Risco real de inflamação cardíaca em crianças decorre da covid-19, não da vacina

Pediatras concordam que uma infecção pelo novo coronavírus causa problemas cardíacos mais graves — e acarreta maior risco de danos permanentes ou em longo prazo.

Por Tara Haelle
Publicado 1 de dez. de 2021, 06:00 BRT
Camryn Zoë Emanuel, de 8 anos, é vacinada no Hospital Infantil do Texas, em Houston, nos ...

Camryn Zoë Emanuel, de 8 anos, é vacinada no Hospital Infantil do Texas, em Houston, nos Estados Unidos, em 3 de novembro de 2021. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos aprovaram formalmente a vacina da Pfizer-BioNTech contra o novo coronavírus para uso em crianças de 5 a 11 anos.

Foto de Meridith Khut, T​he New York Times, via Redux

Elizabeth Brown mora nos arredores de Denver, no estado do Colorado, nos Estados Unidos, e como mãe de dois filhos teve que tomar uma decisão difícil quando as vacinas contra a covid-19 foram aprovadas para uso pediátrico. Seu filho de 5 anos nasceu com uma cardiopatia congênita que exigiu uma cirurgia delicada aos 2 anos de idade para evitar o risco permanente de inflamação cardíaca por infecção. Contudo Brown também leu relatos que, após a administração de algumas vacinas contra a covid-19, adolescentes do sexo masculino correm o risco de desenvolver miocardite, um outro tipo de inflamação cardíaca.

“Ler sobre crianças que não possuíam histórico de problemas cardíacos apresentando miocardite como complicação em decorrência do uso pediátrico da vacina foi assustador”, conta Brown. “Houve muitas manchetes polêmicas na mídia que suscitaram o medo dos pais com relação à imunização e pouquíssima informação disponível sobre os danos que a covid-19 pode causar.”

Brown conversou com o cardiologista de seu filho e refletiu sobre a questão durante semanas. Ela conta que ficou “mais confiante com relação à vacinação” à medida que mais informações surgiam. Seu filho recebeu a primeira dose da vacina recentemente.

Muitos pediatras e cardiologistas pediátricos lamentam que os casos de miocardite — um efeito colateral raro das vacinas de RNAm contra a covid-19 em adolescentes — tenham sido mais divulgados do que os benefícios do imunizante em salvar vidas. Segundo eles, o mesmo aconteceu no caso de alguns médicos que tratam adultos e que minimizaram a ameaça que a covid-19 representa para a população infantil. Nesse meio tempo, dois membros do conselho consultivo que recomendou que a Agência de Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês) autorizasse o uso da vacina em crianças de 5 a 11 anos questionaram a vacinação de crianças mais novas antes que houvesse mais informações sobre o risco de miocardite.

As informações incoerentes deixaram os pais confusos e inseguros. De acordo com uma recente pesquisa norte-americana, embora mais de um milhão de crianças com idades entre 5 e 11 anos nos Estados Unidos já tenham sido vacinadas, uma grande parcela dos pais permanece apreensiva com os riscos apresentados. De acordo com uma pesquisa da organização sem fins lucrativos Kaiser Family Foundation, pouco antes de a FDA autorizar o uso da vacina da Pfizer em crianças mais novas, um em cada três pais planejava “esperar para ver o que iria acontecer” antes de vacinar seus filhos. Outros 27% planejavam vacinar seus filhos imediatamente, enquanto 30% relataram que não os vacinariam de maneira alguma.

Ainda assim, a análise de mais de 20 artigos publicados em revistas médicas revisadas por pares, documentos do governo e entrevistas com 10 cardiologistas e pediatras apresentam um cenário tranquilizador sobre a segurança da imunização pediátrica contra a covid-19. O desenvolvimento de miocardite após a vacina é mais raro e geralmente menos grave do que as complicações cardíacas associadas à covid-19, incluindo as complicações da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), explica Matthew Elias, cardiologista pediátrico do Hospital Infantil da Filadélfia, nos Estados Unidos. A SIM-P é uma doença grave que pode ocorrer duas a seis semanas após uma infecção aguda por Sars-CoV-2 em cerca de uma em cada 3,2 mil crianças infectadas, mesmo se a infecção for leve ou assintomática. A SIM-P pode desencadear a inflamação de diversos órgãos, incluindo o coração, pulmões, rins, cérebro, pele, olhos e órgãos digestivos. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) relatam que mais de 5,5 mil crianças nos Estados Unidos desenvolveram SIM-P desde o início da pandemia, embora especialistas acreditem que esse número seja subestimado.

“A experiência do hospital infantil indica que o risco de pacientes de qualquer idade com comprometimento cardíaco devido à covid-19 é uniformemente pior do que o risco de miocardite apresentado pela vacinação”, alegou Frank Han, cardiologista pediátrico da OSF Healthcare, no centro de Illinois, Estados Unidos. Como Elias, Han ressalta que a maioria dos casos de miocardite associada à vacina é leve, sem “distúrbio significativo da função cardíaca ou incapacidade de controlar a pressão arterial”.

Diferentes tipos de miocardite 

De um modo geral, a miocardite é uma inflamação do coração e pode apresentar diversos sintomas e gravidades, desde dores leves até insuficiência cardíaca, explica Elias. Mas existem diferentes tipos de miocardite, incluindo três tipos relacionados à covid-19: a miocardite como sintoma da própria infecção por Sars-CoV-2, a causada pela SIM-P desencadeada pela covid-19 e a provocada pela vacina.

A miocardite que ocorre durante uma infecção por covid-19 é semelhante à manifestação clássica da miocardite, a qual os cardiologistas pediátricos utilizam para descrever os sintomas observados em algumas infecções virais além do novo coronavírus. Mas essa manifestação clássica é mais frequente em adultos com covid-19 e raramente ocorre em crianças com a doença.

A miocardite decorrente da SIM-P, ou sintomas cardíacos associados à SIM-P que se assemelham à miocardite, é muito mais comum na população infantil. Parte da confusão sobre as taxas pediátricas de miocardite relacionadas à covid-19 decorre da tentativa de caracterizar os sintomas cardíacos da SIM-P — classificá-los como miocardite ou não — uma vez que a SIM-P é uma condição nova.

A maioria dos cardiologistas pediátricos concorda que as complicações cardíacas observadas em casos de SIM-P são mais graves do que a miocardite desencadeada pela vacina.

Embora quase todas as crianças que sofreram de problemas cardíacos relacionados à SIM-P tenham se recuperado, os efeitos em longo prazo permanecem desconhecidos. Algumas crianças com SIM-P desenvolvem aneurismas da artéria coronária, condição em que uma artéria coronária aumenta muito além do que é considerado normal, explica Jacqueline Szmuszkovicz, cardiologista pediátrica especializada em SIM-P no Instituto do Coração do Hospital Infantil de Los Angeles, nos Estados Unidos. Embora raros, às vezes, esses aneurismas podem ser letais. Também requerem acompanhamento em longo prazo, possivelmente até a idade adulta, uma vez que podem apresentar risco futuro de a criança desenvolver doença arterial coronariana, segundo Han. É importante ressaltar que esses aneurismas foram observados em casos de SIM-P, mas não associados à vacina.

Em contraste, um dos primeiros relatos de miocardite pós-vacina publicado no início de junho, descreveu sintomas relativamente leves que foram confirmados por estudos subsequentes: dor no peito e falta de ar são os sintomas mais comuns, por vezes acompanhados de febre. O tratamento é realizado com o uso de ibuprofeno para a dor e, às vezes, esteroides ou imunoglobulina intravenosa (IgIV) para estimular o sistema imunológico. Normalmente, o paciente é hospitalizado por alguns dias, apenas para monitoramento. Jennifer Su, diretora de insuficiência cardíaca e cardiomiopatias do Instituto do Coração do Hospital Infantil de Los Angeles, nos Estados Unidos, alega que a maioria dos adolescentes que desenvolvem miocardite pós-vacina geralmente não precisa de internação. Entretanto, como a condição é nova, a maioria dos médicos trata os casos com cautela.

Elias acrescenta que a miocardite relacionada à vacina é muito estressante para os pais. Duas famílias que deram entrevista à National Geographic descreveram como foi assustador ver seus filhos adolescentes internados com dores no peito e impedidos de praticar atividades físicas por vários meses depois da alta hospitalar. “Quando dizemos leve”, acrescenta Elias, “não queremos minimizar o estresse que os pais sentem quando seus filhos estão no hospital”.

Comparando os riscos da vacina e da doença

Muitos pais desejam comparar o risco de desenvolver miocardite pela infecção por covid-19 com o risco de desenvolvê-la por conta da vacina. Mas especialistas afirmam que isso é difícil de determinar.

Por exemplo, um a três casos de miocardite a cada 100 mil crianças e adolescentes ocorrem normalmente a cada ano sem relação com a covid-19, explica Su. Ainda assim, os pesquisadores estimam que o risco é 36 vezes maior em crianças menores de 16 anos que contraíram covid-19, observa ela. Segundo Elias, cerca de 50% das crianças com SIM-P que ele tratou apresentaram diminuição da função cardíaca de maneira semelhante à miocardite, e um estudo constatou que 75% dos 255 pacientes com SIM-P tinham miocardite.

As taxas de miocardite após a imunização variam por idade e sexo, sendo que meninos adolescentes são mais propensos a apresentar miocardite após a vacinação do que outros grupos. Em um estudo com mais de quatro milhões de doses de vacina de RNAm administradas a adolescentes de 12 a 17 anos, o risco de miocardite pós-vacina foi de cerca de um em 16 mil entre meninos e um em 115 mil entre meninas.

Até o momento não houve nenhum relato de miocardite após a vacinação de crianças menores de 12 anos — a faixa etária de maior risco para SIM-P. O maior e mais rigoroso estudo revisado por pares para investigar a miocardite associada à imunização, realizado por um grupo de cientistas da universidade e do governo israelense, identifica meninos de 16 a 19 anos como o principal grupo de risco: um em cada 6,6 mil vacinados nessa faixa etária desenvolve miocardite após a segunda dose.

Ainda restam muitas dúvidas sobre a miocardite relacionada à vacina, e os CDC continuam acompanhando e investigando os casos. O único fator de risco conhecido é ser um adolescente do sexo masculino, mas a razão não é conhecida, os pesquisadores também não sabem se há um risco genético, se uma dose mais baixa da vacina reduziria o risco ou por que a vacina pode desencadear miocardite, embora existam diversas hipóteses. Também não está claro se uma pequena porcentagem de casos terá efeitos em longo prazo.

Estudos publicados até o momento demonstram que quase todos os adolescentes se recuperam totalmente, mas Michael Portman, diretor de pesquisa cardiovascular pediátrica do Hospital Infantil de Seattle, nos Estados Unidos, está preocupado com a inflamação cardíaca observada em ressonâncias magnéticas realizadas três meses depois em alguns adolescentes que apresentaram quadro de miocardite associada à vacina. É possível que condição se resolva em mais três meses, mas “ainda não se chegou a uma conclusão”, diz ele, e “precisamos descobrir os efeitos em longo prazo”. Elias acrescenta que é muito cedo para afirmar se a inflamação tardia que ele observou em alguns casos se resolverá completamente, mas acrescenta que representam uma pequena fração dos casos de miocardite relacionada à vacina.

“Eu deixo bem claro que a covid-19 pode causar muito mais problemas cardíacos, e problemas mais graves, do que a vacina”, salienta Elias.

Independentemente disso, ater-se apenas à miocardite e ignorar os outros impactos causados pelo vírus não engloba todo o cenário, adverte Daniel Freeman, neurologista pediátrico em Austin, no estado do Texas. Ele ressaltou que uma em cada quatro crianças que morreram de covid-19 não apresentava doenças subjacentes. Desta forma, deve-se considerar o possível impacto da doença em longo prazo, incluindo os efeitos neurológicos observados.

Além disso, a SIM-P apresenta o risco de afetar órgãos em quase todos os principais sistemas do corpo. Cerca de 60% a 70% das crianças com SIM-P são admitidas na UTI e 1% a 2% falecem. Em contraste, a miocardite associada à vacina raramente requer admissão na UTI e não resultou em nenhuma morte registrada em adolescentes.

Além da SIM-P, a covid-19 também é mais grave para a população infantil do que a gripe, com taxas mais altas de admissão na UTI e intubação e maior tempo de internação. Desde o início da pandemia, o novo coronavírus foi responsável por 1,7% de todas as mortes em crianças entre 5 e 11 anos.

A probabilidade de a miocardite causada pela vacina afetar significativamente a vida das crianças em longo prazo é “infinitamente pequena em comparação com o risco de adoecer gravemente por causa da covid-19”, compara Su. “Infelizmente, nesta fase da pandemia, acredito que a escolha não seja vacinar ou não as crianças, mas sim contrair covid-19 ou tomar a vacina.”

Brown, a mãe que vive no Colorado e vacinou seu filho de 5 anos que possui um defeito cardíaco congênito, considera que “tudo apresenta riscos”. Ela e o marido já haviam optado pelo risco baixo e de curto prazo do procedimento cardíaco realizado no filho, em vez do risco permanente de endocardite causada por infecção, uma inflamação do revestimento interno do coração que pode ser fatal.

“Eu considerei a vacina da mesma maneira”, comenta Brown. “Correríamos o risco mínimo de uma possível complicação aguda associada à vacina em comparação aos riscos de contrair covid-19 que são imprevisíveis, podem surgir ao longo da vida toda e podem ser graves ou até mesmo fatais.”

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