Terapias pioneiras e novas técnicas tratam feridas difíceis de curar

Tecnologias estão ajudando a reconstruir a pele de pessoas com úlceras diabéticas, queimaduras profundas e outras lesões graves.

Por Meryl Davids Landau
Publicado 3 de jun. de 2022, 07:00 BRT
Um paciente com queimaduras se recupera em uma unidade de terapia intensiva.

Um paciente com queimaduras se recupera em uma unidade de terapia intensiva.

Foto de Gaetan Bally KEYSTONE via Redux

Quando Jacob Hyland, sua esposa, Jamie, e seu bebê foram para a propriedade da família, na zona rural de Washington, Estados Unidos, há dois anos, eles não tinham ideia de que o incêndio em Cold Springs estava acontecendo nas proximidades. Sem Wi-Fi ou serviço de celular no rancho de 16 hectares, eles não receberam avisos de evacuação por causa do fogo em grandes proporções, que acabou consumindo cerca de 80 mil hectares.

Quando Jacob, agora com 33 anos, avistou o amplo tom alaranjado no céu durante a manhã, não havia para onde correr. A família se amontoou contra uma rocha até que o "inferno", alimentado por ventos de 80 km/h, veio sobre eles. Queimados e sofrendo com a inalação de fumaça, eles, de alguma forma, encontraram forças para caminhar até o rio Columbia, que corre ao longo da propriedade deles, na esperança de resgate. 

Tragicamente, seu filho recém-nascido, Uriel, não sobreviveu. Dois dias depois, enquanto o casal estava deitado às margens do rio, entrando e saindo de consciência, um barco da Comissão de Conservação de Peixes e Vida Selvagem os viu e os transportou para uma ambulância, que os levou para a unidade de queimados do Centro Médico Harborview, da Universidade de Washington, em Seattle, EUA.

Jacob, que concordou em ser entrevistado para esta matéria, sofreu queimaduras de terceiro grau em mais de 30% de seu corpo, e suas mãos ficaram quase irreconhecíveis. Pessoas com esse nível de dano precisam de cuidados de uma ampla equipe de profissionais de saúde para não sucumbirem aos ferimentos, diz o cirurgião e médico intensivista de Jacob, Sam Arbabi.

Graças aos cuidados médicos intensivos, Jacob e Jamie sobreviveram. Mas o processo de restauração da pele foi árduo, envolvendo meses no hospital. Para Jacob, foram mais de uma dúzia de operações.

Curar feridas complexas, e especialmente queimaduras grandes e profundas como as de Jacob, ainda é um grande desafio para os médicos. Mas depois de décadas de avanços, as novas tecnologias estão fazendo a diferença. “O tratamento de feridas é uma área muito ativa de pesquisa e inovação porque se aplica a muitos tipos de pessoas, incluindo pacientes submetidos a cirurgias, pessoas que se cortam em casa ou trabalhadores que inesperadamente sofrem queimaduras químicas”, diz Andrew Vardanian, cirurgião plástico que trata feridas graves no hospital da Universidade da Califórnia.

“As feridas são comuns porque todo mundo tem pele", diz Arbabi. "A crescente população de sem-teto também é vulnerável a queimaduras porque o propano, frequentemente usado para aquecimento no inverno, se inflama facilmente."

Médicos e pesquisadores esperam ver um crescimento no número de feridas de pele nos próximos anos, e não apenas por incêndios florestais, que aumentaram acentuadamente nos últimos anos, em parte devido às mudanças climáticas. A população americana está envelhecendo, e as pessoas mais velhas têm a pele mais fina, mais propensa a lesões e mais lenta para se recuperar. Há também 34 milhões de americanos que têm diabetes e outros 88 milhões com pré-diabetes. A doença é caracterizada por feridas que não cicatrizam naturalmente.

As células-tronco que, após anos de progresso lento, estão finalmente começando a demonstrar potencial de cicatrização de feridas, estão gerando entusiasmo entre os cientistas. “Temos esses resultados iniciais empolgantes, que sugerem que este é um ótimo caminho a seguir terapeuticamente”, diz George Murphy, dermatopatologista e codiretor do programa de pele do Instituto de Células-Tronco da Universidade de Harvard, nos EUA, que está participando de algumas das pesquisas.

Quanto às lesões de Jacob, um novo polímero sintético biodegradável chamado NovoSorb BTM foi usado para fechar temporariamente algumas das feridas e ajudar a gerar tecido saudável. Mais tarde, a pele foi enxertada em suas mãos com tecido de suas coxas, bem como de cadáveres e animais. 

Outra pele substituta veio por meio de um novo dispositivo de colheita de células chamado Recell, que incubava uma pequena quantidade de células saudáveis ​​da pele de Jacob em uma solução, permitindo que fosse pulverizada sobre uma área maior para que a ferida cicatrizasse mais rapidamente e com menos cicatrizes.

Embora suas mãos não funcionem como antes (antes pedreiro, Jacob agora mal consegue segurar suas chaves ou uma xícara de chá), ele está emocionado que seus médicos foram capazes de salvar seus membros carbonizados e transformá-los.

“Sem os enxertos, acredito que teria morrido”, diz Jacob, que fica especialmente impressionado com a maciez da pele do dorso da mão direita, onde um produto em spray foi usado. “A ciência me salvou.”

Auxiliando na cicatrização de feridas inatas do corpo

Para pequenos ferimentos, os remédios não mudaram muito em relação às instruções apresentadas em uma tábua de argila há quase 5 mil anos, de acordo com a história da cicatrização de feridas relatada em uma revista médica: limpe e enfaixe a ferida, depois deixe a Mãe Natureza fazer seu trabalho.

Na maioria das vezes, isso funciona bem. Corte o dedo com uma faca de cozinha ou queime o cotovelo no fogão. Enquanto você se livra da dor e começa a fazer a salada, uma brigada militar invisível no corpo começa a cura imediatamente. Isso porque a pele é a primeira linha de defesa contra os micróbios abundantes que podem causar danos se entrarem no organismo. Uma ferida degrada essas defesas.

As intervenções médicas, mesmo para feridas maiores ou complexas, destinam-se principalmente a apoiar a defesa do organismo. A cicatrização de feridas ocorre em quatro estágios sobrepostos: o primeiro é a hemostasia, onde os vasos sanguíneos se contraem e coagulam para tapar rapidamente a ferida e evitar o sangramento. Em seguida, vem a inflamação, onde a ferida é inundada com pequenas proteínas que convocam células imunes e estimulam o crescimento de tecidos substitutos.

Os médicos acreditavam há muito tempo que a inflamação inicial poderia atrapalhar a cura, mas agora eles entendem que ela desempenha um papel importante na mobilização das células necessárias para reconstruir o tecido, diz Jennifer Elisseeff, engenheira biomédica e diretora do Centro de Engenharia de Tecidos Translacionais da Universidade Johns Hopkins.

O terceiro estágio é a proliferação, onde a ferida é reconstruída com colágeno (a proteína que fornece suporte estrutural) e enzimas, novos vasos sanguíneos e outras substâncias. Finalmente, durante a maturação, uma cicatriz é formada enquanto o tecido abaixo continua a se fortalecer.

Promessa dos tratamentos com células-tronco

É claro que lesões graves, como queimaduras, são tão grandes e traumáticas que esse processo é impedido, apontam os especialistas. E feridas como as úlceras nas pernas que afligem muitos diabéticos demoram a cicatrizar porque os vasos sanguíneos estreitados pela doença limitam a quantidade de oxigênio e nutrientes que podem fluir para o local.

Mesmo no melhor cenário, porém, a pele cicatrizada não funciona exatamente como antes. Isso porque nervos sensoriais, glândulas sudoríparas, folículos pilosos, células imunes residentes e todas as outras estruturas complexas normalmente encontradas na segunda camada da pele, chamada derme, não são reconstruídas. “A pele é um órgão incrível, estrutural e funcionalmente, e o que você tem depois que ela é substituída é um remendo de couro”, explica Murphy, observando que esse material faz o trabalho de proteger o corpo, mas não tem muito da função da pele normal.

É por isso que há muito tempo os cientistas se entusiasmam com as células-tronco, especialmente as conhecidas como mesenquimais, que residem naturalmente na pele,  porque têm potencial para acelerar a cicatrização, diz Murphy. O poder dessas células-tronco é evidente quando os bebês são operados no útero e ficam ilesos porque a pele se regenerou completamente. Mas por razões que ainda não estão claras, as células-tronco perdem essas habilidades após o nascimento, aponta Murphy.

Uma pesquisa publicada em janeiro testou 31 pessoas com feridas abertas nas pernas, chamadas úlceras venosas, que resistiram à cura. O estudo usou um tipo de células-tronco mesenquimais conhecidas como ABCB5+, que evitam naturalmente a rejeição do sistema imunológico. As células foram colhidas da pele de doadores humanos e concentradas em uma suspensão líquida antes de serem colocadas na ferida e cobertas com um curativo. 

Dentro de três meses de tratamento, essas feridas, antes resistentes, encolheram em média 76%. Resultados semelhantes também foram encontrados com úlceras nos pés, segundo pesquisa inédita da Rheacell, empresa alemã que fabrica células-tronco mesenquimais específicas.

Ainda assim, são necessários mais e maiores ensaios clínicos, destaca Murphy, que é pesquisador nos ensaios clínicos Rheacell, assim como o codiretor do programa de células-tronco de Harvard, Markus Frank. Mas esses primeiros resultados são um passo importante em direção à promessa que as células-tronco podem trazer para o tratamento de feridas. “Para mim, o santo graal final não é apenas curar a ferida usando células-tronco, mas curar por regeneração, o que restauraria todas as complexidades que a pele tinha antes da lesão”, diz Murphy.

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    Aproveitando a resposta imune

    Outra estratégia para a cicatrização de feridas emprega o sistema imunológico, uma conexão que os pesquisadores haviam ignorado até recentemente. Elisseeff, da Johns Hopkins, ficou intrigada com esse campo durante um ensaio clínico no qual ela estava testando um biomaterial para reconstruir o tecido facial e descobriu que o tipo de células imunes que se reuniam dependia de qual tecido estava adjacente. Ela agora está certa de que as células imunes são fatores-chave no processo regenerativo.

    Essa descoberta inicial a levou a testar a imunologia regenerativa dirigida. Isso inclui um estudo em animais de laboratório que mostra como o implante de certos materiais biológicos aumenta a presença e a duração das células B do sistema imunológico, que podem gerar anticorpos que se acredita estarem associados à cicatrização de feridas.

    Elisseeff também descobriu que, à medida que envelhecemos, as células T do sistema imunológico, que normalmente ajudam o corpo a combater invasores estranhos, permanecem mais tempo na ferida, levando a cicatrizes desnecessárias. Pesquisas em camundongos, que ainda não foram revisadas por outros cientistas, revelaram que a comunicação no sistema imunológico foi alterada por causa das células T envelhecidas, e que a inibição delas pode melhorar a cura.

    Inovações em prática

    Enquanto isso, os médicos não estão esperando que as inovações se tornem clinicamente disponíveis. Nos últimos anos, vários produtos pioneiros na cicatrização de feridas surgiram no mercado.

    Além dos enxertos de pele em spray Recell, a agência reguladora de alimentos e drogas dos EUA, a FDA, também aprovou um produto chamado Epicel, que usa uma pequena quantidade de pele de um paciente queimado para cultivar grandes enxertos em laboratório para curar feridas consideráveis. Embora este substituto de pele seja atualmente caro (centenas de milhares de dólares para cobrir um torso gravemente queimado, diz Arbabi), trata-se de um grande avanço, apontam os especialistas.

    Outra inovação é um dispositivo de sucção. A pressão negativa, onde a sucção é aplicada para aumentar o fluxo sanguíneo e reduzir o inchaço, provou ser útil em feridas abertas. Nos últimos anos, com seu dispositivo Prevena, a 3M Company emprega pressão negativa em feridas costuradas na semana seguinte à cirurgia. Um estudo publicado no ano passado, que incluiu 300 pessoas submetidas à cirurgia de substituição do joelho pela segunda vez, descobriu que aqueles que usaram o dispositivo por uma semana tiveram 75% menos complicações do que aqueles que usaram curativos tradicionais.

    Avanços também foram feitos nos próprios curativos, um dos passos básicos para a cicatrização de feridas. Conhecidos há milênios, os curativos referem-se a qualquer coisa colocada diretamente no ferimento para ajudar na cura, o que antes significava gorduras animais, mel ou uma mistura de ervas. Hoje, esses curativos incorporam materiais sintéticos derivados de algas, substâncias semelhantes a gel conhecidas como hidrocolóides, espumas ou filmes que mantêm o nível de umidade na ferida equilibrado, que também pode conter medicamentos que facilitam a cicatrização.

    Apesar de todas as melhorias, “ainda não há um produto perfeito disponível atualmente”, conta Alexander Seifalian, especialista em biomateriais de Londres, que recentemente revisou um estudo sobre curativos para o International Wound Journal.

    Extensas pesquisas sobre curativos continuam, incluindo tentativas de incorporar nanopartículas magnéticas ou células-tronco nos curativos. A empresa de Seifalian está trabalhando em um curativo composto por um material forte, mas leve, conhecido como grafeno.

    Para algumas feridas, no entanto, não é tanto a inovação quanto a experimentação com as opções atualmente disponíveis que fazem a diferença. Esse foi o caso de Susan Craighead, uma juíza aposentada do Tribunal Superior de Seattle, de 58 anos, que nasceu com epidermólise bolhosa, uma condição genética na qual a pele facilmente forma bolhas e lágrimas. Ao longo dos anos, ela tentou vários curativos nas feridas de centímetros de comprimento, que não cicatrizavam, que se enraizaram em suas costas, nádegas e torso.

    Vinte anos atrás, ela encontrou um curativo de silicone que a ajudou, mas as feridas permaneceram e, mais recentemente, estavam se tornando regularmente infectadas. Há um ano, ela mudou para um novo médico, Arbabi, que recomendou o Xeroform, uma malha contendo um derivado do metal bismuto, que tem propriedades antimicrobianas, entre outras, sobre a qual ela foi instruída a aplicar antibióticos.

    “Dentro de algumas semanas, as feridas que eu tinha há anos sob meus seios desapareceram”, diz Craighead. As das costas também melhoraram muito, embora as feridas nas nádegas permaneçam. “Meu médico achou que era apenas uma sugestão simples, mas para mim, foi uma mudança de vida.”

    Para Jacob Hyland, as extensas queimaduras que ele e sua esposa sofreram, juntamente com a perda de seu filho, nunca serão totalmente curadas. Mas ele é grato pelos tratamentos de ponta que recebeu e pelo progresso que está lentamente permitindo que ele tenha uma nova vida.

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