Adesão a vacinas contra diversas doenças está caindo de forma significativa no Brasil
O país já foi o primeiro em imunização. Mas agora a pandemia exacerbou o declínio na cobertura vacinal e especialistas alertam que doenças já erradicadas estão ressurgindo.
Crianças descansam em um barco na ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, durante uma iniciativa de vacinação em massa para imunizar pessoas acima de 18 anos contra o novo coronavírus, o vírus que causa a covid-19.
O mais de meio milhão de vidas perdidas devido à covid-19 no Brasil, sétimo país do mundo com mais mortes per capita, ressaltou a necessidade de ampliar a vacinação contra o novo coronavírus — e, de fato, a maioria dos brasileiros está ansiosa para tomar a vacina contra a doença.
Uma pesquisa realizada em maio mostrou que 91% das pessoas entrevistadas já haviam sido ou planejavam ser imunizadas contra o Sars-CoV-2, o vírus que causa a covid-19. Mas um número crescente de pessoas tem decidido adiar a vacinação de rotina, tanto suas quanto de seus filhos, que mantém doenças como poliomielite, tuberculose, sarampo, caxumba, rubéola e gripe sob controle. O cenário é condizente com as preocupações da Organização Mundial da Saúde e do Unicef de que a pandemia poderia colocar em risco os ganhos obtidos com a erradicação de uma série de doenças infantis.
“Não é apenas um fenômeno ocasionado pela pandemia: a cobertura vacinal no Brasil está caindo há vários anos. Em 2015, a meta de vacinar 90% a 95% da população contra doenças transmissíveis foi facilmente alcançada, porém, em 2019, uma queda significativa — 10% a 20% — deixou o país vulnerável a uma série de doenças evitáveis, erradicadas há muito tempo, causando até mesmo um surto de sarampo que permanece em curso desde 2018.
Para Renato Kfouri, pediatra especialista em doenças infecciosas e presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, a campanha de vacinação contra a covid-19 tirou o foco de outras vacinas, apesar de o “risco de as crianças adoecerem gravemente ou morrerem dessas outras doenças ser pelo menos 80 vezes maior do que o risco apresentado pela covid-19”.
Segundo um estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, que analisa os dados governamentais do Ministério da Saúde, em 2020, menos da metade dos municípios brasileiros atingiu ou superou as metas de cobertura estabelecidas pelo plano de imunização do país para nove vacinas, entre elas a MMR (contra sarampo, caxumba e rubéola), BCG (contra tuberculose) e contra a poliomielite. Embora a cobertura vacinal já estivesse em declínio devido ao comodismo, foi o medo da covid-19 que a fez cair ainda mais.
“O contexto atual é alarmante não só pela maior desconfiança da população com as vacinas em geral”, afirma Letícia Nunes, pesquisadora de economia da saúde e autora do estudo, “mas também porque, com o fim do distanciamento social e retorno às aulas presenciais, muitas crianças estarão suscetíveis a doenças evitáveis e suas complicações”.
No Brasil, o Ministério da Saúde costuma realizar campanhas de vacinação de longo alcance, atingindo a população por meio de anúncios na TV, redes sociais, outdoors, cartazes e folhetos.
O Ministério da Saúde não respondeu aos diversos pedidos de entrevista da National Geographic para discutir o que está sendo feito para melhorar a cobertura vacinal.
Da erradicação de doenças a surtos
Em 2015, a vacina MMR teve cobertura de 96,1%, pouco acima dos 95% necessários para manter as três doenças as quais combate controladas. Nesse mesmo ano, o Brasil recebeu uma certificação da Organização Mundial da Saúde (OMS) pela erradicação da rubéola e outra em 2016 pela erradicação do sarampo. A última vez que o país registrou casos de sarampo foi em 2015, com apenas 214 casos da doença.
Mas em 2017, a cobertura da vacina MMR caiu para 86,2%. No ano seguinte, milhares de imigrantes venezuelanos cruzaram a fronteira norte do Brasil, trazendo e transmitindo o sarampo, ocasionando um surto devido à cobertura vacinal estar bem abaixo da meta exigida. O baixo percentual de brasileiros vacinados — principalmente no Norte, onde a taxa em 2017 era de 76,2% — possibilitou a disseminação da doença.
Em 2018, foram registrados mais de 10,3 mil casos e, em 2019, apesar de um ligeiro aumento na cobertura vacinal, foram registrados cerca de 20,9 mil casos em várias regiões.
Naquele ano, o Brasil perdeu a certificação de erradicação da doença concedida pela OMS. Em 2020, a cobertura da vacina MMR foi de apenas 79,5%. Apesar do distanciamento social e do uso de máscaras devido à pandemia de covid-19, outros 8,4 mil casos de sarampo foram registrados.
Com a cobertura deste ano até agora em apenas 62,1%, os especialistas estão preocupados — e não apenas com a vacina MMR.
A única vacina a sofrer queda mais significativa na cobertura é a primeira dose contra a hepatite B, administrada em recém-nascidos de até 30 dias, que caiu de 90,9% em 2015 para 78,6% em 2019 e para 62,8% no ano passado. A vacina BCG, que protege contra a tuberculose, passou de 100% de cobertura em 2015 para 86,7% quatro anos depois e 73,3% em 2020.
Jovens não conhecem os riscos de doenças erradicadas
Embora exista um crescente movimento antivacina no país, os profissionais de saúde não veem isso como o principal motivo do declínio da excelente cobertura vacinal do Brasil.
Outros fatores influenciaram a taxa de declínio — incluindo dificuldades de deslocamento até os postos de saúde, principalmente quando as vacinas requerem mais de uma dose. Mas um dos fatores mais significativos, em especial entre os jovens, é uma percepção crescente do baixo risco oferecido por essas doenças.
“Eles se perguntam: eu realmente preciso vacinar meu filho?” salienta Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC). “Isso é um grande erro, pois as chances de mais doenças ressurgirem são altas.”
Exatamente pelo fato de a vacinação em massa ter tido o resultado esperado, diversas doenças foram controladas ou erradicadas durante anos e os brasileiros não testemunharam suas consequências. O desejo de ser vacinado contra o novo coronavírus é muito grande, observa Zambon, porque todos viram as repercussões da covid-19. Mas com a poliomielite, por exemplo, uma doença viral que pode afetar a medula espinhal, as pessoas se esquecem que ela pode ser mortal ou causar complicações graves, incluindo paralisia muscular.
“Temos a experiência de lidar com pacientes que ainda convivem com os efeitos da poliomielite após terem contraído a doença nas décadas de 1960 e 1970”, relata Fabiano Guimarães, diretor da SBMFC e ex-gerente de atenção básica da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, que continua praticando medicina de família e comunidade na cidade. “Esses pacientes dizem que ficam tristes em saber que hoje temos uma vacina que, naquela época, não era uma medida de prevenção disponível.”
E com a chegada da pandemia, pais em todo o mundo ficaram ainda mais receosos de vacinar seus filhos, uma situação que, conforme alertado pela OMS, pode levar à perda das conquistas globais em saúde pública possibilitadas pelas vacinas.
No Brasil, o medo de contrair o novo coronavírus tem levado os pais a adiar a vacinação de rotina de seus filhos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE Inteligência), a pedido da Sociedade Brasileira de Pediatria e da Pfizer, mostrou que, com a chegada da pandemia, 29% dos pais adiaram a vacinação e 9% desses pais disseram que vacinariam seus filhos apenas após o fim da pandemia.
“Informações sobre a covid-19 dominaram os noticiários e todos os meios de comunicação porque as pessoas estavam com medo, e com razão”, diz Kfouri. “Precisamos melhorar o trabalho de comunicação enfatizando que agora a população pode realizar consultas médicas, fazer exames preventivos e tomar as vacinas de rotina. Tudo isso pode ser feito com segurança.”
Na pandemia, o atendimento médico foi direcionado à situação de emergência, deixando de lado os cuidados primários, como exames regulares e vacinações de rotina. Além disso, com muitos profissionais de saúde sendo encaminhados para trabalhar nos centros de vacinação contra a covid-19, ressalta Zambon, a cadeia de comunicação sobre a necessidade de manter a cobertura vacinal foi interrompida.
A pesquisa do IBOPE Inteligência constatou que 44% dos pais deixaram de levar seus filhos ao pediatra durante a pandemia. Essa taxa aumenta para 50% entre os pais de crianças entre 3 e 5 anos.
Para retornar à cobertura ideal de imunização, os especialistas incentivam retomar o foco nos cuidados primários e a criação de um plano de comunicação sólido sobre vacinas, incluindo mostrar os efeitos de doenças como a poliomielite e ouvir relatos de pessoas que as contraíram.
“Precisamos mostrar às pessoas como era a época em que a poliomielite não estava erradicada, mostrar a elas como é ter tétano”, conclui Zambon. “Precisamos que as pessoas entendam como essas doenças afetam suas vidas, os efeitos em longo prazo e as mortes que podem ocorrer se não forem vacinadas.”