Vida de mamute da Era do Gelo reconstruída em detalhes impressionantes

Pela primeira vez, cientistas utilizaram elementos químicos no estudo de uma antiga presa de mamute para revelar uma biografia pré-histórica de riqueza sem precedentes.

Por Zach St. George
Publicado 23 de ago. de 2021, 07:00 BRT
Dente de mamute cortado ao meio (primeiro plano), na Alaska Stable Isotope Facility, na Universidade do ...

Dente de mamute cortado ao meio (primeiro plano), na Alaska Stable Isotope Facility, na Universidade do Alasca em Fairbanks. Ao fundo, a pesquisadora Karen Spaleta prepara um pedaço da presa para as análises isotópicas que revelaram toda a história de vida do mamute.

Foto de JR Ancheta University of Alaska Fairbanks

A presa de um mamute-lanoso revela uma história escrita em marfim. Desenvolvida sob as gengivas do mamute, suas células se dividem continuamente, até mesmo diariamente.

“A ponta da presa representa o mamute jovem”, explica Matthew Wooller, ecologista da Universidade do Alasca em Fairbanks. “A base da presa contém registros do mamute já velho. Toda a informação que está no meio revela a vida do mamute.” A presa é um registro das viagens, alimentação e até mesmo da morte do animal. O conceito é simples, afirma Wooller. A parte complicada é acessar a composição química de uma presa e interpretá-la.

Em um novo estudo, Wooller liderou um grupo de pesquisadores que fizeram exatamente isso. Examinando a presa de um mamute-lanoso que viveu cerca de 17 mil anos atrás, eles descobriram detalhes sobre as atividades do animal desde o nascimento até a morte. Também refizeram seus passos através da Era do Gelo no Alasca ao longo de 28 anos, marcando a primeira vez em que cientistas foram capazes de reconstruir a história da vida de um mamute de maneira tão detalhada.

A pesquisa, publicada recentemente na revista científica Science, contou com técnicas e ferramentas inovadoras para fornecer pistas sobre como os mamutes viviam, incluindo suas possíveis interações com humanos. O trabalho também pode fornecer informações para estudos sobre por que esses icônicos animais acabaram sendo extintos e como os grandes mamíferos de hoje podem reagir a um mundo em aquecimento.

Os pesquisadores chegaram o mais próximo possível de reconstruir a vida de um mamute, sem precisar “voltar no tempo e colocar uma coleira de GPS em um mamute-lanoso”, afirma a paleontologista Larisa DeSantis, da Universidade de Vanderbilt, que não participou do estudo.

“Só de ler o artigo, eu me senti como Jane Goodall observando esses animais.”

Esculpindo uma presa de mamute

Eu conheci Wooller em 2018, no escritório da universidade onde ele dirige o Laboratório de Pesquisa Isotópica do Alasca. Isótopos são átomos de um elemento que, devido à falta ou ao excesso de nêutrons, têm pesos atômicos ligeiramente diferentes um do outro. Nos últimos anos, cientistas utilizaram isótopos para descobrir a dieta de antigos humanos, solucionar assassinatos em casos arquivados e identificar rotas de contrabando de drogas.

“É uma indústria em franco crescimento”, afirma Wooller.

Como ele comentou posteriormente por e-mail, seu nome tem uma semelhança impressionante com o tema de sua pesquisa mais recente. (Em inglês, o mamute-lanoso é chamado de woolly mammoth. “Nós o chamamos de mamute Wooller”, brinca o paleontólogo do estado da Flórida Gregory Erickson, um dos coautores do artigo.) Mas é aí que as semelhanças terminam; Wooller não usa barba e seu cabelo é raspado, utiliza óculos bem limpos e seu sotaque é nitidamente britânico.

De seu escritório, ele mostra o caminho pelo corredor até seu laboratório. Cilindros de gás e pedaços de ossos e chifres ocupam as paredes do local. No centro da sala, sobre um balcão preto, está a presa do mamute — de 1,67 metro de comprimento, mais grossa que meu braço, formando uma curva de uma ponta a outra. Ela foi dividida ao meio no sentido do comprimento, como um pão de cachorro-quente longo e curvado.

As presas crescem em camadas internas distintas que parecem uma pilha de casquinhas de sorvete, explica Wooller, mas as divisões entre as camadas tornam-se irregulares do lado externo da presa. Para capturar todo o registro químico, a equipe precisava de amostras de seu interior. Cortar a presa curva de 22 quilos com uma serra de fita foi o primeiro desafio do projeto. “Quebramos algumas lâminas”, conta ele.

Após dividir a presa, a equipe fez cortes em forma de cunha a partir do centro, cada um com cinco centímetros de comprimento, para que pudessem inserir os pedaços em uma máquina que ocupa um dos lados do laboratório. Chamada de Espectrômetro de Massa com Plasma Indutivamente Acoplado por Multicoletor de Ablação a Laser, a máquina utiliza um laser para vaporizar — ou provocar ablação — em pequenos pedaços de material. Em seguida, ela analisa a massa atômica resultante dos elementos químicos.

A máquina pode fazer diversas leituras isotópicas por centímetro, fornecendo um nível de detalhes incapaz de ser alcançado por outros métodos. Lentamente, com o laser traçando um rastro pontilhado no marfim, revela as evidências químicas contidas nos fragmentos da presa.

“Como um GPS químico”

Os isótopos de estrôncio constituem o ponto principal do estudo. Os animais adquirem estrôncio por meio das plantas que comem, as quais o absorvem da rocha subjacente. Diferentes regiões geológicas possuem diferentes assinaturas isotópicas de estrôncio. Embora o clima do Alasca tenha mudado drasticamente desde a época do Pleistoceno, suas características geológicas continuam as mesmas. À medida que o mamute abria caminho pela paisagem, o estrôncio absorvido por suas presas tornou-se um registro de suas viagens. A presa do animal é “como um GPS químico”, explica Wooller — um GPS com 340 mil registros.

“Utilizamos o laser para observar isótopos de estrôncio que foram coletados diariamente em toda a presa do mamute. Isso nos fornece dados de altíssima precisão”, comenta Clément Bataille, geoquímico da Universidade de Ottawa e um dos líderes do estudo.

Para ligar os pontos fornecidos pelos dados do estrôncio a localizações reais no mapa, a equipe de Wooller utilizou roedores do gênero Myodes, que habitam o Alasca atualmente. O Museu do Norte da Universidade do Alasca possui uma extensa coleção desses pequenos roedores herbívoros. Eles tendem a não viajar muito, o que significa que o estrôncio em seus dentes é uma boa representação da região geológica em que vivem. “São como cientistas cidadãos”, comenta Wooller sobre os roedores. “Eles fornecem amostras das condições locais.”

Bataille e Juliette Funck, na época doutoranda no laboratório de Wooller, utilizaram os dados dos roedores para criar um mapa do estrôncio no Alasca. Bataille, então, construiu um modelo para correlacionar os pontos dos dados da presa a esse mapa. O modelo levou em consideração certas realidades físicas — um mamute não pode voar ou escalar penhascos, observa Wooller, “portanto, podemos descartar certas partes do ambiente”. Traçando suas pegadas a partir do local de sua morte, Bataille seguiu o caminho do mamute de trás para frente.

Enquanto Wooller e seus colegas trabalhavam para rastrear os movimentos do mamute, Beth Shapiro e Katie Moon, da Universidade da Califórnia, em Santa Cruz, extraíam fragmentos de DNA antigo do fóssil do mamute para descobrir seu sexo. Elas também identificaram o século de seu nascimento utilizando datação por radiocarbono.

No estado da Flórida, Erickson analisou minúsculos estriamentos na dentina da presa, causadas por mudanças sazonais, e até mesmo o ciclo diário de atividade e sono para marcar os anos, meses e dias de vida do mamute. Juntos, esses detalhes transformaram os elementos químicos contidos na presa em uma biografia de riqueza sem precedentes da Era do Gelo, uma história de família, migração e uma morte prematura.

Seguindo os passos de Kik

Kik, como a equipe o apelidou, foi um mamute macho, nascido há 17,1 mil anos na região atual do nordeste do Alasca. Na época de seu nascimento, o último máximo glacial do Pleistoceno estava começando a diminuir. Entre o Alasca e a Rússia, estendia-se uma vasta planície, seca demais para a formação de geleiras. Cientistas ainda debatem sobre como exatamente era essa região, mas a abundância de fósseis de bisões, mamutes, caribus, cavalos, bois-almiscarados e leões sugere algo como um Serengeti de clima frio. A paisagem era coberta por uma mistura de gramíneas, juncos e arbustos que os cientistas agora chamam de “estepe dos mamutes”.

Kik passou os primeiros anos de sua vida em uma pequena parte do interior do Alasca, ao sul da Cordilheira Brooks, a cadeia de montanhas que corta a parte superior do estado. Ele foi desmamado aos 2 anos de idade, uma mudança de alimentação registrada por isótopos de carbono e oxigênio. Nos anos que se seguiram, sua movimentação aumentou. Ele parece ter passado os invernos nas planícies e os verões no sopé das montanhas — talvez para evitar picadas de insetos, segundo Wooller.

Ele ia e voltava, em um padrão migratório que reflete os movimentos dos elefantes-africanos modernos, afirma Wooller. Há muito tempo, cientistas acreditavam que esse poderia ser o caso. “Nós utilizamos elefantes para criar uma espécie de imagem mental do que os mamutes poderiam estar fazendo na natureza”, explica ele. Mas, até agora, não havia provas.

É provável que as experiências de Kik se assemelhem aos elefantes modernos de outra maneira: “quando era um mamute jovem, provavelmente ele fazia parte de uma manada”, afirma Wooller. O mamute deve ter passado seus primeiros anos com a mãe, e provavelmente com um grupo maior, formado por outras fêmeas e mamutes jovens. Na verdade, rastrear o jovem Kik significa rastrear sua manada também.

Quando Kik tinha 16 anos, seus movimentos mudaram repentinamente. Quando elefantes-africanos e elefantes-asiáticos machos atingem a maturidade sexual, eles abandonam a manada e começam a vagar, sozinhos ou em pequenos grupos com outros machos. Parece que Kik fez a mesma coisa. Ele começou a ir mais longe, atravessando as passagens na extremidade oeste da Cordilheira Brooks e na Encosta Norte do Alasca, uma rota que os rebanhos migrantes de caribus seguem ainda hoje.

“Houve uma época em que eles migravam ao lado dos mamutes”, comenta Wooller. “Acho que é uma imagem interessante.”

O último isótopo que a equipe estudou conta como a história de Kik termina. Quando ele tinha 27 anos, os isótopos de nitrogênio em sua presa começaram a mudar. Alimentos diferentes produzem assinaturas de isótopos de nitrogênio diferentes e, durante o verão, os isótopos de nitrogênio de Kik começaram a ficar parecidos com os de um carnívoro. Para um mamute herbívoro, isso só poderia significar uma coisa: o corpo de Kik estava se alimentando de si mesmo. Ele estava faminto.

Às vezes, elefantes velhos morrem de fome porque seus dentes estão muito gastos para serem usados, explica o coautor do estudo Daniel Mann, cientista quaternário da Universidade do Alasca em Fairbanks. Mas Kik ainda era relativamente jovem e, como a presa foi encontrada ao lado de pedaços do crânio do mamute, os cientistas puderam examinar os dentes e ver que estavam em boas condições. “Eu suspeito que ele tenha sofrido algum tipo de lesão”, comenta Mann sobre o mamute.

No seu último ano de vida, Kik viajou da atual Península de Seward, no Alasca, ao flanco nordeste da Cordilheira Brooks. Ele permaneceu na região, vagando durante o inverno em uma região de dunas de areia a oeste do rio Colville. Então, alguns meses depois, ele chegou à área onde permaneceria pela maior parte dos 17 mil anos seguintes, onde atualmente é a borda de um desfiladeiro raso esculpido por um dos afluentes do Colville, o rio Kikiakrorak — ou Kik, para ficar mais fácil.

Pistas antigas para calamidades futuras

“É incrível ter um conjunto de dados como esses para um animal específico”, comenta Grant Zazula, paleontólogo do governo de Yukon, que não participou do estudo. “Isso abre uma enorme porta para novos projetos em lugares como o Alasca e Yukon, onde temos uma grande variedade de fósseis disponíveis para estudo.”

Um dia, os estudos isotópicos podem ajudar a responder a uma das questões mais persistentes sobre os mamutes-lanosos: por que eles foram extintos. Diversos cientistas acreditam que os caçadores humanos foram os responsáveis por levar mamutes e outros grandes mamíferos à extinção no final do Pleistoceno e no início do Holoceno. Os defensores dessa hipótese de “caça excessiva” argumentam que mesmo um pequeno número de pessoas poderia ter matado os mamíferos que se reproduziam lentamente. Outros cientistas argumentam que as mudanças climáticas tiveram um papel maior nas extinções.

De acordo com Wooller, embora a história de Kik não resolva o debate, ela mostra que tanto a predação humana quanto as mudanças climáticas podem ter contribuído.

A evidência inequívoca mais antiga de humanos na região é datada de cerca de 14 mil anos atrás, milhares de anos após a morte de Kik. Embora os arqueólogos não tenham certeza sobre quando as primeiras pessoas chegaram à América do Norte, os mamutes não foram extintos no Alasca continental até cerca de 13 mil anos atrás, então é provável que mamutes e humanos tenham convivido na região por mais de mil anos.

Bisões e alces parecem ter sido os alvos preferidos dos caçadores, afirma o coautor do estudo Joshua Reuther, arqueólogo do Museu do Norte. O fato de Kik seguir uma rota de migração regular sugere que os mamutes-lanosos também podem ter sido um alvo atrativo. “Animais de manada são muito mais previsíveis do que animais solitários, como os alces”, explica ele.

Nos milênios após a morte de Kik, a estepe dos mamutes lentamente se encheu de árvores, afirma Wooller, diminuindo o habitat preferido dos mamutes, restringindo seus deslocamentos pela paisagem e talvez forçando-os ainda mais para perto dos novos e perigosos predadores humanos. É também um indício, segundo ele, das pressões que os animais modernos podem enfrentar à medida que as mudanças climáticas causam transformações repentinas nos ecossistemas. Cientistas afirmam que as mudanças climáticas no Alasca já provocaram alterações na movimentação dos caribus, os antigos companheiros migratórios dos mamutes.

“Vivemos em um mundo onde os humanos e as mudanças climáticas causam impactos nos animais”, declara DeSantis. “Se essa foi a combinação mortal que levou às grandes extinções de animais que aconteceram no Pleistoceno, realmente precisamos ser cautelosos.”

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