Consequências ocultas e dolorosas da covid-19: milhões de crianças órfãs
Estima-se que 10,4 milhões de crianças perderam um dos pais ou cuidador, colocando-as em maior vulnerabilidade e risco de pobreza. Mas o problema não pode se tornar uma catástrofe.
Quase 10,4 milhões de crianças em todo o mundo perderam um pai ou cuidador para a Covid-19. Yuni Folani é um deles. Seu pai de 56 anos, Langlang Buana, morreu em junho de 2021 devido ao coronavírus e insuficiência renal em Pasaman, Sumatra Ocidental, Indonésia.
Há sempre flores frescas no túmulo de Langlang Buana, na pequena cidade de Pasaman, na província indonésia de Sumatra Ocidental. Sua filha mais nova, Yuni Folani, cujo apelido é Ivo, passa pelo cemitério a caminho da escola. Ela visita o local com tanta frequência que as pétalas de bougainvilles colhidas em seu jardim ainda chegam perfumadas.
Seu pai morreu de insuficiência renal depois de pegar covid-19 no ano passado. Mais nova de dois filhos, Ivo, 14 anos, lembra que ela e o pai se provocavam constantemente e eram inseparáveis. Ela quer ser policial quando crescer, seguindo os passos do pai, que era segurança. "Eu realmente sinto falta dele ficando bravo comigo", diz Ivo, enquanto as lágrimas escorrem pelo rosto.
Sem ele, a família passou por momentos difíceis. A mãe de Ivo, Nisma, é a única da família que recebe renda, lutando para sobreviver com o equivalente a cerca de R$ 500 por mês – o salário na mercearia local.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, até 5 de maio deste ano, quase 15 milhões de pessoas tenham morrido de causas relacionadas à covid-19 desde o início da pandemia global – quase três vezes o número oficial de mortes. Nos Brasil, o segundo país com mais mortes por covid-19 registradas no mundo, mais de 665 mil pessoas já morreram.
Escondido por trás dessas estatísticas está uma crise de orfandade sem precedentes na história moderna. Quase 10,4 milhões de crianças em todo o mundo perderam um pai ou cuidador para a covid-19, de acordo com Relatório dos conselhos nacionais de Saúde e de Direitos Humanos divulgado em dezembro de 2021 mostrou que 130 mil crianças ou adolescentes perderam o pai, a mãe, os dois ou o cuidador principal na figura do avô ou avó durante a pandemia.
Várias vezes por semana, Yuni e sua mãe Nisma fazem a viagem de dois quilômetros de moto até o túmulo de Langlang. O cemitério fica a caminho da escola de Yuni e sua irmã Try.
Como a própria quantidade de mortos, os números verdadeiros são provavelmente maiores.
O luto muda a vida de qualquer pessoa e, particularmente, é devastador para as crianças. Décadas de pesquisa mostram que perder um cuidador aumenta o risco de abuso, pobreza e problemas de saúde mental, como depressão, ansiedade e suicídio. Se as crianças não recebem apoio adequado – ou se suas dificuldades são particularmente graves –, o estresse pode até mudar a arquitetura de seus cérebros e deixá-las mais vulneráveis a todas as principais causas de morte, diz Susan Hillis, co-presidente do Grupo Global de Referência em Crianças Afetadas por Covid-19, uma parceria entre a Universidade de Oxford e OMS.
A covid-19 também fomentou condições propícias ao estresse crônico, pois as crianças enfrentam bloqueios, fechamento de escolas e a constante ameaça de perder mais entes queridos. Mas Hillis e outros especialistas destacam que o problema não precisa terminar em catástrofe: as lições aprendidas com as crises de saúde passadas nos ensinam como ajudar as crianças a lidar com o impensável.
“Vai exigir que todos nós trabalhemos juntos de uma maneira que nunca fizemos antes”, diz Hillis. O que é crítico é agir rapidamente.
O trauma da orfandade
As pessoas tendem a pensar em órfãos como qualquer pessoa que perdeu ambos os pais. Mas as Nações Unidas definem um órfão como uma criança que, como Ivo, perdeu um dos pais – e, cada vez mais, o termo passou a incluir avós e outros cuidadores.
“Sempre que você perde um dos pais, até certo ponto você perde os dois”, diz Carolyn Taverner, cofundadora e diretora de programa do Emma's Place, um centro de luto para crianças e famílias em Staten Island, Nova York. Os pais sobreviventes estão de luto, e muitos têm menos tempo para cuidar de seus filhos enquanto tentam manter tudo em ordem. As crianças também são notavelmente sintonizadas com as emoções de seus pais – e muitas vezes tendem a protegê-los escondendo seus próprios sentimentos.
Esse número de orfandade ficou claro no início da pandemia de aids, que, de acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids, deixou 903 mil crianças orfãs em todo o mundo somente em 1990, o primeiro ano em que as estimativas foram feitas. Nas décadas seguintes, os pesquisadores acumularam um forte corpo de evidências dos riscos de perder um ou ambos os pais ou cuidadores.
Taverner diz que a perda de um dos pais costuma ser a primeira vez que uma criança percebe que coisas ruins podem acontecer a qualquer momento. As mais novas, que ainda não aprenderam a lidar com suas emoções, tendem a ter mais explosões e podem ter problemas na escola. Crianças mais velhas, cujos amigos podem não entender sua perda, começam a se sentir isoladas em sua dor.
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Mas as crianças também enfrentam outros perigos para a saúde. A perda do ganha-pão pode levar uma família à pobreza e à desnutrição ou forçar as crianças a abandonar a escola para trabalhar. Pesquisas da revista Vulnerable Children and Youth Studies, entre outras, mostram que as crianças que perderam um dos pais são mais vulneráveis a abuso físico, sexual e emocional.
“Você tem essa constelação de abusos ou adversidades se acumulando na criança, individualmente”, diz Hillis.
Estresse tóxico
Esse acúmulo pode resultar em uma condição chamada estresse tóxico. Normalmente, o corpo lida com uma situação desgastante liberando em todo o organismo hormônios de estresse. Quando essas condições são prolongadas ou graves, o corpo pode experimentar uma cascata de respostas biológicas prejudiciais – incluindo sinapses neuronais prejudicadas do cérebro.
O estresse tóxico pode colocar uma criança em risco de complicações a longo prazo, como diabetes e Parkinson. Também pode danificar a capacidade do sistema imunológico de combater doenças e aumentar o risco de morrer de problemas cardíacos, HIV/Aids, dentre outros. Crianças órfãs também correm maior risco de suicídio.
Em janeiro, a Unicef informou que mais de 616 milhões de estudantes em todo o mundo ainda são afetados pelo fechamento de escolas relacionado à covid, o que os especialistas temem que possa levar crianças mais vulneráveis ao trabalho infantil. Faltar à escola também é prejudicial a crianças enlutadas, que se confortam em suas rotinas.
“Depois que a pandemia chegou, não havia nada igual”, diz Taverner. “Não há nenhum lugar em que você possa escapar disso.”
Antes de visitar o túmulo de seu pai, Yuni colhe flores de bougainvilles no jardim da família. De acordo com o costume, ela espalha as pétalas sobre o túmulo e derrama água sobre ele.
Uma catástrofe escondida
A pandemia ainda não havia atingido a Zâmbia na primavera de 2020, mas Remmy Hamapande se preocupou ao ver a covid-19 devastar o mundo. Como diretora nacional da organização sem fins lucrativos Forgotten Voices, que trabalha em vários países do sul da África, Hamapande sabia que uma pandemia seria terrível para as crianças que já haviam perdido os pais para a aids e viviam com avós especialmente vulneráveis.
“Se a covid vier aqui e tirar as vovós, não teremos mais ninguém para cuidar dos órfãos”, pensou, na época, Hamapande. “Então, essas crianças ficarão órfãs duas vezes.”
Hamapande ligou para Hillis para alertá-la. Durante sua carreira de décadas como pesquisadora no Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, Hillis estudou crianças órfãs com problemas de saúde. Em agosto de 2020, ela havia convocado uma equipe de pesquisadores para avaliar quantas crianças tinham sido afetadas, começando pelos Estados Unidos e Brasil.
Em apenas duas semanas, os dados preliminares “foram chocantes e comoventes”, diz Hillis. Para cada duas mortes relatadas por covid-19 nesses países, as estimativas sugerem que pelo menos uma criança foi deixada para trás. Como a variante Delta gerou surtos em todo o mundo, esse número cresceu para um órfão a cada morte por covid-19 – chegando a dois órfãos para cada óbito na África no final de outubro de 2021.
Apesar das perdas impressionantes, a crise dos órfãos da covid-19 recebeu relativamente pouca atenção: é uma pandemia escondida dentro de uma pandemia. Rachel Kidman, epidemiologista social focada em adversidades na infância na Universidade Stony Brook, no estado de Nova York, diz que a covid-19 é percebida como uma doença que afeta pessoas mais velhas, então, o número de crianças deixadas para trás é ignorado.
No entanto, cerca de 38% das crianças em todo o mundo são criadas em lares multigeracionais, de acordo com o Centro de Pesquisa Pew. Na Zâmbia e em grande parte do restante da África Subsaariana, mais de 30% das crianças vivem em lares de 'geração perdida' – ou seja, vivem com os avós, não com os pais.
Além disso, Kidman ressalta que a covid-19 não está apenas matando os avós. A distribuição desigual das vacinas contra o coronavírus deixou pessoas de todas as idades mais vulneráveis em algumas partes do mundo, e é desproporcionalmente fatal para pessoas com pouco acesso à saúde.
Na Zâmbia, Hamapande viu irmãos se separarem e pessoas que já lutavam para alimentar suas próprias famílias acolhendo filhos de vizinhos. Aconselhamento é praticamente inexistente, e Hamapande tem visto sinais de trauma – desde fazer xixi na cama a uma onda de suicídios.
“Imagine uma criança perder seu cuidador e, basicamente, não ter para onde correr”, diz Hamapande, acrescentando que a assistência à saúde mental é desesperadamente necessária.
Como proteger crianças órfãs
Uma coisa a não se fazer? Colocar crianças em orfanatos – mas não em instituições onde elas são abandonadas e embaladas como sardinhas. Estudos de referência em orfanatos romenos – que se tornaram notórios na década de 1990 por suas condições deploráveis – mostraram que a institucionalização alterou significativamente a estrutura cerebral dos bebês. Cada ano a mais em um orfanato resultou em atrasos de desenvolvimento e cognitivos em comparação com crianças criadas em famílias adotivas.
Felizmente, esses efeitos podem ser mitigados se uma criança for transferida para um lar amoroso. Em 2012, um estudo mostrou que as crianças que se mudaram de orfanatos para famílias adotivas conseguiram acompanhar o desenvolvimento de seus pares.
As crianças precisam da família – de qualquer tipo – para fornecer estrutura em suas vidas, diz Lucie Cluver, professora de serviço social da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul. Garantir que uma criança possa ir à escola, tenha o suficiente para comer e se sinta amada é o que “determina o impacto da morte, não a morte em si”.
Mesmo os órfãos que são bem cuidados precisam de ajuda extra. Cluver, que fez parte da equipe que Hillis convocou para determinar as estimativas globais para os órfãos da covid-19, diz que as três principais intervenções que fazem diferença são apoio econômico, apoio aos pais e permanência na escola.
Garantir que as famílias tenham dinheiro e comida suficientes é fundamental. Quando os pais não estão trabalhando em vários empregos, eles têm tempo para ouvir e apoiar seus filhos. Quando as crianças têm o suficiente para comer e podem permanecer na escola, elas ficam menos vulneráveis a outros fatores de risco. Verificou-se que dar dinheiro a famílias empobrecidas diminui significativamente o risco de meninas e mulheres jovens serem forçadas ou recorrerem ao trabalho sexual.
O abuso é outro risco. O estresse dos pais pode levar à violência em famílias vulneráveis, e armar os cuidadores com habilidades práticas de enfrentamento ao luto é fundamental. Estudos mostraram que os programas parentais podem reduzir significativamente a violência física, sexual e emocional nas famílias.
Finalmente, é importante garantir que as crianças órfãs ainda possam estudar. Frequentar a escola ajuda as crianças traumatizadas a recuperar o senso de normalidade. Também está comprovado que reduz a pobreza, atrasa o primeiro encontro sexual de uma criança e a integra à sociedade.
A ajuda está a caminho?
No final de setembro de 2021, Calandra Cook estava há um mês em seu último ano na Universidade do Estado da Geórgia quando, de repente, teve de se afastar para planejar o funeral de sua mãe. Sem outra família próxima para ajudar, a jovem de 21 anos passou a ser responsável por tudo, o que a deixou em crise.
Os médicos avisaram Calandra que os pulmões de sua mãe estavam ficando mais fracos, sua frequência cardíaca estava muito alta e seus níveis de oxigênio estavam muito baixos. Mas a morte de Yolanda Meshae Powell ainda foi um choque para Calandra e seus três irmãos mais novos, que não puderam falar ou mesmo abraçar a mãe antes de morrer. “Eu tive de me despedir dela por uma janela de vidro”, diz Calandra.
Então veio o grande desafio de terminar a faculdade. O escritório de ajuda financeira do estado da Geórgia informou a Calandra que ela havia esgotado seus empréstimos estudantis e teria de pagar do próprio bolso – e ela não podia voltar para casa e economizar dinheiro. “Quando minha mãe morreu, minha rede de segurança morreu com ela”, lembra.
No início deste ano, o Covid Collaborative — um grupo dos principais especialistas dos EUA em saúde pública, educação e economia — lançaram a Hidden Pain, uma plataforma on-line que conecta famílias em luto a recursos, incluindo assistência funerária, serviço de internet com desconto e grupos de orientação. Na Califórnia, os legisladores estão considerando um fundo fiduciário financiado pelo estado para órfãos da covid. Mas tem havido pouco movimento a nível nacional.
O mundo também precisa agir para ajudar os órfãos na mesma escala que foi vista no Pepfar, o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o alívio da aids. Demorou 13 anos para o programa ser colocado em prática, depois que os pesquisadores alertaram pela primeira vez sobre os órfãos da aids – e, neste período, os 903 mil órfãos da doença haviam crescido para 15 milhões.
“Estou apenas desejando e rezando para que não esperemos 13 anos”, diz Hillis. “Esse tsunami vai nos envolver à medida que surge variante após variante.”
Calandra está frustrada porque o mundo parece ter superado a pandemia – mesmo as pessoas que a confortaram quando sua mãe morreu. “Com o passar do tempo, as pessoas vão embora”, diz. “O luto é algo que você meio que lida sozinho.”
Ela ainda está terminando o curso, mas já participou da cerimônia de formatura, ao lado dos colegas, em maio – justamente no fim de semana do dia das Mães. Foi um marco agridoce: Yolanda estava tão empolgada para a filha se formar que costumava ligar para ela três vezes por dia para falar sobre isso.
Calandra diz que foi difícil atravessar o palco no dia da formatura sem a mãe na plateia. “As pessoas diziam que ela estava lá em espírito, mas isso não faz você se sentir melhor”, diz. Calandra vai seguir alguns dos conselhos favoritos da mãe. “Eu posso ouvi-la me dizendo para colocar minha calça de menina grande. Minha mãe me ensinou tudo.”
Muhammad Fadl contribuiu para a reportagem.