Com fim da quarentena, brasileiros tentam retomar rotina em Wuhan, berço da pandemia

Restrições na cidade passam a ser gradualmente retiradas a partir de 8 de abril. Enquanto Miguel Manacero aguarda a reabertura da universidade, Alefy Rodrigues, repatriado no Brasil, depende da retomada dos voos internacionais.

Por Kevin Damasio
Publicado 31 de mar. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Governo da China via Fotos Públicas
Agentes comunitários busca informações sobre potenciais infectados em Wuhan, na província chinesa de Hubei, primeiro epicentro da pandemia de coronavírus. A região passou meses sob severas restrições para conter o avanço da doença e começa a se reabrir em 8 de abril.
Foto de Governo da China, via Fotos Públicas

Primeiro epicentro do novo coronavírus, o cotidiano em Wuhan começa a voltar à normalidade a partir de 8 de abril. A capital da província de Hubei, no centro da China, terá passado 76 dias em quarentena, em uma batalha contra a disseminação da doença a partir de medidas de distanciamento social. Em Wuhan, apenas uma nova pessoa testou positivo para o novo coronavírus desde a última terça-feira, 19 de março – um médico do Hospital Geral de Hubei. Com isso, o término do isolamento passa a ocorrer paulatinamente.

Os bloqueios de ruas e estradas serão retirados. O transporte público gradualmente resumirá seu funcionamento. Empresas e comércios poderão retomar as atividades conforme seu grau de risco – supermercados, por exemplo, onde ocorrem aglomerações, continuarão fechados. Trabalhadores que possuem um código QR verde no celular – cor indicativa de que não se infectaram com Covid-19 e estão bem de saúde – poderão voltar à labuta, mas terão a temperatura checada ao fim de cada expediente. Escolas e universidades, por sua vez, ainda não possuem data de retorno às atividades normais e presenciais.

Desde a última quarta-feira, moradores da província de Hubei com o código verde, exceto os de Wuhan, podem se deslocar para outras cidades. O mesmo se dá para quem vive em outras regiões da China e precisa visitar Hubei. De 8 de abril em diante, a medida será estendida aos habitantes de Wuhan, com o mesmo requisito.

Mas ainda assim há restrições para impedir que ocorra uma segunda onda epidêmica na China, desta vez provocada por casos importados. Os voos internacionais seguem suspensos, bem como o bloqueio do ingresso de estrangeiros no país, mesmo os que possuírem vistos ou residência. É o caso dos brasileiros radicados em Wuhan que retornaram ao Brasil, em fuga da epidemia que se alastrava pelas províncias chinesas e para além das fronteiras nacionais.

Das 82.447 pessoas diagnosticadas com o novo coronavírus na China até esta segunda-feira, 76.204 conseguiram se recuperar e 3.310 vieram a óbito. Mais de 42 mil profissionais de saúde tiveram de ser enviados para a província, diante da crescente demanda por atendimento à saúde em decorrência do surto que se tornou pandemia.

Após três meses de reforços na saúde e isolamento social, o país viu o número de casos de transmissão local cair da casa dos milhares diários, no pico em meados de fevereiro, para centenas no início de março e, por fim, dezenas no decorrer do mês. Nos últimos sete dias, 863 pacientes foram diagnosticados com Covid-19, grande parte infectados em outros países.

Um estudo publicado na revista científica Science, em 25 de março, identificou que medidas de controle drásticas implementadas na China “mitigaram substancialmente a transmissão do Covid-19”. O estudo diz que “as intervenções incluem o aumento do número de testes diagnósticos, controle clínico, rápido isolamento de casos suspeitos, confirmados e contatos e, mais notoriamente, restrições na mobilidade”. O trabalho reuniu 17 pesquisadores de 13 universidades e instituições do Reino Unido, Estados Unidos, Equador, França, Itália e China.

Já cientistas da Universidade de Southampton, no Reino Unido, calcularam que, sem os esforços de identificação de pessoas com Covid-19 e de isolamento social, o número de doentes seria ao menos 67 vezes maior e poderia chegar a 8 milhões de habitantes.

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    O primeiro epicentro

    Em 31 de dezembro, a China comunicou à Organização Mundial da Saúde (OMS) que tinha detectado casos de “pneumonia de causa desconhecida”. No dia seguinte, 175 mil pessoas deixaram a cidade de Wuhan. Nas três semanas que se sucederam, 7 milhões haviam partido da capital da província de Hubei – cerca de dois terços da população. Os números são de um levantamento do jornal americano New York Times, com base nos registros de geolocalização dos celulares dos habitantes da região.

    A época precedia o Ano Novo Lunar, celebrado na China neste ano em 12 de fevereiro, e representa um tradicional fluxo de centenas de milhões de pessoas que viajam de férias para outras cidades e países, ou retornam às suas cidades natais para as celebrações.

    Naquele último dia de 2019, a população recebeu a notícia de que circulava na cidade um novo vírus que acarreta em síndrome respiratória aguda grave (SRAG). A princípio, as pessoas não absorveram a gravidade da situação. Afinal, eram poucas informações de que se tinha conhecimento, observa Miguel Manacero. “Um problema para ajudar espalhar é ignorar, como se não fosse nada.”

    Manacero mudou-se para Wuhan em agosto de 2019, após ganhar uma bolsa do curso de mandarim na Universidade de Hubei e concluir o ensino médio. Nascido em São José do Rio Preto e criado na vizinha Guapiaçu, ele estuda o idioma desde os 12 anos no Instituto Confúcio, parceria da Universidade Estadual de São Paulo com o Ministério de Educação da China.

    Antes da epidemia, a rotina do paulista de 18 anos era bem regrada. Ele acordava bem cedo para treinar tai chi chuan até às 8 da manhã e seguia para as três horas de aula de mandarim na universidade. Almoçava e passava as tardes estudando em seu dormitório. À noite, jantava e saía para treinar ora kung fu, ora dança do leão. A vida se passava sobretudo dentro do campus da universidade, salvo nas poucas vezes em que saía pela cidade para, geralmente, visitar os pontos turísticos.

    O dia a dia do estudante seguiu normalmente nas duas primeiras semanas de janeiro. No início, as notícias sobre o vírus eram passadas apenas em chinês e os professores ajudavam nas traduções. Como o potencial de transmissão seguia desconhecido, tranquilizavam os alunos estrangeiros. Alertavam sobre a necessidade de se precaver e evitar lugares com aglomerações, mas acreditavam que logo o surto passaria.

    Muitos brasileiros também haviam deixado Wuhan para aproveitar as férias e as celebrações do Ano Novo chinês. Boa parte dos amigos de Alefy Rodrigues já haviam partido, alguns para fora do país. Mas não foi o caso do estudante de mestrado em Relações Pessoais na Universidade de Hubei. O mineiro de 26 anos estava com passagem comprada para 4 da tarde de 23 de janeiro, com destino à Pequim. Da capital chinesa, seguiria para Xangai e depois para o Vietnã.

    Rodrigues é formado em Secretariado-Executivo Trilíngue, pela Universidade Federal de Viçosa. Sem ter noção do idioma, mudou-se para Wuhan em janeiro de 2019 para estudar mandarim. Mineiro de São Pedro dos Ferros, cidade interiorana onde vivem 7,7 mil pessoas, ele ficou impressionado tão logo desembarcou na estação de Wuhan. Chamou-lhe a atenção o tamanho dos prédios, o famoso rio Yangtzé, que corta parte do país, assim como as cores e as luzes da cidade 11 milhões de habitantes.

    Brasileiro em voo da Operação Regresso, que repatriou brasileiros em Wuhan, na China, durante o epicentro da pandemia de coronavírus, tem a temperatura do corpo checada. O avião da FAB era dividido em três áreas, fria, morna e quente. Nas áreas fria e morna, apenas tripulantes podiam entrar. Os brasileiros resgatados tiveram que ficar na parte quente.
    Foto de Força Aérea Brasileira

    Na véspera de sua viagem para o Ano Novo Lunar, uma sexta-feira de inverno, circulava o rumor de uma reunião entre as autoridades para discutir um possível isolamento da cidade onde se iniciara o surto do Sars-CoV-2. No sábado, às 10 da manhã, “fecharam tudo”, lembra Rodrigues. “Quem estava no aeroporto naquela hora ficou e voou. Quem estava a caminho teve que voltar, não entrava mais. E a companhia me mandou uma mensagem avisando que a passagem fora cancelada e devolveu o dinheiro.”

    Uma vez decretada a quarentena em Wuhan, o cotidiano na cidade alterou-se drasticamente. Carros e ônibus estavam impedidos de circular. Voos e viagens de trem foram suspensos, bem como o funcionamento do metrô e a disponibilidade de motos elétricas – meios de locomoção mais utilizados por Rodrigues. Pontos de bloqueio salpicavam ao longo das ruas e estradas. As autoridades também ordenaram que a população permanecesse em casa e, no início, só saísse para buscar alimentos e medicamentos.

    A partir daquele dia, Rodrigues praticamente não saiu de seu apartamento na universidade. “Com coragem, a gente ia no supermercado do outro lado da rua da universidade. Mas do mercado para casa, com luva e passando álcool em gel, porque a cidade estava trancada por conta da ameaça de um vírus”, ele recorda.

    As medidas de restrição se estenderam para outras 15 cidades da província de Hubei. No primeiro momento, 60 milhões de habitantes tiveram de cumprir as medidas de isolamento social. Logo, outras cidades chinesas aderiram e 760 milhões de pessoas – praticamente metade da população do país – confinaram-se em suas residências para combater a disseminação do vírus.

    Ao chegar no aeroporto para embarcar na aeronave brasileira que os trariam de volta para o Brasil, os estudantes brasileiros (da esquerda para a direita) Alefy Rodrigues, Caleb Guerra, Claudia Tambasco e Heros Martines encontraram os terminais praticamente vazios.
    Foto de Claudia Tambasco, Arquivo Pessoal

    Não demorou para que a Universidade de Hubei restringisse a entrada e a saída do campus a fim de proteger os alunos internacionais. Com isso, passaram a fornecer uma cesta básica e itens de higiene, como álcool em gel e desinfetante a base de cloro. “Aí a gente ficava em casa”, continua Rodrigues. “Só saía para pegar os mantimentos e voltava, botava a roupa para lavar, tomava banho, passava cloro no chão, álcool nas coisas que trazíamos para dentro da casa e pronto, preparados para mais uns cinco dias sem sair.”

    A epidemia do novo coronavírus causou preocupação aos moradores de Wuhan, mas Rodrigues não sentiu uma “histeria coletiva”. Para ele, a campanha de conscientização do governo foi eficaz. No celular, recebia diariamente mensagens como “lave suas mãos”, “visitar um amigo é ameaçá-lo de morte”, “não saia de casa”. “Umas mensagens pesadas, mas diretas”, disse ele. “E as pessoas postavam mensagens de altruísmo, solidariedade. Teve um dia que todo mundo foi para as janelas para cantar o hino da cidade e gritar ‘Vamos lá, Wuhan!’. Foi muito emocionante. Isso mostrou que, mesmo que separados, cada um no seu apartamento, todo mundo estava junto, lutando contra essa ameaça invisível.”

    Operação Regresso

    Os universitários estrangeiros de Wuhan davam mais credibilidade às mídias vinculadas ao governo chinês, enquanto nas redes sociais circulavam muitas notícias falsas, observa Rodrigues. Mas o aplicativo WeChat também contribuiu nos tempos de quarentena. Tão logo o surto do novo coronavírus veio à tona, os brasileiros que permaneciam em Wuhan criaram um grupo de conversas. “Desde a questão financeira até de informações, a gente foi se apoiando e criando um vínculo, a ponto de fazer chamadas de vídeo para tirar um pouco da ansiedade, do estresse, conversando, olhando face a face, quando não poderia ter contato [presencial] com ninguém”, continua o estudante. “O que fez a gente se juntar mesmo foi a ameaça do vírus.”

    Em 28 de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro disse que não repatriaria uma família brasileira que estava nas Filipinas e passara por Wuhan: “Não seria oportuno a gente tirar de lá, com todo o respeito. Pelo contrário, agora não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas”.

     

    A viagem de Wuhan até a base aérea de Anápolis (GO), onde os brasileiros passaram por uma quarentena antes de voltar para suas casas, durou 26 horas e contou com paradas na própria China, Polônia, Espanha, Fortaleza e Brasília.
    Foto de Claudia Tambasco, Arquivo Pessoal

    Segundo Rodrigues, os brasileiros receberam a declaração “com muito pesar”. Em resposta, os que desejavam retornar ao Brasil passaram a se engajar mais. Ainda havia certa insegurança, pois entendiam que em países mais pobres a quarentena se dava em situações precárias – “em galpões cheios de gente, sem internet, dividindo banheiros”, ele conta. “Muita gente estava com medo de viajar para um lugar assim e, em casa, se sentia mais segura. Não tínhamos ideia de como seria caso conseguíssemos voltar.”

    O grupo em Wuhan decidiu fazer um vídeo, para chamar a atenção sobre os riscos de ficar na China e o direito de retornar ao Brasil. Publicado em 2 de fevereiro, o apelo viralizou e foi massivamente difundido na imprensa e nas redes sociais. “É difícil pontuar uma coisa só, mas, com certeza, isso gerou a visibilidade que a gente precisava naquele momento”, avalia Rodrigues. “Claro que a gente não queria se expor dessa maneira, ter que virar a cara do coronavírus no Brasil para conseguir voltar, mas foi importante.”

    Neste interim, Rodrigues conversava com a família por meio de chamadas de vídeo no WeChat. Os pais nunca haviam utilizado redes sociais, mas aprenderam a manejar a tecnologia para se comunicar com o filho. Com a epidemia, as conversas outrora semanais tornaram-se diárias. O mineiro buscava tranquilizá-los, o que se tornou mais difícil conforme o então surto do novo coronavírus rompia fronteiras e ganhava espaço no noticiário brasileiro. Nervosos com a situação e a distância, os pais, religiosos, rezavam para que tudo desse certo. “Eu sempre fui bastante sensato com eles”, diz Rodrigues, “e acho que conseguiram manter a tranquilidade”.

    Com a pressão, o governo decidiu preparar a Operação Regresso, organizada pelo Ministério da Defesa. Assim que a Embaixada do Brasil em Pequim confirmou que repatriaria os brasileiros, Rodrigues ligou para a mãe. Existia a possibilidade de que na viagem alguém estivesse infectado, além da incerteza sobre as condições da quarentena. Outra questão era o “sonho chinês”, pontua Alefy. “Para mim, era realmente isso, de conseguir ir para a China e dar tudo certo. Meu primeiro ano não foi tão fácil, mas o segundo estava mais tranquilo, confortável, com um networking maior. É triste largar isso tudo assim, de uma hora para a outra. É a sensação de que não se tem controle da sua vida, das suas escolhas.”

    A mãe o aconselhou a colocar o nome na lista dos interessados em voltar ao Brasil. Argumentou que era melhor ter a opção de embarcar do que não ter escolha. Assim que comunicou seu interesse à embaixada, Rodrigues conta que “a sensação de ansiedade, que deveria passar, começou a voltar de maneira diferente”. Os requisitos para o retorno encorpavam a preocupação. Se tivesse qualquer sintoma gripal, como febre, não poderia embarcar no avião.

    “Essa semana do anúncio de volta foi uma das mais pesadas”, continua Rodrigues, “porque, primeiro, a gente ainda estava lá, em um perigo iminente. Segundo, porque havia o risco de continuar lá. Terceiro, tinha a possibilidade de chegar no Brasil e ser tratado como um doente”.

    O mineiro mudou alguns hábitos neste período. Consumia cada vez mais laranja, para reforçar os níveis de vitamina C. Tomava banho mais cedo, a fim de fugir dos períodos mais frios daqueles dias de inverno. Evitava mexer com água gelada. “Tudo quanto é coisa que vó falava que, por empirismo, poderia ajudar, a gente levava em consideração”, conta ele, bem-humorado. “A gente tinha medo de qualquer motivo que pudesse levar ao hospital, porque as chances de voltar infectado seriam enormes.”

    Em 7 de fevereiro, depois de uma viagem de ônibus em clima amistoso, mas ainda assim apreensivo, Rodrigues e outros jovens universitários pisaram em um aeroporto praticamente deserto. O painel eletrônico anunciava apenas os voos das duas aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB) que partiriam naquele dia. O mineiro lembra de ver apenas cerca de quatro funcionários – as recepcionistas e os responsáveis pela logística, a maioria trajando roupas e equipamentos de proteção máxima. “Por que eles estão andando com essa roupa e eu não?”, pensou Rodrigues, que naquele momento sentiu-se vulnerável.

    Depois de passarem pela checagem de febre, os brasileiros prosseguiram para um avião “completamente diferente da estrutura de um voo comercial”, observa o mineiro. Lonas dividiam a aeronave em três partes. Nas áreas fria e morna das aeronaves estavam os 14 médicos, oito tripulantes e dois jornalistas. Os 34 repatriados da China ficaram no compartimento quente, divididos entre as duas aeronaves. De quatro em quatro horas, higienizavam as mãos com álcool em gel e passavam pela medição de temperatura. Durante o voo de 26 horas, tiravam a máscara apenas no momento das refeições. Ocuparam o tempo livre com jogos de cartas, contos de histórias sobre países asiáticos, cantoria de músicas e brincadeiras com as crianças.

    Após escalas na China, Polônia, Espanha, Fortaleza e Brasília para reabastecer, repor o estoque de água e resolver questões burocráticas, o grupo pousou na Base Aérea da FAB em Anápolis (GO) em 9 de fevereiro. Ao chegar no alojamento, Rodrigues entrou na suíte em que ficaria por 14 dias e respirou fundo. “Ali já nos sentíamos bem acolhidos. Vimos que tinha uma superequipe cuidando da gente de hora em hora. Se fosse diagnosticado com alguma coisa, pelo menos estaria em boas mãos. Então, deu um alívio total. A ansiedade acabou quando cheguei lá.”

    Durante a quarentena, os brasileiros repatriados fizeram seis refeições por dia. Do café da manhã à ceia, desciam para os refeitórios, pegavam a comida e voltavam cada um para seu quarto, onde poderiam tirar a máscara e se alimentar. Para distrair, havia também exibições de filme, peças de teatro e shows, além de uma sala de jogos que servia de área de convivência.

    “Todo mundo estava um pouco receoso, principalmente pelos comentários ruins que via na internet, falando que não era para vir, que a gente ia trazer alguma coisa”, revela Rodrigues. “Então, esse medo de ser o responsável por estar trazendo isso, de forma consciente, é uma coisa que perseguia a gente. E vejo que até hoje tem gente que ainda se sente desconfortável.”

    Os repatriados e os membros da Operação Regresso passavam por duas consultas diárias. Um terceiro atendimento ocorria quando havia um exame específico para o coronavírus. Os resultados negativos para Covid-19, dos primeiros exames, foram anunciados no Twitter pelo governador do estado de Goiás, Ronaldo Caiado. Logo, souberam da notícia pelos repórteres. Já as notificações dos últimos dois exames ocorreram de maneira mais organizada.

    “Foi uma histeria coletiva de felicidade no grupo da quarentena no WeChat”, relembra Rodrigues, sobre a descoberta do resultado do primeiro exame. “Como estava todo mundo isolado nos quartos, alguém postou no grupo e foram umas 50 mensagens na hora, memes, demonstrando satisfação. O segundo foi de boa e no terceiro foi uma coisa emocionante, bonita, alguns choraram, todo mundo jogou as máscaras para cima.”

    Após a cerimônia que marcou o fim da quarentena, em 23 de fevereiro, Rodrigues pegou um voo com outros brasileiros e desembarcou em Lagoa Santa, a 39 km de Belo Horizonte, onde os pais o aguardavam. Voltava para sua cidade apreensivo, com medo de como seria recebido, mesmo ciente de que não contraíra o vírus. “Tem gente que mora em São Paulo e dificilmente seria reconhecido ou incomodado. Aqui, vou comprar um açaí e já me perguntam, de brincadeira, ‘Você não tá com corona, não, né?”, ele conta, rindo.

    O isolamento em Wuhan

    Enquanto o então surto do novo coronavírus na China ganhava repercussão mundial, Miguel Manacero já conversava com os pais sobre o que fazer. Concluíram que, provavelmente, o lugar mais seguro para ficar seria em Wuhan mesmo. Isso porque, caso o vírus se espalhasse pelo mundo, a cidade já estaria combatendo a epidemia desde o princípio.

    Quando o governo brasileiro anunciou a Operação Regresso, Manacero optou por falar com a mãe e com o pai separadamente, mas a decisão prevaleceu. Além da questão do controle da disseminação do vírus, o retorno ao Brasil prejudicaria alguns processos em andamento nos estudos do filho.

    Manacero não sentiu tanto impacto com o isolamento social. Já havia se enclausurado no dormitório durante as férias, focado nos estudos para uma prova de proficiência em mandarim. As aulas prosseguiram virtualmente e ele aproveita o pátio do dormitório para continuar seus treinos de kung fu e dança do leão. O choque de realidade se deu mesmo ao ver as ruas vazias da populosa metrópole.

    Na visão dele, ocorreu certo pânico apenas no início. Os chineses possuem o hábito de comer fora de casa, já que os valores são acessíveis, portanto não têm o costume de fazer compras para o mês. Isso mudou com a decretação de quarentena. “É como se todos decidissem fazer a compra do mês juntos”, observa o paulista. “Se fosse ao mercado de manhã, as prateleiras já estavam estocadas. Mas, caso chegasse mais para o final do dia, dava a impressão de que tinha acabado tudo, quando na verdade só precisavam repor o estoque.”

    Os estudantes se organizaram para evitar a aglomeração no supermercado dentro da universidade. Toda semana, um professor prepara uma lista com as opções de compra. Cada aluno preenche conforme o necessário e adiciona outro item, se necessário. O docente, então, encaminha o pedido para o mercado, que realiza a entrega em caixas. Os universitários pagam na hora pelo celular. “Sou um dos alunos que ajuda nesses processos. Toda vez que tem entrega, vou lá, vejo as listas, quem é cada aluno, ajudo a traduzir, explicar o que eles têm que fazer”, conta o paulista. Não raro os universitários recebem doações de alimentos durante o período de distanciamento social.

    “O que eu tinha mais medo era quanto ao abastecimento de suprimentos, de entrar em um estado em que os mercados não tivessem mais o que vender, ou de o preço subir”, revela Manacero. “Mas, depois da primeira semana, conseguia ver que isso provavelmente não aconteceria e ficava mais tranquilo.” Já o temor de ser infectado pelo vírus existia, mas não era tão grande, uma vez que ele ficava recluso em seu apartamento.

    “O mais difícil do distanciamento social é sentir vontade de algumas coisas que não poderá fazer”, observa Manacero. “Por exemplo, há umas semanas apareceu na minha cabeça a vontade de comer um bolo, de qualquer tipo. Quando se fica isolado, por mais boba que seja a vontade, terá dificuldade de tirá-la da cabeça. Se precisar que algo que não esteja dentro de casa, terá que esperar, e essa espera é o que mais me incomoda nesse momento.”

    O futuro na China

    Quando conversamos, em meados de março, Manacero relatou que já havia certa expectativa de que a situação se normalizaria nas próximas semanas. Enquanto isso, ele conclui o curso semestral de mandarim, ainda em aulas online, e aguarda a resposta de uma candidatura à bolsa de graduação em educação física, mesmo curso que muitos de seus colegas de dança do leão.  

    Já no Brasil, o Ministério da Saúde confirmou 4.579 pessoas diagnosticadas com Covid-19 e 159 mortes no balanço da última segunda-feira (30/03). A maioria dos casos se concentram na região Sudeste, principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

    Conforme a disseminação se intensifica no país e medidas de quarentena seguem em vigor, o paulista tem utilizado sua vivência no distanciamento social em Wuhan para orientar a família. Eles moram em Guapiaçu, município de 21 mil habitantes, cuja maior parte da população “faz tudo em São José do Rio Preto”, explica. “Meus pais moram na divisa e o único acesso ao mercado é pela rodovia. Se chegar ao ponto de fecharem, como em certos casos de quarentena, eles não conseguirão ir ao mercado. Então, já estocaram uma quantidade de comida e vão evitar ao máximo sair de casa.”

    Quinto estado com mais casos de Covid-19, Minas Gerais também segue com medidas de restrição. Até o último balanço da Secretaria Estadual de Saúde, no estado foram confirmadas 261 pessoas infectadas, 29.724 casos suspeitos, uma morte confirmada e outros 23 óbitos ainda seguem em análise para identificar se há relação com a doença.

    Em sua cidade no interior, Alefy Rodrigues continua em casa, no mesmo processo de isolamento social que realizou em Wuhan, no início da epidemia do novo coronavírus. Para continuar os estudos, precisou instalar internet na casa dos pais. Toda quinta-feira, às três da madrugada, assiste à distância às aulas do mestrado. Ele conta que foi difícil se acostumar ao novo horária – na China, a aula começa às 14h00.

    O mineiro sente falta de sair da sala de aula e ir para a biblioteca da universidade, esclarecer dúvidas com um amigo chinês ou pegar um livro no idioma estrangeiro. “Aqui, para achar online, não é fácil e não tem com quem discutir de maneira tão direta, ou informal. O aplicativo não proporciona nada comparado com pessoalmente.”

    Rodrigues pensa em retornar para Wuhan assim que permitido pelo governo chinês. A universidade concordou em liberar seus alunos para voltarem aos respectivos países natais e informou que avisaria quando pudessem retornar a Wuhan, em condições de segurança razoáveis.

    “Em breve a China será um dos lugares mais seguros para estar em relação ao coronavírus. Gosto de ver por essa ótica otimista”, aposta Rodrigues. “Apesar de estar muito bem no Brasil, com meus pais, família, amigos, deixar uma coisa pela metade nunca é bom. Fica a expectativa de voltar.”

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