ansiedade, raiva e esgotamento, muitas pessoas estão com dificuldades para retornar aos comportamentos usuais de antes da pandemia. Os especialistas avaliam maneiras de enfrentar o trauma.

Por Sharon Guynup
Publicado 28 de mai. de 2021, 07:00 BRT
Our Rattled Psyche

A sensação de desânimo ou languidez que muitos de nós sentimos após 15 meses de pandemia é comum. Alguns podem ter até mesmo aversão a retornar à vida normal.

Foto de Jarod Lew

Médicos previram o que alguns especialistas estão chamando de “quarta onda” da pandemia de covid-19. Especialistas afirmam que os impactos à saúde mental serão “profundos e de longo alcance“ e provavelmente persistirão mais do que os impactos à saúde física, exaurindo os sistemas de saúde mental já sobrecarregados em todo o mundo.

Apesar do aumento das infecções na Índia e no Brasil, houve uma drástica redução no número de casos nos Estados Unidos, na Europa e em muitas outras regiões, diminuindo as restrições. Mas, em todo o mundo, muitos estão sentindo efeitos psicológicos remanescentes do que tem sido uma experiência coletiva traumática.

“A pandemia ocasionou um conjunto de fatores psicológicos que podem provocar problemas de saúde emocional: ansiedade, confusão mental, depressão e estresse pós-traumático”, afirma Luana Marques, psicóloga e professora da Faculdade de Medicina de Harvard. Sintomas de fadiga, exaustão e esgotamento são comuns, e o estresse pode ter efeitos duradouros na fisiologia e função cerebral.

Relatório Mundial da Felicidade de 2021 observa que, “com o surgimento da pandemia, houve um declínio enorme e imediato na saúde mental das pessoas em muitos países”. Pesquisas anteriores sobre desastres e pandemias indicam que a maioria das pessoas se recuperará ao retornar aos locais de trabalho e à escola, passar tempo com amigos e familiares e perder o medo da doença. No entanto uma minoria considerável pode enfrentar problemas de saúde mental novos ou duradouros.

Os males à saúde mental

Cerca de 15 meses de isolamento, solidão, chamadas pelo Zoom, luto, doença, monotonia, perda de emprego e dificuldades financeiras causaram “um aumento extraordinário na ansiedade e depressão”, afirma Rebekah Levine Coley, psicóloga de desenvolvimento da Faculdade de Boston. “O nível desses transtornos não tem precedentes.”

Durante os primeiros nove meses da pandemia, seis vezes mais adultos nos Estados Unidos relataram problemas de saúde mental do que no início de 2019, segundo dados do Departamento de Censo dos Estados Unidos, coletados como parte da pesquisa em andamento Household Pulse Survey, que quantifica os efeitos socioeconômicos do novo coronavírus nos lares dos Estados Unidos. Em fevereiro, dentre os quase 1,5 milhão de adultos norte-americanos que participaram dessa pesquisa, 41,5% relataram sintomas de ansiedade ou depressão, percentual semelhante a outros países que monitoram a saúde mental.

A ansiedade ou a depressão se manifestam de várias maneiras. Alguns não conseguem se concentrar, são improdutivos ou se sentem totalmente exaustos. Muitos estão de luto pela perda de entes queridos. Outros estão solitários ou inseguros sobre o que fazer agora que foram vacinados, ou temerosos de que uma variante burle a proteção da vacina e adoeça a eles ou a seus entes queridos.

Pesquisadores e médicos relatam que as pessoas estão dormindo mal ou adquirindo hábitos pouco saudáveis. Um estudo constatou que o isolamento social agudo estimula desejos semelhantes à fome, o que fez com que alguns comam mais e ganhem peso; algumas pessoas engordaram muito mais que alguns poucos quilos. Em um estudo, 60% das pessoas relataram um maior consumo de bebidas alcóolicas.

A incapacidade de lidar com a situação gerou outras consequências mais sombrias. A disparada nas taxas de suicídio no Japão levaram à nomeação de um “ministro da solidão” em fevereiro. Não houve um aumento no número de suicídios nos Estados Unidos ou na Europa, mas como muitos indivíduos ainda estão em modo de sobrevivência, os sintomas de trauma ainda podem se manifestar posteriormente.

Nos Estados Unidos, houve um aumento acentuado em outras “mortes por desespero” em 2020. As overdoses de drogas, principalmente fentanil e outros opioides sintéticos, podem ter ultrapassado 90 mil, um aumento em relação aos cerca de 70,6 mil em 2019. Embora a alta já estivesse sendo observada, foi a maior em duas décadas.

Grupos de alto risco para saúde mental

O isolamento afetou pessoas em todo o mundo. Mas aqueles que foram mais afetados se enquadram em algumas categorias, explica Barbara Sahakian, professora de neuropsicologia clínica da Universidade de Cambridge. Assim como algumas comunidades suportaram mais as disparidades de saúde da pandemia, os impactos à saúde mental atingiram alguns grupos com mais força do que os demais. Jovens adultos, mulheres, pais de crianças pequenas, profissionais de saúde da linha de frente e com menor instrução, comunidades negras e hispânicas e aqueles que possuíam problemas de saúde mental preexistentes estão sofrendo mais.

De forma geral, a pesquisa de Sahakian conclui que aqueles que conseguiram manter fortes vínculos sociais “demonstraram muito menos alterações cognitivas depressivas e negativas”.

A dificuldade financeira causou um forte impacto na saúde mental geral, em razão da perda de empregos, do aumento da fome e dos despejos enfrentados por algumas famílias com a suspensão das proibições de despejos. Mais de 2,3 milhões de mulheres abandonaram seus trabalhos, pois muitas delas não conseguiram encontrar creches para deixar os filhos com o fechamento das escolas. “Não importa qual é o método de análise de dados”, conta Marques, “a riqueza oferece proteção. O rico pode ficar em casa, contratar ajudantes, sustentar a família.”

Para as crianças que estão assistindo às aulas remotamente por longos períodos — sem relacionamentos com colegas, orientação escolar e refeições — o custo à saúde mental tem sido catastrófico. “Os prontos-socorros e hospitais agora estão repletos de crianças e famílias em crise”, afirma Christina Gurnett, neurologista pediátrica do Hospital Infantil de St. Louis, no Missouri. Os sintomas — como transtornos alimentares e do sono, raiva, ansiedade, automutilação e agressão — não são diferentes, mas estão mais frequentes e graves. Um estudo de Harvard com 224 crianças com idades entre 7 e 15 anos nos Estados Unidos verificou que dois terços apresentavam sintomas de ansiedade e depressão clinicamente significativos — mais do que o dobro de 2019.

Crianças pequenas, apelidadas por alguns de “bebês da pandemia”, tiveram pouca interação social durante um período crucial do desenvolvimento. Adolescentes que normalmente estariam testando sua independência e habilidades de namoro estão em casa com os pais.

Os trabalhadores da linha de frente foram bastante atingidos, relata Sahakian, devido à sobrecarga de trabalho associada ao medo do contágio agravado pela falta de equipamentos de segurança, já que testemunharam mortes sem precedentes por mais de um ano.

Sahakian também observa que, diante da dificuldade de acesso aos serviços e do aumento do isolamento, a saúde mental de muitos com doenças preexistentes também se deteriorou.

O impacto da covid-19 sobre o cérebro

Doenças infecciosas, como a covid-19, podem afetar o cérebro, alterando a função cognitiva e a tomada de decisões, causando problemas agudos e crônicos, explica Maura Boldrini, psiquiatra e neurocientista do Centro Médico Irving da Universidade de Colúmbia, em Nova York. “Algumas pessoas, ao chegar a um hospital com sintomas semelhantes à depressão, alucinações ou paranoia”, foram diagnosticadas com covid-19, conta ela. A doença também causou derrames graves e secundários.

O vírus provoca uma sobrecarga do sistema imune, o que produz uma inflamação geral. Após a recuperação, alguns passam pelo que ficou conhecido como “covid longa”. A inflamação não cessa, semelhante a uma doença autoimune como o lúpus. A inflamação prolongada no cérebro afeta a comunicação entre os neurônios e pode matá-los.

Alguns têm problemas duradouros de memória e concentração, perda de olfato e paladar, novos episódios de ansiedade, depressão e até psicose e convulsões. O vírus causou mudanças na personalidade e no comportamento; alguns cometeram suicídio. A depender do sintoma, o vírus afetou entre 20% e 70% dos pacientes. Quase um terço desenvolveu estresse pós-traumático.

“Quanto tempo duram esses sintomas? Não sabemos”, responde Boldrini.

Cérebro sob estresse

Os humanos estão programados para sobreviver. Quando sob ameaça, nosso “cérebro reptiliano” — a amígdala — reage, a adrenalina inunda a corrente sanguínea e estamos prontos para lutar, fugir ou congelar. Mas, ao contrário da maioria dos outros perigos, a pandemia não foi passageira.

O medo reativo se transformou em estresse crônico, e nossos corpos ainda estão repletos de cortisol e outros hormônios do estresse tóxicos ao cérebro, possivelmente inibindo a produção de novos neurônios e causando mudanças que desencadeiam a depressão.

Nesse estado, a amígdala emocionalmente reativa se sobrepõe ao córtex pré-frontal — a parte do cérebro encarregada das funções executivas e da tomada de decisões. Uma ressonância magnética do cérebro ilustra bem isso: em um paciente traumatizado, a amígdala brilha intensamente, ao passo que o córtex pré-frontal escurece, indicando funcionamento reduzido.

O córtex pré-frontal também ajuda na sobrevivência — raciocinando e planejando, afirma Judson Brewer, psiquiatra e neurocientista da Universidade Brown. Se não conseguimos lidar com a incerteza, começamos a ficar ansiosos. “A ansiedade é como o fogo”, ilustra ele. “Quando não podemos prever o futuro, ficamos ansiosos. Assim, o ano de 2020 foi como jogar gasolina no fogo.” Se temos propensão a nos preocupar, ficamos ainda mais preocupados, o que nos deixa com a sensação de perigo constante e aflitos de forma prejudicial, explica ele.

Alguns padecem do que Marcantonio Spada e Ana Nikčević, psicólogos europeus, apelidaram de “síndrome de ansiedade da covid-19”. É caracterizada por comportamentos de enfrentamento “que podem manter as pessoas presas em um estado permanente de ansiedade e aflição”, com medo de sair, evitando locais públicos e outras pessoas e preocupadas constantemente se elas ou seus entes queridos irão contrair o vírus, afirma Spada.

Os sintomas são semelhantes a outros quadros clínicos, como o transtorno obsessivo-compulsivo e o estresse pós-traumático e possuem consequências psicológicas semelhantes a vivenciar uma guerra ou desastre, ambos os quais afetam sociedades e causam grandes perdas. Após um ano, prossegue Spada, esses hábitos podem ser difíceis de abandonar. Aqueles que estão sob pressão financeira, não têm apoio social ou possuem histórico de problemas de saúde mental estão sob maior risco.

Há uma escala de saúde mental que vai da prosperidade à depressão e ansiedade graves. Alguns estão presos em um ponto intermediário, em uma espécie de limbo psicológico, um estado caracterizado em 2002 pelo psicólogo Corey Keyes como “languidez”. O dicionário Merriam-Webster define languidez como “estar ou se tornar fraco, débil”, “viver em um estado de depressão ou vitalidade decrescente” ou “ficar desanimado”.

O desafio da readaptação à vida normal

Com o retorno de mais pessoas ao trabalho e às escolas, e com a reabertura das empresas, algumas pessoas estão se recuperando. Mas um número expressivo não está e tem dificuldades para se reintegrar à vida cotidiana: 33% dos norte-americanos relataram sintomas de saúde mental em abril — mais de 80 milhões de pessoas. Em outra pesquisa nos Estados Unidos, mais da metade dos pais expressou preocupação com os filhos.

Mas é apenas um retrato momentâneo: avaliar os danos reais levará anos. A pesquisa mostra que cerca de metade das pessoas se recuperará logo, mas outros podem enfrentar desafios por algum tempo. Marques observa que uma década após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, 12% dos socorristas ainda apresentavam sintomas clínicos de estresse pós-traumático. Três anos após se recuperarem da síndrome respiratória aguda grave (SRAG), causada por outro coronavírus, um quarto dos sobreviventes ainda tinha estresse pós-traumático.

Com 163 milhões de casos de covid-19 até meados de maio de 2021 e bilhões afetados pela pandemia em todo o mundo, a onda de pessoas que podem precisar de serviços de saúde mental pode ser um tsunami, afirma Marques. “Nos Estados Unidos, há no mínimo o dobro de pessoas com necessidade de assistência e não há capacidade para atendê-las. Globalmente, 90% daqueles que necessitam de ajuda não a obtém.”

Para enfrentar a crise em andamento, o Plano Americano de Resgate Econômico dos Estados Unidos, assinado em março, reservou US$ 4 bilhões para serviços de saúde mental e atendimento a abuso de substâncias. O plano oferece financiamento de toda sorte, como tratamento e prevenção de overdose e treinamento a profissionais de saúde e socorristas. Mas os especialistas afirmam que há uma grande escassez de profissionais de saúde mental, sobretudo para crianças.

Além disso, a saúde mental ainda é estigmatizada. “Acredito que seria melhor nos referirmos à saúde do cérebro, não à saúde mental, para que as pessoas se lembrem de que o cérebro também é um órgão, como o coração”, afirma Marques.

Além do tratamento profissional, existem métodos bastante simples e comprovados para lidar com o estresse. A meditação diária parece encolher a amígdala e espessar o córtex pré-frontal. Passear em meio à natureza reduz os níveis de cortisolExercícios físicos estimulam a resiliência emocional e, para alguns, pode ser tão eficaz quanto alguns tratamentos médicos. Uma boa alimentação e cerca de sete horas de sono também são importantes. A interação social é fundamental. Desconecte-se das notícias e redes sociais. Faça verificações semanais com os filhos para ajudá-los a lidar com a situação. O mapmyhabit.com, programa gratuito on-line desenvolvido por Brewer, ajuda as pessoas a registrar hábitos de ansiedade como um primeiro passo para mudar.

Marques e outros especialistas percebem a necessidade de haver uma campanha de saúde pública que ensine às pessoas os fundamentos científicos do estresse e como controlar as emoções: quando alguém sente ansiedade, a amígdala é ativada, mas há maneiras de acalmar o cérebro reativo e estimular o cérebro racional.

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