Urano: de planeta esquecido a prioridade da Nasa
Urano, o sétimo planeta do nosso sistema solar, só foi visitado uma vez durante um sobrevoo realizado pela sonda Voyager 2 em 1986. Agora os cientistas querem voltar para estudar o planeta e suas luas em detalhe.
Urano é talvez o planeta mais esquisito do nosso sistema solar. Em algum momento da sua história, o gigante de gelo recebeu um impacto forte, o que o deixou rotacionando de lado. Mais de uma dúzia de anéis e cerca de 27 luas orbitam o astro. A atmosfera do planeta é uma mistura de hidrogênio, hélio e compostos mais pesados que repousam congelados nas profundezas das nuvens frias de Urano.
Mas além de um punhado de fatos intrigantes, cientistas sabem muito pouco sobre esse mundo azul leitoso, que foi visitado pela primeira e única vez pela espaçonave Voyager 2 em 1986. Mas essa falta de conhecimento pode estar prestes a mudar.
Um relatório preparado por astrônomos e divulgado na semana passada, recomendou que a Nasa considere uma missão a Urano como prioridade para a próxima década, talvez para 2031.
“Acho que veremos algumas surpresas extraordinárias lá e aprenderemos muito sobre a formação de planetas em geral, e até podemos descobrir alguns novos mundos oceânicos”, diz Jonathan Lunine, físico planetário da Universidade Cornell, nos EUA, que presidiu o painel do relatório sobre planetas gigantes.
Estas imagens de Urano tiradas pelo telescópio Keck II no Havaí revelam detalhes sobre a atmosfera enigmática do planeta. O pólo norte de Urano (à direita na foto) é caracterizado por um enxame de características semelhantes a tempestades e um padrão incomum de nuvens encaracoladas circundando o equador do planeta.
Urano – assim como Netuno, o outro gigante de gelo do Sistema Solar – também pode ser um tipo muito comum de planeta. Os cientistas pensam que resolver os mistérios de Urano, como seu estranho campo magnético, estrutura interior oculta e temperaturas surpreendentemente geladas, pode ser crucial. Não apenas para entender os gigantes de gelo da Via Láctea, mas também para desvendar pistas sobre a história do nosso sistema solar.
A missão proposta, chamada Orbitador e Sonda de Urano, lançaria uma pequena sonda para analisar a atmosfera do planeta enquanto um orbitador percorre o sistema do planeta por anos. É um plano semelhante à bem-sucedida missão Cassini, da Nasa, que explorou o sistema de Saturno de 2004 a 2017.
“Os resultados dessa missão serão tão ricos que tocarão em quase todos os campos da ciência planetária”, diz a astrônoma planetária Heidi Hammel, da Associação de Universidades para Pesquisa em Astronomia, cuja sede é em Washington D.C, Estados Unidos. Um brinquedo de pelúcia de Urano repousava atrás dela durante nossa videochamada. “Estou muito feliz”, confessa Hammel.
A nave espacial interplanetária do futuro
A cada década, a comunidade científica planetária apresenta um conjunto de recomendações sobre o que priorizar nos próximos dez anos de exploração e pesquisa. O documento, conhecido como levantamento decenal planetário, é usado como um guia pela Nasa e pela Fundação Nacional das Ciências dos Estados Unidos para decidir em quais projetos investir.
A última pesquisa decenal, publicada em 2011, recomendou que a comunidade priorizasse uma missão multifacetada de retorno de amostras a Marte. O jipe-robô Perseverance está completando a primeira fase dessa missão na superfície do planeta vermelho – ele coleta e armazena rochas e pó do planeta vermelho para um eventual retorno à Terra.
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A pesquisa de 2011 também recomendou uma missão à lua gelada de Júpiter, Europa, que é um dos lugares mais promissores do Sistema Solar para procurar vida. Isso levou ao desenvolvimento da nave espacial Europa Clipper, prevista para ser lançada em 2024.
A pesquisa da década passada classificou uma missão a Urano como terceira maior prioridade.
"O fato de ter duas pesquisas decenais seguidas que recomendam ir a Urano é uma boa notícia”, diz Hammel. “Mostra consistência e manifesta o desejo da comunidade científica planetária de voltar a esse sistema."
A pesquisa decenal de 2022 enfatizou a importância de procurar vida além da Terra em nosso sistema solar, particularmente organismos que podem sobreviver sob a superfície marciana ou nos oceanos dentro de luas alienígenas. “A Nasa deve acelerar o desenvolvimento e a validação de tecnologias de detecção de vida para que estejam prontas para serem utilizadas em novas missões”, disse o co-presidente da pesquisa decenal, Robin Canup, do Instituto de Pesquisas do Sudoeste dos Estados Unidos, durante uma sessão informativa sobre o relatório.
Uma visita a Enceladus, uma lua gelada de Saturno que pode abrigar uma próspera biosfera em seu oceano subterrâneo, é a segunda missão principal mais bem classificada, embora não ocorreria até a década de 2050, quando as condições serão mais favoráveis para explorar o eruptivo pólo sul dessa lua.
No entanto, Urano, um mundo que dificilmente abrigará vida como a conhecemos, foi selecionado como a missão de maior prioridade no relatório de 2022.
“Ficou claro para nós que Urano tinha o ponto ideal em termos de coisas ainda a serem exploradas e descobertas”, diz Jonathan Lunine, da Cornell. “Acho que se vende muito bem como uma missão.”
Enceladus, uma das luas de Saturno, foi identificada como o segundo alvo prioritário para uma nova missão. Esta imagem da pequena lua gelada foi tirada pela nave espacial Cassini. Se os cientistas enviarem uma nova nave espacial para Urano, as luas daquele planeta serão reveladas com detalhes semelhantes.
Os reinos gelados de Urano
Batizado em homenagem ao deus grego do céu noturno, Urano pode ser a chave para entender os milhares de planetas que orbitam estrelas distantes que os cientistas avistaram até agora, muitos dos quais têm tamanho parecido ao do gigante do gelo.
“Urano pode ser um representante do tipo mais comum de exoplanetas existentes, e sabemos tão pouco sobre ele que qualquer conhecimento que obtivermos do seu sistema seria inestimável”, escreveu em um e-mail à National Geographic o astrônomo Paul Byrne, da Universidade de Washington em St. Louis, Estados Unidos. “Mal posso esperar para ver essa missão decolar!”
Não sabemos como ou quando Urano iniciou sua rotação torta ou como um planeta tão desequilibrado consegue manter um sistema de luas tão ordenado. Os cientistas também não sabem muito sobre a estrutura interior do planeta, ou por que ele é muito mais frio que Netuno, cuja órbita é mais distante do Sol do que a de Urano. E as observações da Voyager do campo magnético do planeta mostram que ele é “realmente estranho, realmente deslocado e inclinado”, diz Hammel.
Ao longo das últimas décadas, o Telescópio Espacial Hubble e os observatórios baseados na Terra notaram estranhos sinais térmicos entre os anéis do planeta, uma erupção de nuvens brilhantes em sua superfície, auroras brilhantes e ventos poderosos. Os cientistas até descobriram novas luas em 2003.
A missão proposta, que poderia custar até 4,2 bilhões de dólares, melhoraria drasticamente nossa compreensão do sistema uraniano. O plano é descer uma sonda pela atmosfera do planeta e fazer medições detalhadas de sua composição. Um orbitador maior, equipado com vários instrumentos científicos, passará anos examinando o planeta, seus anéis e suas luas.
“Várias dessas luas são incríveis de se ver e mostram sinais de atividade em suas superfícies”, diz Canup.
Entre as luas do planeta, que têm nomes de personagens das obras de William Shakespeare e Alexander Pope, está a excêntrica Miranda. De longe, uma das luas mais estranhas do Sistema Solar, Miranda parece ter sido projetada como uma colcha de retalhos, com paisagens que parecem remendadas ao acaso. E nós nem sabemos como é a parte de trás dessa lua “tipo Frankenstein”, as imagens granuladas da Voyager cobrem apenas metade do pequeno mundo.
Talvez ainda mais importante seja descobrir se algumas das luas geladas que orbitam Urano, como Titânia ou Oberon, podem ter oceanos escondidos sob suas crostas, como as luas de Saturno Europa e Enceladus. Esses oceanos teriam fundos rochosos, diz Lunine, e talvez um suprimento mais rico de materiais orgânicos, necessários à vida como a conhecemos, do que as luas que vivem mais próximas do sol.
“Não seria legal se uma ou mais das luas de Urano tivessem um oceano?”, se pergunta o físico planetário.
Esperando por Urano
Os astrônomos terão que esperar um pouco por uma visão mais próxima de Urano, porque pode demorar anos, ou décadas, até que as naves espaciais cheguem ao Sistema Solar externo, onde o planeta orbita.
Conforme projetado, o orbitador de Urano poderia ser lançado a bordo de um foguete SpaceX Falcon Heavy entre 2031 e 2038 – ou mais tarde –, para aproveitar um alinhamento favorável dos planetas. Uma vez no espaço, a viagem mais rápida possível leva cerca de 13 anos, o que significa que a nave espacial não entraria na órbita de Urano até meados da década de 2040, no mínimo.
Mas Hammel e outros que passaram anos estudando os gigantes de gelo a partir de fragmentos de dados não estão chateados com a possibilidade dessa missão ser concluída depois de suas aposentadorias na pesquisa de planetas – ou, como Hammel diz, quando ela já estiver em um lar de idosos.
“Essa missão não é para mim. É para a próxima geração”, diz Hammel. “Vinte anos atrás, eu poderia ter dito ‘eu realmente quero isso, quero chegar lá antes de me aposentar’. E isso mudou para ‘quero vê-lo lançado antes de me aposentar, porque então sei se será real.’”