O fim da inflamação? Uma nova abordagem pode tratar dezenas de doenças

Câncer, envelhecimento e covid-19 grave foram todos ligados a danos causados por inflamação. Agora, cientistas mudam de foco para encontrar novas drogas que possam revolucionar tratamentos.

Por Connie Chang
Publicado 14 de mar. de 2022, 12:16 BRT
Rheumatoid Arthritis

Raio-X bilateral das mãos e pulsos de um paciente de 54 anos com artrite reumatóide. Na mão direita (à esquerda na foto), há artrite nas articulações do pulso. Há uma perda de espaço ósseo e os ossos estão começando a se fundir. Na mão esquerda (à direita na foto), há crescimentos ósseos nas articulações do dedo esquerdo causando inflamação. A artrite reumatoide é uma doença autoimune degenerativa que afeta principalmente a cápsula ao redor das articulações flexíveis, causando inflamação crônica. Pode ser uma condição debilitante e dolorosa e pode levar a deformidades e perda de funcionamento e mobilidade.

Foto de Zephyr, Science Source

Quando criança em Atlanta, Geórgia, nos Estados Unidos, Lauren Finney Harden sempre teve alergias. Mas, depois que se mudou para Nova York para trabalhar em seu primeiro emprego, em 2007, as inflamações “simplesmente explodiram” por todo o corpo.

“Eu tinha erupções insanas de corpo inteiro e problemas gastrointestinais estranhos. Eu dava arrotos enormes, que me faziam sentir como se precisasse vomitar, mas nada vinha a não ser ar”, diz ela.

Eventualmente, ela foi diagnosticada com lúpus, uma doença na qual o sistema imunológico ataca os próprios tecidos e órgãos do corpo. Ela começou tratamento com uma droga chamada prednisona, um corticoide que absorve a inflamação.

Mas a cura, às vezes, parecia pior do que a doença. “Eu parecia grávida de quatro meses o tempo todo”, diz Finney Harden, “e eu tinha erupções de herpes semana sim, semana não; meu corpo não conseguia lutar contra nada.”

Inflamação: tratamentos tradicionais na mira

A experiência de Finney Harden é, infelizmente, comum em tratamentos tradicionais para doenças autoimunes, como os com prednisona. Conhecido imunossupressor, o medicamento funciona desativando a produção de moléculas pró-inflamatórias que são cruciais para o corpo montar uma defesa imunológica.

Assim, enquanto a prednisona (e drogas como essa) consegue extinguir rapidamente a inflamação, ela deixa o corpo vulnerável a patógenos e pode causar efeitos colaterais tóxicos.

“Simplesmente parar a inflamação não é suficiente para voltar o tecido ao seu estado normal”, diz Ruslan Medzhitov, professor de imunobiologia na Escola de Medicina de Yale, nos EUA.

Esta abordagem ignora o outro lado da moeda da inflamação: resolução. Resolver a inflamação é um processo ativo e altamente coreografado para reconstruir tecidos e remover as bactérias e células mortas. Quando esse processo é interrompido, surgem doenças inflamatórias.

A relação entre inflamação e envelhecimento

No início dos anos 2000, pesquisadores começaram a reconhecer o papel da inflamação em condições tão variadas como Alzheimer, câncer, diabetes e doenças cardíacas, levando-os a reformular a inflamação como a explicação unificadora para uma miríade de doenças, incluindo aquelas que desenvolvemos à medida que envelhecemos.

Mesmo o envelhecimento em si, e suas patologias associadas, é impulsionado por inflamações persistentes.

“Até recentemente, acreditávamos que a inflamação simplesmente parava”, diz Molly Gilligan, residente em medicina interna na Universidade de Columbia, nos EUA, que estuda como o sistema imunológico impacta o desenvolvimento do câncer.

Os imunologistas pensavam que os produtos resultantes de inflamações – como as moléculas que a desencadeiam e células mortas e tecidos – são eventualmente metabolizados, ou dissipam-se espontaneamente por conta própria.

A realidade é mais complicada, e reconhecer isso pode ter efeitos que mudam o jogo sobre como tratamos uma ampla faixa de doenças.

Por que se produz a inflamação?

A inflamação evoluiu para servir a uma função importante: ela livra nossos corpos de coisas que não pertencem a ele, incluindo invasores estrangeiros como bactérias e vírus, células tumorais e corpos estranhos que causam irritações, como farpas. 

“Um exemplo clássico de início inflamatório é a picada de abelha: o local fica quente, vermelho, inchado e doloroso”, diz Derek Gilroy, professor de imunologia da University College London, na Inglaterra.

Essa resposta vem de uma série de alterações biológicas: os vasos sanguíneos se dilatam para entregar glóbulos brancos ao local da lesão, fazendo com que os tecidos fiquem vermelhos.

O fluido também inunda o local, causando inchaço. As moléculas que desencadeiam essas transformações vasculares precipitam a coceira, a dor e a febre associadas à inflamação.

Os glóbulos brancos, os socorristas do corpo, em seguida atacam e matam os invasores. Em circunstâncias normais, esta carnificina é contida, com a resposta inflamatória inicial diminuindo dentro de 24 a 48 horas.

Quando a inflamação fica perigosa?

Quando a inflamação se torna crônica, porém, as armas químicas implantadas por células imunes da linha de frente muitas vezes danificam tecidos saudáveis, e nossos corpos sofrem com danos colaterais.

O custo disso inclui articulações gastas, neurônios danificados, rins cicatrizados e muito mais. Doenças autoimunes, como artrite reumatoide e lúpus, caracterizadas pela dor e piora da incapacidade, têm sido associadas há muito tempo a inflamações persistentes.

Em casos extremos, como as tempestades de citocinas associadas à sepse ou à covid-19 grave, a inflamação pode destruir e desativar múltiplos órgãos, levando a uma falha catastrófica do sistema e à morte.

O que é a resolução: o papel dos SPM

Medzhitov compara uma infecção a um cano quebrado que inundou um escritório com água. Consertar o tubo pode impedir que a água entre, mas não restaura o escritório ao seu estado funcional anterior.

Da mesma forma, a inflamação tem uma fase de limpeza conhecida como resolução, e prossegue em uma série de etapas altamente coordenadas.

Assim como o início da inflamação, sua resolução é orquestrada por um exército de moléculas de sinalização. Entre os mais intensamente estudados estão os mediadores pró-resolutivos especializados (SPMs na sigla em inglês), que foram descobertos na década de 1990 por Charles Serhan, professor de anestesia na Escola de Medicina de Harvard.

Serhan foi inspirado por seu mentor de pós-doutorado, Bengt Samuelsson, que descobriu como moléculas gordurosas, chamadas lipídios, desencadeiam inflamação. Serhan estava procurando por moléculas semelhantes quando identificou a  lipoxina. Mas, para sua surpresa, em vez de incitar inflamação, a lipoxina parecia dificultá-la.

Nos anos seguintes, Serhan e seus colegas identificaram SPMs adicionais. Essas moléculas são derivadas de ácidos graxos essenciais, como os ômega-3, famosos por serem encontrados em peixes de água fria como salmão e sardinhas. Mas são difíceis de estudar no laboratório.

“Um dos principais desafios é que eles têm meias-vidas curtas, então o corpo os metaboliza muito rapidamente”, diz Gilligan. Por causa disso, os pesquisadores que trabalham nessas moléculas muitas vezes recorrem a versões sintéticas delas, ou miméticas, que são mais simples, estáveis e mais baratas de produzir.

Inflamação e diabetes: foco nos SPM

Catherine Godson, professora de medicina molecular na University College Dublin, na Irlanda, há muito se interessa por diabetes, dado seu impacto na saúde pública global como a causa mais comum de insuficiência renal.

Quando soube dos SPMs, ficou entusiasmada com a ideia de incentivar a resolução para o tratamento de diabéticos, uma “população com um risco particularmente alto de infecção”.

Em camundongos com doença renal diabética, cicatrizes de inflamação renal gradualmente destroem o órgão. Sua equipe está testando o potencial terapêutico de um mimético de lipoxina nesses e em outras cobaias animais. Eles também analisaram o efeito do mimético no tecido humano em culturas de células de laboratório tiradas de pacientes com aterosclerose, uma doença inflamatória da parede dos vasos sanguíneos.

Em ambos os casos, os fatores inflamatórios despencaram quando o mimético foi introduzido; para os camundongos, os rins recuperaram sua função em uma reversão impressionante da doença estabelecida.

Gilroy observa, no entanto, que a história sobre SPMs está incompleta. “Enquanto as lipoxinas estão presentes em níveis no corpo que indicam que são importantes na resolução, outros SPMs, como resolvinas, exigem mais avaliação”, diz.

Os cientistas especulam que uma maneira de as lipoxinas e outras moléculas pró-resolutivas funcionarem é interagindo com células imunes chamadas macrófagos.

Por serem tão abundantes durante a inflamação, os macrófagos têm sido tradicionalmente considerados como células pró-inflamatórias, diz Gerhard Krönke, imunologista e reumatologista da Universidade de Erlangen-Nürnberg, na Alemanha. “Mas uma mudança de paradigma na última década sugere que os macrófagos são atores fundamentais na resolução da inflamação.”

Gilroy concorda, chamando macrófagos de “células-chave na justaposição de inflamação e resolução: Pode ir para um lado se estivermos saudáveis e de outra maneira se não estivermos”.

Como funcionam os macrófagos no processo antiinflamatório

Inicialmente, quando o perigo representado pelos invasores está no auge, os macrófagos atraídos para a área são inflamatórios, secretando citocinas pró-inflamatórias e ampliando a produção de agentes antimicrobianos.

Mas esse equilíbrio muda à medida que a maré do confronto gira. Depois que o número de vírus diminui, os detritos deixados para trás (restos virais, células imunes mortas e outros resíduos) devem ser coletados e limpos antes que desencadeiem outro ciclo de inflamação. É quando os macrófagos trocam de marcha.

Atraídos por sinais de “coma-me” expressos na superfície das células moribundas, macrófagos prontamente engolfam e limpam as células mortas do ambiente. Mas não se trata apenas de limpar os destroços, esse processo também vira um interruptor genético, reprogramando macrófagos para restaurar o equilíbrio do sistema e curar os tecidos.

“Os macrófagos começam a produzir fatores que dizem ao tecido local: não recrutem mais células inflamatórias aqui, ou, vamos proliferar e começar a reparar o lugar”, diz Kodi Ravichandran, imunologista da Universidade de Washington, em St. Louis, nos Estados Unidos, cuja pesquisa se concentra em como as células mortas são retiradas do corpo.

Agora, o consenso que está sendo construído entre especialistas é que muitas das doenças atribuídas à inflamação, tanto crônicas quanto agudas, podem ser rastreadas a uma falha na resolução. Muitas vezes isso se traduz em uma falha em limpar células mortas.

“Se você derrubar receptores nos macrófagos de camundongos que reconhecem células mortas, por exemplo, eles se tornam incapazes de comer essas células, resultando em uma doença semelhante ao lúpus”, com sintomas como artrite e erupção cutânea, diz Krönke.

Um mecanismo semelhante funciona em pessoas mais velhas, diz Gilroy. À medida que envelhecemos, o corpo perde uma proteína que reconhece células moribundas; isso bloqueia a capacidade dos macrófagos de encontrar e comer detritos.

Trancados em um estado pró-inflamatório, esses macrófagos continuam a produzir moléculas que amplificam a resposta inflamatória no início.

Resposta antiinflamatória à covid-19

Talvez a covid-19 tenha sido mais severa em populações mais velhas “porque elas perderam alguns dos caminhos pró-resolutivos com a idade”, sugere Luke O'Neill, imunologista do Trinity College Dublin, na Irlanda.

Ele observa que a covid-19 também tem sido problemática para pessoas com mutações genéticas que impactam a função imunológica, resultando em respostas inflamatórias hiperativas ou sub-ativas pró-resolutivas.

Seu grupo de pesquisa e outros demonstraram que os macrófagos preparados para a ação inflamatória desempenham um papel significativo em casos críticos de covid-19, e estão atualmente testando estratégias pró-resolutivas para combater esse efeito.

Resposta antiinflamatória ao câncer

O processo do câncer também é afetado quando a inflamação não se resolve. A sopa de toxinas, fatores de crescimento e outros subprodutos inflamatórios que acompanham a inflamação estimulam o crescimento e a propagação do câncer.

Muitos tratamentos convencionais acabam agravando o problema, de acordo com Dipak Panigrahy, professor assistente de patologia no Beth Israel Deaconess Medical Center, em Boston, nos EUA.

“Quimioterapia e radiação são como marretas”, diz Panigrahy. “Eles podem matar o tumor, mas os detritos que eles criam estimulam a inflamação, que alimenta as células tumorais circulantes que sobrevivem ao tratamento.”

Uma década atrás, Panigrahy já estava intrigado sobre esse enigma quando conheceu Serhan em uma conferência sobre lipídios em Cancún, no México. “Eu tinha acabado de apresentar minha pesquisa sobre a morte celular no câncer e como não há como limpar os destroços resultantes quando ouvi a conversa de Serhan sobre como ele descobriu esses lipídios que eliminaram os detritos”, diz ele.

Os dois pesquisadores trabalham em Boston e têm compartilhado uma estreita colaboração desde então.

Em experimentos de prova de conceito realizados em camundongos, o grupo de Panigrahy foi capaz de evitar que os tumores se repitam após a cirurgia, dosando os animais com mimética de resolvina, um dos mediadores pró-resolutivos descobertos no laboratório de Serhan. Os ensaios clínicos de fase um para câncer de pâncreas, cérebro e cólon começarão este ano, diz Panigrahy.

Covid longa e inflamação

Embora ainda haja muito trabalho para decodificar seus segredos, “a Covid longa provavelmente resulta de uma falha catastrófica de resposta e resolução imune apropriada”, sugere Gilroy.

Meg St. Esprit faz parte de uma grande parcela de sobreviventes da covid-19 que continua a sofrer sintomas meses após o vírus ter passado. Ela e sua família contraíram a doença em novembro de 2020, e durante sete dias ela – que é mãe de quatro filhos em Pittsburgh, Pensilvânia – sofreu com febre alta e fortes dores de cabeça.

Fadiga debilitante, vertigem e névoa cerebral logo se seguiram. Mas enquanto seu marido e filhos se recuperavam, os sintomas de St. Esprit permaneciam, e novos surgiram.

Durante a luta contra a covid-19, ela desenvolveu coágulos sanguíneos e miocardite, consequências perigosas da inflamação. É também como se todo o corpo dela tivesse enlouquecido. “Diferentes partes dele inflamam regularmente agora”, diz ela. “Minhas articulações do polegar incham, e ficam o dobro do tamanho normal, meu joelho dilata como uma toranja, e eu tive urticária mais vezes do que eu posso contar.”

As drogas para ajustar o processo inflamatório natural também seriam, portanto, uma ferramenta poderosa em nosso arsenal contra a covid longa. Mesmo agora, a caçada está em andamento. O'Neill e colegas, por exemplo, testam moléculas em ensaios clínicos que pressionam macrófagos a serem pró-resolutivos.

Os SPM são a solução para a inflamação?

Os SPMs estão sendo testados extensivamente em modelos animais de doenças como câncer e sepse, e mais modestamente em pequenos estudos de pacientes com eczema e doença periodontal.

Mas Gilroy adverte que a resposta pode ser mais sutil do que antiinflamatórios vs. pró-resolutivos, e que drogas direcionadas a ambas as abordagens podem ser necessárias.

“É como dirigir um carro a toda velocidade”, diz ele. “Para parar, você tira o pé do acelerador, o que seria como amortecer o início da inflamação. E então você aplica os freios, ou em outras palavras, promove sua resolução.”

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