Perdeu o olfato por covid-19? Veja como retreinar seu cérebro

Milhões de pessoas infectadas com o Sars-CoV-2 perdem o olfato por meses. Na esperança de acelerar a recuperação, muitos estão recorrendo ao 'treinamento do olfato'.

Por Priyanka Runwal
Publicado 20 de mai. de 2022, 07:00 BRT
Michele Crippa, uma célebre epicurista que perdeu o olfato após contrair a Covid-19, ajuda Martina Madaschi ...

Michele Crippa, uma célebre epicurista que perdeu o olfato após contrair a Covid-19, ajuda Martina Madaschi a reconhecer odores em uma clínica terapêutica em Piacenza, Itália. Através de treinamento, Crippa recuperou parte de sua capacidade de olfato e agora ajuda outras pessoas.

 

Foto de Fabio Bucciarelli The New York Times via Redux (272086)

Uma mordida em um sanduíche de queijo quente e Chris Rogers sabia que algo estava errado. Ele havia testado positivo para a covid-19 em março de 2021 e, dois dias depois, não conseguiu sentir o aroma reconfortante de manteiga e queijo derretidos ou provar o pão torrado. “Foi como comer um pedaço de papelão”, lembra.

Muitos outros que tiveram experiências semelhantes recuperaram o olfato e o paladar dentro de dias, algumas semanas após os sintomas aparecerem. Mas três meses se passaram e a situação de Rogers não melhorava. “Você não tem ideia até passar semanas e semanas tentando comer coisas que não consegue provar ou cheirar”, diz o homem de 50 anos, que mora em Santa Rosa, Califórnia. “É uma experiência muito frustrante.”

Cansado de esperar que seu sistema olfativo se recuperasse naturalmente, Rogers procurou a terapia de treinamento do olfato recomendada a ele por seu otorrino. Duas vezes por dia, durante dez semanas, Rogers cheirou quatro tipos de óleos essenciais – rosa, limão, eucalipto e cravo – para potencialmente ativar ou fortalecer a sobrevivência de células de detecção de odor recém-formadas ou acelerar sua produção e reconstruir a conexão entre o nariz e cérebro. 

É semelhante à fisioterapia, mas para o nariz, e tem sido usado na última década para ajudar a restaurar o olfato perdido por outras infecções virais, como resfriado comum ou gripe, lesões cerebrais e envelhecimento.

Embora cientistas tenham registrado melhorias na capacidade de olfato de alguns indivíduos, geralmente após três a seis meses de treinamento, tem sido difícil mostrar quanto dessa melhora vem da própria terapia ou da recuperação natural que ocorre ao longo do tempo, diz Eric Holbrook, um rinologista que estuda e trata pacientes com distúrbios do olfato, no Hospital de Olhos e Ouvidos de Massachusetts, nos EUA. Ainda assim, ele continua a recomendar a terapia para muitos pacientes, incluindo aqueles que perderam o olfato devido à covid-19, porque, segundo ele, o procedimento pode melhorar ou acelerar o processo de cura.

Além disso, é uma das poucas e, muitas vezes, a única opção terapêutica disponível para milhões de pessoas que não conseguiram recuperar o olfato meses após uma infecção por covid-19.

Embora os benefícios do treinamento do olfato possam variar consideravelmente entre os pacientes, “geralmente não é considerado prejudicial”, diz Bradley Goldstein, otorrinolaringologista que estuda distúrbios do olfato na Universidade Duke, nos EUA. “Recomendamos com expectativas um tanto moderadas, mas ainda precisamos encontrar terapias medicamentosas específicas e mais eficazes. É realmente uma necessidade não atendida.”

As origens do treinamento do olfato

Há quase duas décadas, cientistas começaram a documentar perda de olfato em um grande número de pessoas. Vasculhando a literatura científica, Thomas Hummel, otorrino da Clínica Smell & Taste, da Escola de Medicina da Universidade de Dresden, na Alemanha, percebeu que essa perda de olfato – temporária ou permanente – era mais comum do que se supunha anteriormente, afetando quase 5% da população geral. Entre os pacientes que visitavam a clínica, ele viu em primeira mão o preço que isso causou no bem-estar emocional e qualidade de vida daquelas pessoas. Alguns mostraram sinais de depressão; outros emagreceram devido à perda de apetite e subsequente desnutrição.

Hummel estava determinado a ajudar seus pacientes a recuperar o olfato. Ele sabia que o sistema olfativo tem uma capacidade única de se regenerar continuamente ao longo da vida humana em resposta a uma lesão, como traumatismo craniano, ou após uma infecção viral do trato respiratório superior. E experimentos mostraram que pessoas que não eram capazes de cheirar certos odores podiam aprender a percebê-los após repetidas exposições a esse cheiro. Ele pensou que usar tal abordagem poderia ajudar seus pacientes.

Para testar sua hipótese, Hummel recrutou 40 pacientes, que foram solicitados a inalar quatro odores – rosa, limão, eucalipto e cravo – de frascos de vidro rotulados por dez segundos, duas vezes ao dia, durante 12 semanas. Hummel escolheu esses aromas porque eles representavam quatro dos seis grupos de odores primários – florais, frutados, fétidos, picantes, esfumaçados e resinosos – identificados pelo psicólogo alemão Hans Henning em 1916.

Para avaliar se essa terapia do olfato era eficaz, Hummel e seus colegas pediram aos participantes do estudo que identificassem e discriminassem uma série de odores adicionais antes e depois do treinamento do olfato. Eles descobriram que, aproximadamente, 30% dos participantes relataram alguma melhora no final do estudo, em comparação com 6% que não receberam treinamento olfativo.

Desde então, vários estudos exploraram os benefícios terapêuticos dessa técnica, muitas vezes observando melhorias que, em média, são pequenas. Em alguns casos, a melhora pode ser de 25%, e em outros é mais de 70%, diz Hummel. Muitas vezes, depende da idade, bem como de quanto tempo as pessoas sofreram perda de olfato ou a extensão dela antes de procurarem o treinamento do olfato.

“As pessoas com perda de olfato pós-infecção, por um curto período de tempo, terão uma probabilidade maior de recuperação do que aquelas que tiveram perda de olfato pelo mesmo motivo, mas não sentiram nada por dois anos e depois vieram a nossa clínica", explica.

Adicionar mais alguns odores à rotina de cheirar o perfume também pode aumentar os benefícios. Em um estudo de 2015, Hummel mostrou que continuar a terapia de treinamento do olfato por mais 12 semanas e substituir os quatro odores originais por combinações como mentol, tomilho, tangerina, jasmim ou chá verde, bergamota, alecrim e gardênia era mais eficaz do que usar o conjunto original de odores.

Apesar de os cientistas ainda estarem ajustando a duração ideal da terapia de treinamento do olfato e quais concentrações olfativas são mais eficazes, Patel ressalta que a maneira de quantificar esses benefícios ainda é muito rudimentar. Atualmente, para medir o quão bem a terapia funcionou, os médicos calculam uma pontuação antes e depois do treinamento do olfato, apresentando aos pacientes 40 odores, por meio de canetas com aromas ou testes de raspar e cheirar. 

O paciente deve escolher o odor correto entre quatro opções. “Isso é muito subjetivo, não é uma medida realmente objetiva”, diz Zara Patel, cirurgiã de cabeça e pescoço e especialista em perda de olfato da Universidade de Stanford, nos EUA. Além disso, dependendo de onde as pessoas cresceram e de sua formação cultural, nem todos podem estar familiarizados com cada um dos 40 aromas, diz.

Ainda não está claro como esse treinamento do olfato traz as melhorias registradas em vários estudos. Mas os cientistas têm hipóteses. Com base em resultados de estudos com roedores, Hummel, por exemplo, acha que expor pessoas com déficit de olfato a odores pode acelerar a regeneração de células de detecção de odor, o que pode ajudar os pacientes a se recuperarem mais rapidamente.

Goldstein, por outro lado, sugere que o treinamento do olfato pode melhorar a sobrevivência e o funcionamento das novas células de detecção de odor, estimulando uma variedade delas com os quatro aromas, dando-lhes a chance de se conectar ao cérebro e, eventualmente, restaurar a perda de cheiro.

Perda de olfato associada à covid-19

À medida que a pandemia se desenrolava, a demanda por terapia de treinamento do olfato aumentou, pois potencialmente milhões de pessoas que tiveram covid-19 sofreram deficiência no olfato.

“A perda e a distorção do olfato tornaram-se muito mais comentadas e conhecidas como um problema”, diz Patel. “É um dos lados positivos da pandemia, honestamente, porque antes disso, a maioria dos pacientes e dos médicos nunca tinha ouvido falar disso.”

Ao contrário de alguns outros vírus que podem causar perda de olfato infectando diretamente as células envolvidas na detecção de odores, o Sars-CoV-2 as poupa. Em vez disso, o coronavírus infecta as células de suporte circundantes, que possuem o receptor ACE2 que o Sars-CoV-2 precisa para infectar as células hospedeiras humanas. 

Para defender o corpo contra o vírus, as células imunológicas correm para esse local da infecção e geram proteínas antivirais que, de acordo com um estudo da revista científica Cell, de 2022, podem diminuir a atividade dos genes necessários para construir os receptores de odor nesses neurônios detectores de cheiro, o que leva à perda do olfato.

Ainda assim, aproximadamente 80% dos pacientes com covid-19 que perderam o olfato o recuperaram, sem nenhum tratamento, dentro de uma a quatro semanas, e 95% se recuperaram em seis meses. Para muitos pacientes que sofreram perda de olfato por meses, a esperança de uma recuperação completa não parecia uma opção, e eles buscaram o treinamento do olfato. Eles fizeram isso sabendo que a terapia levava tempo para produzir benefícios e não funcionava para todos.

“É realmente difícil para as pessoas que não perderam o olfato entender o impacto disso”, diz Patel. “É essa coisa invisível que não tem nenhum efeito externo e, portanto, as pessoas realmente não entendem o quão grande é para elas”, complementa a especialista.

Alguns estudos estão começando a sugerir que o treinamento do olfato pode beneficiar pacientes com covid-19 que tiveram perda de olfato por mais de seis semanas. Rogers, que fez a terapia por dez semanas, começou a notar melhorias na sexta semana. “O sabor e os cheiros começaram progressivamente a ficar mais fortes. Eventualmente, estava chegando a um ponto em que eu provava pela primeira vez um pedaço de pizza o tempo todo em que a comia”.

Agora, pelo menos cinco meses após o término do treinamento do olfato, “provavelmente estou 75% de onde costumava estar”, diz.

Distorções de cheiro

Rogers também está lidando com distorções de cheiro, onde o gengibre em conserva que acompanha o sushi tem um cheiro repugnante para ele, o café cheira a pimenta e sua cerveja favorita tem um gosto metálico. Os cientistas descobriram que essas 'conexões cruzadas' podem estar associadas à recuperação após a perda do olfato, e um estudo sugere que o treinamento do olfato pode ajudar a superá-las.

Além dessa terapia, poucas opções de tratamento estão disponíveis para os pacientes. Médicos como Patel recomendaram a irrigação com esteróides, além do treinamento do olfato. Isso envolve enxaguar o nariz com um medicamento anti-inflamatório que reduz o inchaço e melhora o impacto da terapia de treinamento do olfato. Ela e outros cientistas do olfato também estão analisando suplementos de ômega-3, vitamina A e plasma rico em plaquetas como outras opções para ajudar a restaurar a perda de olfato pela covid-19.

Por enquanto, o treinamento do olfato, apesar de não ter garantias, ainda é considerado a melhor opção disponível, barata e geralmente segura. “Basicamente, coloca os pacientes no banco do motorista”, diz Hummel. “É por isso que as pessoas o utilizam muito.”

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