A vida secreta do saquê, obsessão nacional do Japão

De bares animados em Tóquio a cervejarias bucólicas no interior longe da capital, o saquê está presente na vida cultural e espiritual dessa nação insular.

Por Oliver Smith
Publicado 15 de ago. de 2021, 07:00 BRT
Secrets de riz et d’eau – les artisans du saké

Sinônimo de cultura japonesa, o saquê costuma ser servido em casamentos, consumido descontraidamente em festivais e acompanhado de kaiseki (refeições tradicionais com vários pratos).

Foto de Matthieu Zellweger, Haytham-rea, Redux

O saquê é delicioso, mas mortal. Na primeira degustação, é sutil e sofisticado. Agrada ao paladar. Em pouco tempo, antes que se perceba, torna-se arrebatador. Passar uma noite bebendo saquê em Tóquio não é um esporte olímpico — mas deveria ser.

Refleti sobre esse assunto certa manhã em Tóquio, deitado inerte em meu quarto de hotel no sétimo andar de um prédio de 34 andares. Estirado na cama, toda a pressão dos 27 andares acima de mim parecia estar sobre minha cabeça. Embora o saquê possa ser saboreado como vinho, geralmente possui entre 15% e 20% de teor alcoólico. O saquê pode causar ressacas terríveis. Mas também ocupa um lugar especial na alma do Japão

Para simplificar, o saquê é um vinho de arroz feito de grãos polidos que é fermentado em praticamente todos os cantos do país. Além disso, a história japonesa é permeada pelo saquê. No entanto, para muitos estrangeiros, está repleto de conceitos equivocados.

Em primeiro lugar, nem mesmo seu nome correto é saquê. “O nome é ‘nihonshu’”, explica meu amigo Ryuzo, “palavra que significa ‘bebida do Japão’.”

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    Funcionários da Fábrica Hakkaisan, uma das maiores fábricas de saquê de Niigata, produzem a mistura inicial da levedura (shubo) para fazer saquê.

    Foto de Jérémie Souteyrat, Laif, Redux

    Eu o conheci em Shinjuku, ao lado da famosa estátua de Godzilla que ruge para os bares de karaokê abaixo dela.

    Shinjuku é o centro da vida noturna de Tóquio, repleta de armadilhas turísticas para uma clientela confusa e perdida com o fuso horário. Felizmente, Ryuzo conhece a região e — seguindo uma regra tácita para encontrar os melhores bares de Tóquio — evita o óbvio: me conduz até um prédio corporativo comum, onde abrimos uma porta aparentemente banal. Uma placa contém os dizeres “SEM SAQUÊ, SEM VIDA”.

    O Mercado de Saquê Kurand integra uma pequena rede de especialistas em saquê na capital. Ryuzo e eu compramos ingressos que nos permitem nos servirmos de saquê à vontade por 90 minutos. Observo a clientela — jovens profissionais inteligentes bebericando satisfeitos — e tento imaginar a devastação que ocorreria caso um estabelecimento comercial semelhante com tempo de consumação à vontade para bebidas fosse aberto em outro local.

    A história recente não tem sido clemente com o saquê. Após a Segunda Guerra Mundial, o Japão abriu os braços (e sua adega) para o mundo. Cerveja e vinho logo viraram moda. O saquê foi deixado esquecido e o número de fábricas de saquê caiu quase pela metade em 30 anos. Somente recentemente o saquê passou por um ressurgimento que Ryuzo compara à recente expansão global das cervejas artesanais. Embora a produção em escala industrial tenha diminuído, os produtores artesanais, muitas vezes conhecidos por seus rótulos divertidos e infusões incomuns, estão em ascensão.

    Há muitos deles no Mercado de Saquê Kurand. A porta do refrigerador se abre com uma lufada de ar frio, e sinto que estou entrando em um mundo etílico polar. Existem saquês de sabor umami e saquês frutados. Saquês para iniciantes e saquês para apreciadores. Há um rótulo que proclama solenemente que “o cachorro vende saquê, e o gato que faz o saquê”.

    Nossos 90 minutos começam e partimos em uma excursão rápida pelo Japão: saquês suaves e agradáveis de Hiroshima; sabores limpos e terrosos das montanhas geladas de Tohoku. Depois de 45 minutos, experimento saquês brancos viscosos, com uma textura tão espessa quanto iogurte. O saquê oferece um universo de sensações: frias, quentes, doces, salgadas, todas proporcionam um ardor caloroso por dentro.

    Nossa sessão de degustação logo termina e vamos para Shinjuku, a partir daí a sequência de eventos passa a ser melhor interpretada ao conferir os recibos de pagamento na manhã seguinte. Com ou sem uma noite de saquê, Tóquio é um lugar inebriante. É uma cidade de um bilhão de decibéis e outdoors de um bilhão de pixels, e é mais efervescente à noite.

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        Atendente serve saquê em copo aos visitantes do santuário Koami Shinto durante o festival doburoku (de saquê) em Tóquio em 28 de novembro de 2016.

        Foto de Behrouz Mehri, AFP/Getty Images

        A certa altura, provo saquê em um bar minúsculo sob as linhas férreas, em meio aos estrondos dos trens que passam no alto, agitando os copos — como se a estátua de Godzilla ganhasse vida e começasse a causar estragos do lado de fora. Em outro, me encontro em um bar no topo de um arranha-céu, que alcança a atmosfera superior (o valor da conta também parece alcançar a Via Láctea), os postes de luz brilhando como brasas abaixo.

        Em algum momento, Ryuzo pega o último trem para casa e eu ando sem rumo por Tóquio, entre pessoas que, em estágios terminais de embriaguez, conversam com máquinas de venda automática e cantam para os pombos. A sensação costuma ser chamada por pessoas de fora do Japão de atordoamento alegre — um contentamento geral, embora não se tenha certeza do que está acontecendo em nenhum momento.

        Ocorreu o mesmo comigo e com o saquê. Posso entender, na melhor das hipóteses, entre 15% e 20% do que se passa.

        No interior

        Para saber mais sobre o saquê, segundo disseram, é preciso sair de Tóquio. Conforme as estradas seguem para o norte, o tráfego diminui e colinas verdes emergem da poluição. O Japão rural, ao que parece, tem dupla personalidade. Existe um mundo abaixo: vilarejos nos fundos dos vales; trens-bala apostando corrida com as correntezas dos rios. E existe um mundo acima: bosques sombrios; templos envoltos em nuvens: um mundo que parece não ter chegado ao século 21. O saquê é um produto da paisagem rural japonesa: arroz dos campos, água das montanhas.

        “O saquê faz parte da jornada da vida”, explica Koichi Hasegawa. “Está presente em aniversários, casamentos e funerais.”Koichi é o proprietário da 13a geração da fábrica Buko Shuzo em Chichibu, uma das primeiras cidades a ser alcançada ao norte partindo de Tóquio. A fábrica está situada em uma construção de 200 anos, onde as vigas se escoram inclinadas. Koichi é um produtor com uma devoção quase sacerdotal e uma tendência a fazer declarações profundas que merecem ser emolduradas e penduradas na parede.

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          O Monte Fuji, a duas horas de carro de Tóquio, ergue-se sobre as cidades próximas na província de Yamanashi.

          Foto de Du Xiaoyi, Xinhua/Getty Images

          Quando visito Buko Shuzo, foi concluída a colheita de arroz do outono e a estação de fermentação do inverno está em seu auge. Funcionários carregam varas agitadoras gigantescas, parecendo gondoleiros perdidos. Compreender o processo requer uma mente sóbria. O arroz é cozido no vapor em tanques, misturado com água, levedura e a cultura de fungos koji, fermentado por alguns dias e deixado para descansar. A água em Chichibu produz um saquê karakuchi arrojado e seco, que degustamos em copos de porcelana.

          “O saquê está ligado às relações humanas”, afirma Koichi, com um sorriso. “Há um ditado que diz: ‘é melhor beber saquê com alguém uma vez do que encontrá-lo 100 vezes sem beber saquê’.”

          Pergunto se o saquê é como o vinho: se há safras ilustres e garrafas que o fazem pensar em tempos passados felizes. Mas parece que o saquê é mais efêmero. “Os fabricantes não procuram fazer um saquê igual aos provenientes da safra do ano anterior. Eles procuram apenas aperfeiçoá-lo”, explica Kouichi. “Não se deve viver no passado; pense apenas no presente.”

          Durante grande parte de sua história, a produção de saquê era reservada a templos e santuários, e ainda desempenha um papel na fé xintoísta do Japão. Alguns acreditam que seu efeito de euforia ajuda a transcender o mundo mortal e se comunicar com os deuses. Os peregrinos às vezes recorrem ao saquê para se purificar antes de entrar em santuários ou escalar montanhas sagradas.

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            Visitantes andam pela Fukumitsuya Sake Brewery, a mais antiga fábrica de saquê de Kanazawa.

            Foto de Jérémie Souteyrat, Laif, Redux

            “Acredito que o saquê seja um líquido sobrenatural”, conta Yogoemon Ide. “Era originalmente usado para divulgar a palavra de Deus.”

            Yogoemon é o presidente da Ide Sake Brewery — fábrica de família que opera há 21 gerações — perto do Lago Kawaguchi, ao sul de Chichibu. O Monte Fuji se ergue acima dos telhados da fábrica e sua silhueta adorna as garrafas de saquê. Além disso, o degelo da montanha mais alta e sagrada do Japão alimenta a fonte da fábrica. A água leva quatro décadas para ser filtrada através das rochas vulcânicas do Monte Fuji, chegando à fábrica depois que a maioria das pessoas que a viram cair na forma de neve já passou para a próxima vida. Ao contrário de Chichibu, o saquê dessa região é doce, aromático e inebriante — uma compensação pelo clima frio e inóspito ao redor do vulcão, explica Yogoemon.

            “É possível saber muito sobre um lugar a partir do saquê fabricado por ele”, acrescenta. “É produzido com a água e o arroz da região e prová-lo é como experimentar uma parte da cultura local.”

            Degustamos os diferentes tipos de saquê, e Yogoemon fala poeticamente sobre como a bebida se mistura com a vida no Japão. Ele conta histórias sobre beber saquê sob as cerejeiras na primavera, época da semeadura do arroz. Folhas rosas flutuam no copo e seus apreciadores refletem sobre os primórdios, sobre o saquê sob a lua de outono, o reflexo da lua se agitando no líquido, quando os apreciadores podem contemplar o fim de suas vidas.

            Saindo da fábrica e observando o Monte Fuji, reconheço alguns dos ingredientes do saquê: a suavidade de suas encostas; a pureza de sua neve no cume; um sabor tão nítido quanto o céu sem nuvens no alto.

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              Casal visita kazaridaru (barris de saquê), uma exposição decorativa que homenageia os deuses no Santuário Meiji, em Tóquio, em 16 de janeiro de 2021.

              Foto de Yusuke Harada, NurPhoto/Getty Images

              Turismo de saquê

              O sommelier de saquê Satoko Utsugi oferece itinerários noturnos por Tóquio com o tema saquê. A Sake Tours faz passeios para Niigata, ao norte, e para Mie e Wakayama, centros de saquê ao sul de Quioto. Se visitar o país, alguns excelentes passeios noturnos de saquê incluem: Ikoi no Mura Heritage Minoyama, que oferece vistas para colinas arborizadas perto de Chichibu, um onsen com opção de quartos em estilo japonês ou ocidental; e Rakuyu Fujikawaguchiko, no topo da colina, perto da fábrica de saquê Ide Sake Brewery, com vistas panorâmicas do Lago Kawaguchi.

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