Um experimento químico pode revelar mistérios sobre origem da vida na Terra

Estudo sugere que metabolismos poderiam ter surgido espontaneamente no planeta primordial – e que cientistas talvez tenham que reconsiderar como definimos a vida.

Respiradouros ativos no fundo do mar, como esta chaminé de cerca de 30 metros de altura no Campo Hidrotermal da Cidade Perdida do Oceano Atlântico, rapidamente produzem moléculas orgânicas simples que podem ter sido a chave para o surgimento da vida na Terra.

Foto de D. KELLEY & M. ELEND, INST. DE EXPLORAÇÃO DA UNIV. DE WASHINGTON/URI-IAO/NOAA/THE LOST CITY SCIENCE TEAM
Por Michael Marshall
Publicado 28 de abr. de 2022, 09:52 BRT

Markus Ralser nunca teve a intenção de estudar a origem da vida. Sua pesquisa se concentrou principalmente em como as células se alimentam e como esses processos podem dar errado em organismos estressados ​​ou doentes. Mas há cerca de uma década atrás, por puro acidente, Ralser e sua equipe fizeram uma descoberta chocante.

O grupo, sediado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, estudava a glicólise, um processo que quebra o açúcar em uma série de reações químicas, liberando energia que as células podem usar.

Quando eles usaram técnicas sensíveis para rastrear as muitas etapas do processo, ficaram surpresos ao descobrir que algumas das reações pareciam “ocorrer espontaneamente”, diz Ralser, que agora trabalha no Instituto Francis Crick, em Londres. Mesmo em experimentos de controle sem a presença de algumas das moléculas necessárias para as reações, partes da glicólise acabaram acontecendo da mesma forma.

“Não pode ser verdade”, Ralser lembra de quando os outros cientistas lhe contaram.

Acredita-se que lagos ricos em carbonatos e fósforo, como o Mono Lake, na Califórnia, tenham sido ...

Acredita-se que lagos ricos em carbonatos e fósforo, como o Mono Lake, na Califórnia, tenham sido comuns na Terra primitiva, talvez fornecendo um ambiente propício para o surgimento da vida.

Foto de Robert Harding Picture Library, Nat Geo Image Collection

Cada célula viva tem em seu núcleo uma espécie de motor químico. Isso é verdade para um neurônio em um cérebro humano, bem como para a bactéria mais simples. Esses motores químicos impulsionam o metabolismo, os processos que transformam uma fonte de energia, como alimentos, em partes úteis que servem para construir a célula. Segundo o consenso geral, os processos metabólicos, incluindo a glicólise, exigem uma grande quantidade de máquinas microscópicas sofisticadas para continuar. Mas a equipe de Ralser descobriu que um desses motores poderia funcionar sozinho, sem várias das moléculas complexas que os cientistas acreditavam serem necessárias.

Desde a descoberta fortuita, uma onda de entusiasmo se espalhou entre os pesquisadores que estudam as origens da vida. Afinal, se isso pudesse acontecer em um tubo de ensaio, talvez também pudesse ter acontecido há bilhões de anos em uma fissura vulcânica no fundo do mar, ou em terra, em piscinas termais, ou em algum outro lugar com muita atividade química e material orgânico. Pode até ser que as reações metabólicas tenham iniciado a cadeia de eventos que levou ao nascimento da vida.

Agora, algumas equipes trabalham para fazer esses motores químicos do zero. Além da glicólise, os cientistas recriaram partes de outros processos celulares fundamentais, incluindo o ciclo reverso do ácido cítrico, ou o ciclo reverso de Krebs (um processo metabólico que algumas bactérias utilizam para produzir compostos orgânicos a partir de dióxido de carbono e água), que se acredita ter aparecido pela primeira vez em células muito antigas.

Essa excitante nova área de pesquisa fez os cientistas repensarem os passos que poderiam ter levado ao primeiro organismo vivo, e os forçou a enfrentar mais uma vez uma questão de longa data: como definimos a vida em primeiro lugar?

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Origens enigmáticas

Como a vida começou é um dos maiores mistérios da ciência. Sabemos que aconteceu no início da história do nosso planeta, porque existem microorganismos fósseis em rochas depositadas há 3,5 bilhões de anos, apenas um bilhão de anos após a formação da Terra. Mas ainda não se sabe quando ou onde.

Um problema-chave é que os organismos vivos são extraordinariamente complicados. Mesmo a célula bacteriana mais simples tem centenas de genes e milhares de moléculas diferentes. Todos esses blocos de construção trabalham juntos em uma dança complexa, transportando alimentos para a célula e eliminando resíduos, reparando danos, copiando genes e muito mais.

A escala dessa complexidade é ilustrada por uma pesquisa publicada em 2021 que compara o DNA de 1.089 bactérias, que são os organismos vivos mais simples. Os pesquisadores, liderados pela bioengenheira Joana C. Xavier, então na Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf, na Alemanha, procuraram famílias de proteínas que eram comuns em todas as espécies de bactérias, pois provavelmente eram realmente antigas – datando de mais de três bilhões de anos para o último ancestral comum de todos os organismos estudados. Eles encontraram 146 famílias de proteínas, revelando que mesmo as primeiras bactérias eram extraordinariamente complexas e produtos de um longo período de evolução.

Todas as hipóteses sobre a origem da vida tentam desconstruir essa complexidade e imaginar algo muito mais simples que poderia ter surgido espontaneamente. A dificuldade é decidir como seria essa proto-vida. Que partes das células vivas que vemos hoje foram as primeiras a se formar?

Muitas ideias foram apresentadas, incluindo uma molécula que pode se copiar, como uma fita de RNA, ou uma “bolha” gordurosa que poderia ter atuado como a estrutura fundamental de uma célula. Mas um grupo crescente de cientistas acredita que antes dos genes ou das paredes celulares, a primeira coisa que a vida precisava era de um motor.

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    O primeiro metabolismo

    A vida é fundamentalmente ativa. Mesmo em organismos aparentemente estacionários como as árvores, há uma atividade furiosa na escala microscópica.

    Xavier, que agora trabalha no University College of London, no Reino Unido, compara uma célula viva a um copo de água com um buraco no fundo enquanto uma torneira o enche. Se os dois fluxos forem iguais (a entrada e saída de água), o volume de água no copo permanece o mesmo. “Mas há uma transformação acontecendo.”

    Da mesma forma, todo ser vivo absorve nutrientes e os usa para construir e reparar seu corpo. Para os humanos, isso significa comer alimentos e usar nossos sistemas digestivos para decompô-los em substâncias químicas simples que nossos corpos podem usar.

    Outros organismos obtêm energia da luz solar ou de produtos químicos como o metano, mas o mesmo princípio também se aplica. Milhares de reações estão constantemente transformando uma substância em outra e transportando as coisas para onde são necessárias. Todos esses processos compõem o metabolismo de um organismo. Se o metabolismo parar, o organismo morre.

    A química do metabolismo é tão central para a vida que muitos pesquisadores acreditam que ela estava presente nas primeiras células vivas. Uma vez que um motor metabólico estivesse funcionando, segundo o pensamento, ele poderia criar os outros produtos químicos de que a vida precisa e, gradualmente, as células se auto montariam, diz Joseph Moran, da Universidade de Estrasburgo, na França.

    No entanto, todas as hipóteses do metabolismo em primeiro lugar para a origem da vida enfrentam o mesmo problema: o metabolismo, como a própria vida, é notavelmente complexo. No estudo de Xavier do último ancestral comum bacteriano, ela estimou que os genes desse organismo antigo poderiam produzir 243 substâncias químicas por meio de processos metabólicos, além de transformar substâncias químicas umas nas outras.

    Mesmo as vias individuais do metabolismo são intrincadas. Veja o ciclo do ácido cítrico, ou ciclo de Krebs, que é uma das maneiras pelas quais as células podem extrair energia dos nutrientes. Como o nome sugere, começa com ácido cítrico, o produto químico que dá às frutas cítricas seu sabor acentuado. Isso é convertido em uma segunda substância chamada cis-aconitato e, em seguida, em mais sete substâncias químicas antes da última etapa recriar o ácido cítrico. Ao longo do caminho, uma série de produtos químicos biológicos são produzidos e distribuídos para o resto da célula.

    É difícil imaginar como um processo tão intrincado poderia ter começado por si só. Para complicar ainda mais, cada etapa é controlada por uma molécula chamada enzima, que acelera as reações químicas em questão. Para que um processo como o ciclo de Krebs funcione, são necessárias enzimas. Mas as enzimas são moléculas complicadas que só podem ser produzidas através do metabolismo, sob o controle dos genes.

    Assim, os cientistas enfrentam um dilema bioquímico da galinha ou do ovo: o que veio primeiro, o motor químico para construir a célula ou os mecanismos celulares necessários para construir o motor?

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    Dando partida nos motores da vida

    Depois que Ralser e sua equipe fizeram a descoberta inicial no início de 2010, eles decidiram investigar mais as reações metabólicas que poderiam ocorrer por conta própria. Eles dissolveram 12 produtos químicos diferentes que são usados ​​na glicólise, cada um por conta própria, em água pura. Em seguida, aqueceram as amostras a 70°C por cinco horas, imitando as condições próximas a um vulcão submarino. Dezessete reações químicas, oriundas da glicólise ou de uma via metabólica relacionada começaram a ocorrer nos experimentos.

    Ralser então contatou Alexandra Turchyn, geoquímica da Universidade de Cambridge, que lhe deu uma lista de substâncias químicas que, acredita-se, estavam dissolvidas no oceano primordial, incluindo metais como ferro e sódio. A equipe então adicionou as substâncias às misturas para ver se eles faziam as reações funcionarem melhor.

    “Tivemos um sucesso, que foi o ferro”, diz Ralser. Em 2014, eles observaram 28 reações ativas, incluindo um ciclo metabólico completo. A equipe baseou-se nos resultados iniciais, mostrando em 2017 que eles poderiam fazer uma versão do ciclo do ácido cítrico impulsionado pelo sulfato e que poderiam fazer açúcares a partir de produtos químicos mais simples em um processo chamado gliconeogênese – embora o último tivesse que ser feito em gelo.

    A ideia de ciclos metabólicos sem enzimas foi então retomada por Moran na Universidade de Estrasburgo, na França, em colaboração com sua ex-aluna Kamila Muchowska. Eles fizeram avanços semelhantes com outros processos metabólicos, como o processo catalisador do acetil-CoA, que converte dióxido de carbono em acetil-CoA – um dos produtos químicos mais importantes no metabolismo.

    Mas, dentre os muitos mecanismos da vida, os cientistas retornaram repetidas vezes ao ciclo reverso do ácido cítrico. Esse processo, que é essencialmente o ciclo do ácido cítrico ao contrário, é usado por algumas bactérias para fazer compostos complexos de carbono a partir de dióxido de carbono e água. E há evidências de que é extremamente antigo.

    Como Ralser, Moran e Muchowska usaram metais como o ferro para conduzir reações químicas no laboratório. Em 2017, eles conseguiram desencadear seis das 11 reações no ciclo reverso do ácido cítrico e, dois anos depois, encontraram mais reações. 

    “Nós nunca produzimos o ciclo inteiro”, diz Moran. Mas eles estão chegando perto.

    Não é bem biologia

    Apesar da empolgação, os cientistas estão divididos sobre se ciclos celulares inteiros podem realmente acontecer sem enzimas para facilitar o processo. Para Ramanarayanan Krishnamurthy, do Instituto Scripps Research, em La Jolla, Califórnia, não é convincente reproduzir apenas partes de um ciclo.

    “É como quebrar uma jarra de vidro em pedaços e dizer: 'Os pedaços vieram da jarra, então eu posso montar a jarra'”, diz ele.

    Krishnamurthy e seus colegas tentam uma abordagem diferente. “Estamos nos desconectando da biologia”, diz ele, porque o que acontece nas células hoje é um guia imperfeito do que aconteceu há bilhões de anos. “Vou deixar a química me guiar.”

    Em 2018, a equipe de Krishnamurthy demonstrou um novo motor metabólico que consiste em dois ciclos e funciona sem enzimas. “Nós ignoramos algumas das moléculas mais instáveis, algumas das etapas mais difíceis que a biologia é capaz de fazer lindamente por causa de enzimas evoluídas altamente sofisticadas”, diz Krishnamurthy. Ele sugere que o processo resultante poderia ter sido um antigo precursor do ciclo reverso de Krebs.

    Mais recentemente, sua equipe experimentou a adição de cianeto, que supostamente era abundante na Terra primordial. Pesquisas anteriores mostraram que o cianeto pode produzir muitos dos produtos químicos da vida porque é muito reativo – mas não está claro se o cianeto realmente desempenhou um papel na origem da vida porque ele é venenoso para organismos reais. No entanto, a equipe de Krishnamurthy mostrou que o cianeto pode desencadear motores metabólicos que se assemelham a algumas das funções da vida .

    Moran é cético em relação a essa abordagem porque esses motores alternativos não produzem algumas das principais substâncias químicas da vida. "Eu não entendo por que você iria querer fazer isso", diz ele.

    Resta saber se versões completas de todos os ciclos metabólicos de hoje podem funcionar sem enzimas, ou se a primeira vida teve que se contentar com versões alternativas e simplificadas como as que Krishnamurthy fez.

    Um motor vivo?

    A capacidade de imitar os processos da vida em formas simplificadas levou a uma pergunta profunda: em que ponto chamaríamos esses sistemas químicos de 'vida'? Se um motor metabólico está zumbindo em um frasco de vidro, ele está vivo?

    A maioria dos cientistas diria que não. Para que algo esteja vivo, “precisamos ter um sistema complexo o suficiente para metabolizar e se replicar”, diz Ralser. Um mecanismo metabólico por si só não está fazendo isso, mas é um passo no caminho para algo que pode.

    “Ninguém realmente definiu a vida”, diz Krishnamurthy, e há tantos casos extremos. Por exemplo, muitas definições de vida especificam que um organismo deve ser capaz de se reproduzir, mas animais sexuais individuais não podem se reproduzir sem um parceiro - então, por essas definições estritas, um coelho solitário não está vivo.

    “Tudo o que existe entre o não-vivo e o vivo é um gradiente”, diz Muchowska. Os motores metabólicos não são totalmente inanimados como as rochas, nem vivem plenamente como uma bactéria.

    A vida, em certo sentido, é uma espécie de acidente químico – uma dança que segue rolando sem parar há mais de três bilhões e meio de anos. Não importa como a definamos, essa dança continua, aprimorando lentamente a maquinaria biológica que construiu as formas infinitas da Terra, as mais belas e maravilhosas.

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