Distúrbio do espectro alcoólico fetal: o que é e quais são suas consequências

Estimativas sugerem que até 5% das pessoas nos Estados Unidos apresentam o distúrbio. Veja como cientistas e ativistas trabalham para melhores diagnósticos e tratamentos.

Por Emma Yasinski
Publicado 19 de jul. de 2022, 15:52 BRT

No passado, acreditava-se que as crianças que haviam sido expostas ao álcool ainda no útero pudessem ser facilmente identificadas por suas características faciais: lábio superior fino, cabeça pequena e ponte nasal plana. Mas, ao longo dos anos, pesquisadores descobriram que a exposição pré-natal ao álcool também pode afetar diferentes sistemas do organismo – algo mais difícil de constatar.

Foto de Living Art Enterprises LLC, Science Source

Quando Joel Sheagren adotou seu filho, sabia que a mãe biológica havia consumido álcool durante a gravidez. Mas o menino, Sam, não havia nascido com nenhum sinal evidente de problemas de desenvolvimento, então, Joel não se preocupou. Dois anos depois, ele e sua esposa adotaram uma menina, filha da mesma mãe.

Ambas as crianças haviam sido expostas ao álcool enquanto ainda estavam no útero, mas à medida que cresciam, apenas Sam parecia apresentar problemas de aprendizado ou para seguir instruções. Agora adolescente, Sam tem dificuldade em recordar o que lhe foi dito no dia anterior e compreender sequências de eventos. Ele é um talentoso jogador de futebol, explica Joel, mas precisa ser lembrado regularmente sobre o que pode acontecer entre o momento em que ele passa a bola e o momento em que seu time marca um gol.

Durante a adolescência de Sam, Joel o levou a uma clínica de diagnóstico de distúrbios do espectro alcoólico fetal em Minnesota, Estados Unidos. “Foi somente quando nosso filho completou 14 anos que realmente começamos a perceber” que a exposição pré-natal ao álcool estava afetando seu desenvolvimento e comportamento, conta Sheagren, cineasta de Minnesota. Ele ficou surpreso. “Essa é uma questão tão prevalente”, afirma ele. “Como não percebi?”

De acordo com estudos, estima-se que o distúrbio do espectro alcoólico fetal, ou Deaf, afetem entre 1% e 5% da população, embora especialistas suspeitem que a prevalência seja ainda maior. Além dos desafios cotidianos, muitos desses indivíduos correm o risco de se envolver com o sistema de justiça criminal tanto como vítimas quanto como criminosos. 

Jerrod Brown, pesquisador especializado em saúde comportamental e justiça criminal na Universidade Concórdia, em St. Paul, Minnesota, revela que dificuldade de comunicação, propensão a confissões falsas e problemas para cumprir os horários estabelecidos pelos agentes de liberdade condicional são histórias que ele ouve “repetidamente”.

Mapas de anisotropia fracionada comparando os cérebros de duas crianças de 12 anos. A primeira imagem à esquerda, de um indivíduo com Deaf, mostra o subdesenvolvimento da substância branca, ou os “feixes” do cérebro. A segunda imagem, à direita, para comparação, está o cérebro de alguém que não foi exposto ao álcool no útero da mãe e cuja substância branca apresenta desenvolvimento normal. A imagem colorida à esquerda mostra um corpo caloso anormal (conjunto de fibras de substância branca brilhante) em uma criança de 12 anos com Deaf. Já a imagem à direita mostra um corpo caloso típico em uma criança de 12 anos sem Deaf.

Foto de JEFFREY R. WOZNIAK

Não está claro quantas pessoas com esses distúrbios acabam encarceradas, mas diversos estudos menores estimaram que entre 10% e 36% das pessoas em ambientes correcionais possam ter Deaf.

Parte do desafio está no diagnóstico, que é complexo. Aqueles com suspeita de distúrbios precisam se consultar em uma clínica especializada – o que pode exigir horas de deslocamento – e passar um dia inteiro realizando testes para avaliar o aprendizado e a cognição, fundamentais para personalizar o tratamento e o suporte oferecido a cada paciente. Em muitos casos, a clínica só consegue avaliar indivíduos cujas famílias confirmaram exposição ao álcool no útero.

É por isso que Susan Shepard Carlson, ex-juíza do tribunal distrital e primeira-dama de Minnesota, defende um projeto de lei chamado Fasd Respect Act (Lei em Respeito aos Deaf, em tradução livre), que tem como objetivo fornecer recursos em todos os Estados Unidos para triagem, pesquisa e outros serviços de apoio. Em 1997, ela percebeu que muitos dos jovens que passavam pelos tribunais “tinham o mesmo perfil das pessoas com DEAF – problemas de aprendizado e de comportamento – mas não estávamos realmente olhando para a causa do problema”. 

Na época, apenas lesões cerebrais traumáticas externas eram consideradas na tomada de decisões sobre esses casos. Carlson convocou uma força-tarefa e organizou audiências públicas, o que levou o estado a financiar pesquisas e tratamentos para a Deaf. O tribunal conseguiu rastrear crianças com suspeita de ter o distúrbio não diagnosticado, e ela salienta que cerca de 25% das crianças escolhidas tinham o Deaf não diagnosticado.

No entanto, destacar essa questão em todos os Estados Unidos envolve mais do que justiça criminal. O suporte oferecido a pesquisas e opções de tratamento pode mudar a história de famílias como a de Sheagren. Desde que percebeu que o Deaf era a causa dos problemas de comportamento de Sam, Joel participou de treinamentos especializados com Brown sobre como se comunicar com seu filho e ajudá-lo, e conta que esses treinamentos fizeram uma grande diferença.

“É muito importante saber que, mesmo se identificarmos o problema e oferecermos alternativas o mais cedo possível, ainda podemos ter diferenças drásticas no que diz respeito aos desfechos de desenvolvimento dessas crianças”, explica Julie Kable, pesquisadora da Universidade Emory, na Geórgia, na área de exposição e neurodesenvolvimento.

Novas considerações sobre o álcool

Décadas atrás, acreditava-se que era seguro consumir álcool durante a gravidez. Mas no início da década de 1970, pesquisadores constataram um padrão: bebês nascidos de mães com transtornos graves relacionados ao consumo de álcool geralmente desenvolviam características faciais distintivas, como lábio superior fino, cabeça pequena e ponte nasal plana. Essas características geralmente eram acompanhadas por uma variedade de desafios mentais e físicos ao longo da vida, como dificuldades de aprendizado, dificuldade de raciocínio, deficiências de crescimento, bem como problemas cardíacos e renais.

Desde então, os cientistas descobriram que a exposição pré-natal ao álcool pode prejudicar o desenvolvimento do cérebro e do organismo, mesmo sem afetar as características faciais. O diagnóstico requer exames e tratamentos complexos que, devido à limitação de recursos e falta de conscientização, não é possível para muitos pacientes.

Atualmente, o termo distúrbios do espectro alcoólico fetal descreve uma série de condições, desde desregulação do sistema imune até déficit de atenção relacionado à exposição pré-natal ao álcool. Mas os sintomas exatos muitas vezes variam de um paciente para outro. Por exemplo, ao passo que os dois filhos adotivos de Joel foram expostos ao álcool durante a gestação, ele diz que sua filha não apresentou os mesmos problemas de desenvolvimento que seu filho.

“O álcool afeta o cérebro de diferentes maneiras, dependendo de quando foi exposto durante a gravidez e da intensidade da exposição, bem como outros fatores relacionados à mãe e ao feto, como nutrição e genética”, explica Jeffrey Wozniak, pesquisador de desenvolvimento neurocomportamental da Universidade de Minnesota. “Portanto, existem diversos efeitos cerebrais.”

Consequências cerebrais do distúrbio do espectro alcoólico fetal

Embora os impactos nas características faciais, no sistema imunológico, na sinalização hormonal e na cognição variem, os cientistas tendem a encontrar algumas características anatômicas com mais frequência no cérebro de pessoas que foram expostas ao álcool no período pré-natal.

Primeiro, explica Wozniak, o cérebro desses indivíduos tende a ser menor, no geral. “Nós observamos isso consistentemente em quase todos os estudos que realizamos”, observa ele.

Outra característica comum diz respeito ao corpo caloso, uma banda espessa de neurônios que se estende da parte frontal do cérebro até a parte posterior, conectando os hemisférios direito e esquerdo. “Essa estrutura coordena tudo entre as duas metades do cérebro”, observa Wozniak. Em pessoas que foram expostas ao álcool no período pré-natal, essa faixa tende a ser subdesenvolvida. E, de acordo com Kable, isso, por sua vez, pode ter impactos em diversos conjuntos de habilidades complexas.

Muitas crianças e adultos com Deaf precisam de mais tempo do que a média para processar informações. Por exemplo, Joel explica que se pedir ao filho para lavar a louça e Sam demorar cinco minutos para começar a tarefa, ele não está sendo desrespeitoso. Seu cérebro está apenas trabalhando para processar o pedido que Joel lhe fez e, em seguida, deixando de se concentrar em sua tarefa atual (como jogar videogame) para lavar a louça.

Em 2011, Wozniak e sua equipe publicaram um estudo baseado em exames cerebrais realizados para examinar a atividade neural entre os dois hemisférios. Eles demonstraram que a atividade dos dois hemisférios é menos coordenada em pacientes com Deaf, levando a déficits na coordenação olho-mão, aprendizado verbal e funções executivas.

A memória também é prejudicada. Os professores geralmente percebem os problemas de memória dos alunos, mesmo que não os identifiquem como relacionado à exposição pré-natal ao álcool. Sam “pode absorver o conhecimento”, diz Joel. Mas “no dia seguinte ele não se lembra mais do que [a professora] lhe disse e certamente não sabe como aplicar”.

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Bem no centro do cérebro há uma pequena região em forma de cavalo-marinho que é responsável pela consolidação de memórias, denominada hipocampo. Os efeitos da exposição pré-natal ao álcool nessa área são “bastante profundos”, alega Wozniak, sendo que o hipocampo possui células menores e desorganizadas.

Uma região do cérebro chamada lobo pré-frontal também pode apresentar anormalidades em pacientes com Deaf. “É uma área do cérebro que está envolvida no planejamento, organização, raciocínio e julgamento”, explica Kable. Sua equipe descobriu que em modelos animais expostos ao álcool no útero, o sistema de vasos sanguíneos e veias que transportam sangue oxigenado para essa área do cérebro pode ser desestruturado.

Isso sugere que as pessoas com Deaf têm “mais divisões no sistema, de modo que, em vez de um bom padrão homogêneo para fornecer oxigênio às regiões, a distribuição de oxigênio ocorre de maneira desorganizada”, explica Kable. Isso resulta em uma dificuldade em reabastecer o oxigênio em regiões do cérebro que ajudam as pessoas a lidar com a frustração.

Como o distúrbio do espectro alcoólico fetal é diagnosticado?

Apesar de ter identificado essas e muitas outras características cerebrais comuns aos Deaf, os médicos afirmam que os exames cerebrais atualmente não conseguem diagnosticar a exposição pré-natal ao álcool porque os casos diferem muito entre si. Na maioria das vezes, os Deaf não são reconhecidos.

No início da década de 2000, Brown, da Universidade de Concórdia, trabalhava em um centro de aconselhamento para adultos em St. Paul, Minnesota. Os pacientes continuavam chegando com o que pareciam ser listas inacreditavelmente longas de diagnósticos. “Era como se toda vez que eles procurassem um novo médico, tivessem um novo diagnóstico”, aponta ele. Eventualmente, ele notou uma tendência: muitos dos pacientes acreditavam que suas mães biológicas poderiam ter consumido álcool ou outras drogas enquanto estavam grávidas.

Por muitos anos, os médicos raramente perguntavam às gestantes ou às famílias sobre seus hábitos de consumo de bebidas alcóolicas. “Acredito que os médicos, às vezes, têm medo de perguntar porque não se sentem confiantes em relação ao que fazer se a resposta for sim”, opina Christie Petrenko, especialista em Deaf do Mt. Hope Family Center em Rochester, Nova York.

No início da década de 2000, no entanto, estudos começaram a demonstrar que as terapias direcionadas poderiam ajudar pessoas expostas ao álcool no período pré-natal. Por exemplo, Kable diz que trabalhando com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês), ela e sua equipe descobriram que oferecer suporte adaptativo ajudava as pessoas com Deaf a aprender e entender melhor matemática, um campo de estudo que requer uma boa memória de trabalho e que geralmente é desafiador para aqueles com o distúrbio. Uma opção muito simples é apresentar linhas numéricas verticalmente em vez de horizontalmente.

“Parece bobo, mas uma linha numérica vertical é meio que automática. Acrescenta os números acima ao somar, ou abaixo ao subtrair”, explica Kable. A equipe também forneceu ferramentas que ajudaram os indivíduos a contar e acompanhar os números para mitigar falhas de memória de curto prazo.

Os pesquisadores desenvolveram programas semelhantes para ajudar na função executiva e na tomada de decisões. “Não podemos mais permitir que os pediatras digam: ‘bem, por que devo diagnosticá-lo quando não há nada que possamos fazer sobre isso?’”, salienta Kable.

No entanto, atualmente existem poucos centros de diagnóstico nos Estados Unidos, e alguns estados nem ao menos possuem um único centro de diagnóstico de Deaf. Como o diagnóstico requer avaliações abrangentes, os centros que existem têm capacidade limitada para realizá-las. Muitos só atenderão pacientes que possuem um histórico provável ou conhecido de exposição ao álcool no útero, o que representa uma fração dos que se acredita serem afetados.

As avaliações também são muito caras e “levam quase um dia inteiro para serem realizadas, por isso tentamos priorizar esses recursos para as pessoas que temos certeza que podem ser diagnosticadas”, justifica Petrenko, cuja clínica é a única no norte do estado de Nova York. Ela enfatiza que, para crianças que podem precisar de uma avaliação menos intensiva, a clínica oferece consultas com um único profissional de saúde, nas quais as crianças podem obter uma avaliação mais breve dos pontos fortes e fracos e serem encaminhadas para uma avaliação mais aprofundada, se necessário.

Embora a maioria dos especialistas tenha chegado a um consenso sobre as características básicas do Deaf, também existem pequenas diferenças nos critérios de diagnóstico entre estados, países e clínicas, com pontos de corte ligeiramente diferentes. Uma criança que pontua um desvio padrão e meio abaixo da norma em um determinado teste de aprendizagem pode ser diagnosticada em uma clínica, enquanto outra exige que ela atinja  dois desvios padrão abaixo da norma. Isso significa que cada especialista pode “atender crianças um pouco diferentes, dependendo de quão rigorosos ou não são determinados critérios”, observa Petrenko.

Isso pode criar desafios para pesquisadores que desejam reunir grandes conjuntos de dados, mas também tem impactos mais imediatos. Por exemplo, Petrenko diz que indivíduos com Deaf em alguns estados, como Nova York, não se qualificam aos serviços oferecidos a pessoas com deficiência porque o estado aponta que os CDC apenas têm critérios de diagnóstico consistentes para síndrome alcoólica fetal, não para todo o espectro de distúrbios.

A divulgação e a conscientização também sofreram, embora Carlson espera mudar isso com a Fasd Respect Act, que atualmente tem quase 50 apoiadores na Câmara. Sheagren conta que ficou chocado com o pouco que sabia sobre as maneiras pelas quais o álcool pode afetar o desenvolvimento fetal. Ele agora está trabalhando em um documentário sobre os efeitos da exposição pré-natal ao álcool. “Esta é uma questão muito prevalente, sem qualquer suporte e sem conscientização suficiente”, lamenta ele. “É muito estranho.”

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