Existem pessoas resistentes à covid-19? Geneticistas tentam descobrir
Milhares de pessoas repetidamente expostas ao vírus nunca adoeceram. Cientistas esperam que o DNA possa conter pistas para novos tipos de tratamentos.
Micrografia eletrônica de varredura colorizada das células de um paciente (verde) infectadas com partículas do vírus Sars-CoV-2 (roxo).
Depois de se safar da covid-19 várias vezes durante a pandemia, a comissária de bordo Angeliki Kaoukaki se perguntou se ela era uma anomalia médica. Mas ela possivelmente está entre um pequeno grupo de pessoas que podem ter resistência genética ao vírus. Cientistas correm para entender como essa resistência ao Sars-CoV-2 poderia funcionar – e se a característica pode ser aproveitada para desenvolver novos remédios contra a doença.
Kaoukaki já havia trabalhado ao lado de outros tripulantes de cabine que deram positivo sem adoecer. Então, em julho de 2021, o parceiro de Kaoukaki contraiu um caso grave de covid-19, com febre alta e dor insuportável que duraram quase 10 dias. Kaoukaki não mostrou sintomas, apesar do fato de os dois se isolaram juntos por duas semanas em seu apartamento em Atenas, Grécia.
Ela continuou a testar negativo em múltiplos testes de PCR e antígeno rápido, e um teste que ela fez 23 dias após a infecção confirmada de seu parceiro não revelou anticorpos em seu sangue.
"Todos os dias, [os médicos] me diziam que talvez eu estivesse com covid", diz ela, "mas, uma vez após a outra, eu testava negativo."
Apesar de ambos terem sido vacinados, seu parceiro contraiu covid-19 novamente durante a onda da variante ômicron, em janeiro. Kaoukaki isolou-se com ele por cinco dias e, novamente, não apresentou sintomas e continuou a testar negativo para o vírus. Foi quando ela começou a procurar uma explicação.
Um artigo online a levou a Evangelos Andreakos, imunologista da Fundação de Pesquisa Biomédica da Academia de Atenas. Ele faz parte de um consórcio internacional chamado Esforço Genético Humano-Covid, que tem procurado variações genéticas que podem revelar por que algumas pessoas nunca contraíram a doença.
Andreakos e seus colegas não esperavam encontrar muitos indivíduos para o estudo, mas logo se viram sobrecarregados com e-mails de pelo menos cinco mil voluntários em todo o mundo com histórias semelhantes às de Kaoukaki.
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Usando amostras de saliva de 20% das pessoas que atenderam aos critérios do estudo, Andreakos e sua equipe vão escanear as regiões de genes responsáveis pela codificação de proteínas no DNA, para detectar quaisquer mutações ausentes nas sequências genéticas de pacientes que tiveram casos graves ou moderados de covid-19. A esperança é que algumas dessas pessoas guardem o segredo da resistência ao vírus.
"Esperamos que seja uma população rara", diz Andreakos. "Mas há precedentes."
Resistência a outras infecções virais
Por muito tempo, supunha-se que o resultado de qualquer infecção dependia das características genéticas do patógeno.
“A tendência sempre foi pensar mais sobre a força do patógeno em termos de gravidade – se é um patógeno grave ou um patógeno leve", diz o virologista molecular Johan Nordgren, da Universidade de Linköping, na Suécia. Por isso, menos atenção era dada a um hospedeiro e como seus genes afetam a capacidade de combater uma infecção, diz ele.
Nas últimas duas décadas, porém, cientistas têm conduzido os chamados estudos de associação de genoma para identificar certos genes ou regiões do DNA que podem estar ligados a doenças específicas. Eles fazem isso comparando as sequências genéticas de indivíduos infectados com as mesmas sequências de pessoas saudáveis, e buscam correlações entre mutações e resistência.
Em 1996, este método permitiu que o biólogo molecular Stephen O'Brien e seus colegas descobrissem uma rara mutação genética que protege contra o vírus HIV, que causa a aids.
A maioria das pessoas tem um receptor de proteína presente principalmente na superfície de certas células do sistema imune, chamadas receptor de quimiocina 5, ou CCR5. Esse receptor permite que o HIV se ligue e entre na célula. Mas a equipe de O'Brien descobriu que algumas pessoas têm uma mutação que produz um defeito nessa parte da célula.
Para ser resistente, um indivíduo precisa de duas cópias dessa chamada mutação delta-32 – uma de cada um dos pais. Uma única cópia ainda pode permitir que o vírus infecte células, embora possa desacelerar o desenvolvimento da aids no indivíduo.
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"O delta-32 foi um bom exemplo, que convenceu as pessoas de que a genética era importante e que era possível ter uma resistência genética", diz O'Brien.
Os cientistas também rastrearam uma mutação em um gene diferente, que confere resistência a certas cepas de norovírus, um dos principais causadores da gastroenterite aguda em todo o mundo. Essa mutação impede que os norovírus entrem nas células que revestem o trato digestivo humano.
"Em outras palavras, ou você tem a porta que o vírus usa para entrar na célula, ou não", diz Lisa Lindesmith, pesquisadora de norovírus na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, Estados Unidos. "Se você não tem isso, não importa quantos vírus podemos te dar, você não será infectado."
Embora a resistência genética a infecções virais não seja generalizada, o fato de que isso acontece tem despertado o interesse em mutações semelhantes em indivíduos expostos ao Sars-CoV-2.
Fundamentos genéticos para a resistência à covid-19
O Esforço Genético Humano-Covid começou a recrutar voluntários no ano passado, com foco em profissionais de saúde que foram expostos ao vírus, mas não foram infectados, e adultos saudáveis que viviam em uma casa com um cônjuge ou parceiro que adoeceu e experimentaram sintomas moderados ou graves da covid-19, como Kaoukaki.
Os cientistas levantaram uma hipótese: se esses indivíduos fossem repetidamente expostos e ainda escapassem da infecção, eles seriam mais propensos a carregar uma mutação que oferecesse resistência ao vírus.
Um alvo promissor é o gene que codifica para o receptor ACE2 humano e os que regulam sua expressão em superfícies celulares. O vírus Sars-CoV-2 deve ligar-se ao ACE2 para entrar nas células e infectá-las. Uma mutação que altera sua estrutura e expressão pode bloquear a ligação do vírus e prevenir infecções.
Até agora, o ACE2 parece ser nossa melhor aposta, diz Jean-Laurent Casanova, geneticista da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, que faz parte do Esforço Genético Humano-Covid. Variações genéticas que permitem que o ACE2 funcione normalmente, mas interrompem sua interação com o vírus – "esses seriam bons genes candidatos", diz ele.
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É possível, porém, que haja outros fatores biológicos além do receptor ACE2 que poderiam explicar por que algumas pessoas não desenvolveram uma infecção por Sars-CoV-2.
Algumas pessoas podem possuir um sistema imunológico robusto, que produz proteínas antivirais chamadas interferons tipo I, que limitam a capacidade do vírus de se replicar em células humanas. Eles são a primeira linha de defesa do corpo e aparecem antes mesmo de anticorpos se formarem contra o vírus.
Outra hipótese é que as células imunes chamadas células T de memória que podem ter se formado durante encontros prévios com outros tipos de coronavírus, como aqueles que causam o resfriado comum, ajudam a limitar a infecção pelo Sars-CoV-2 em certos pacientes.
Em 2020, antes da chegada da vacina, um estudo encontrou maior presença de células T de memória em profissionais de saúde que foram expostos ao vírus, mas que não desenvolveram covid-19.
As células T de memória podem ter eliminado o vírus muito rapidamente para algumas pessoas. Mas não é garantia de que essas pessoas estarão protegidas de infecções futuras. "Na verdade, sabemos que alguns foram contaminados com variantes mais infecciosas e/ou talvez com uma dose maior do vírus", diz Mala Maini, imunologista viral da University College London, no Reino Unido, e uma das autoras do estudo.
Se seu estudo apresentar pistas sobre resistência genética, Casanova espera que a informação possa ser usada para desenvolver técnicas terapêuticas contra a covid-19, semelhante aos inibidores de ccr5 projetados para tratar infecções pelo HIV. Mas as decisões para desenvolver essas terapias, diz Casanova, dependerão da natureza dos genes mutantes descobertos.