Estas mulheres trans buscam asilo político nos EUA, mas estão retidas na fronteira

“Se eu voltar ao meu país, tenho medo de morrer”. Para essas mulheres hondurenhas, uma jornada angustiante termina em um limbo de meses na fronteira com os Estados Unidos.

Por Aurora Almendral, Danielle Villasana
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Publicado 11 de fev. de 2021, 07:00 BRT, Atualizado 25 de jun. de 2021, 10:59 BRT
Kataleya Nativi Baca, mulher trans hondurenha que busca asilo nos Estados Unidos, celebra acendendo uma vela ...

Kataleya Nativi Baca, mulher trans hondurenha que busca asilo nos Estados Unidos, celebra acendendo uma vela que solta faíscas em 25 de dezembro de 2020, na companhia de seu namorado, Angel M. Mejia Ortiz, e sua amiga Ondina Flores, também migrante hondurenha. Momentos alegres são raros para quem espera no limbo em Tijuana, México.

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TIJUANA, MÉXICO Kataleya Nativi Baca, 29 anos, consegue avistar os campos amarelados de San Ysidro, na Califórnia, do topo das colinas de Tijuana. As palmeiras balançando a menos de um quilômetro de sua cabana estão enraizadas no lugar que ela chama de el otro lado — o outro lado. Quando ela vai à praia, em Tijuana, as areias de São Diego ficam apenas a um braço de distância entre as aberturas estreitas das barras de aço de seis metros de altura do muro na fronteira entre os dois países. Mas para Kataleya, os Estados Unidos nunca pareceram tão distantes.

“Ir até o muro nos faz lembrar dos sacrifícios que fizemos e da impossibilidade de atravessar para o outro lado”, lamenta Kataleya.

Kataleya é uma mulher trans de San Pedro Sula, Honduras. Ela é uma das milhares de pessoas com pedido de asilo junto aos Estados Unidos, paralisadas em uma fila que parou de andar há 11 meses. Ela está atrás de outros 60 mil requerentes de asilo que, devido ao programa “Permaneça no México” do ex-presidente Trump, foram obrigados a esperar fora dos Estados Unidos até que seus pedidos fossem revisados. Agora, ela talvez tenha motivos para um novo sopro de esperança. Em 2 de fevereiro, o presidente Biden assinou uma medida provisória para reavaliar a política e, talvez, permitir que os requerentes de asilo possam esperar, em breve, nos Estados Unidos até que seus pedidos sejam processados.

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    Kataleya lava pratos na pia ao ar livre de seu apartamento em Tijuana.

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    Luis Energe Leiva Hernandez, um homem gay da Guatemala, é vizinho de Kataleya. Ele chegou no mesmo dia, em setembro de 2019, e desde então os dois estão esperando para apresentarem seus casos de asilo nos Estados Unidos. Na foto, Luis mostra o número correspondente ao seu lugar em uma fila que parou de andar há 11 meses.

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    Kataleya fugiu de casa depois de anos de intolerância e violência por parte de sua família, além de sofrer discriminação da comunidade em que vivia. Depois de sofrer ameaças à sua vida e ser agredida fisicamente por seu irmão, que fraturou sua clavícula, ela foi embora.

    “Ele disse que não pararia até que me visse morta”, relembra Kataleya sobre seu irmão, “até que ele atingisse seu objetivo de me ver em um caixão”.

    Alexa Smith, 20 anos, outra mulher transgênero hondurenha de San Pedro Sula, está agora no sul do México, avançando lentamente em direção à fronteira com os Estados Unidos. “Tenho muitos objetivos que desejo alcançar”, afirma Alexa. “No momento, não consigo alcançá-los.”

    De acordo com a SinViolencia LGBT, uma rede de 10 grupos de direitos da causa da América Latina e do Caribe, mais de 1,3 mil pessoas LGBTQIA+ foram assassinadas na região em 2014, 86% delas apenas na Colômbia, no México e em Honduras.

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      Kataleya e Angel sobem a colina até o posto de abastecimento, onde reabastecem o botijão de gás. Os dias são preenchidos com tarefas cotidianas e o desejo de entrar nos Estados Unidos.

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      Entre 2007 e 2017, cerca de 4,4 mil pessoas LGBTQIA+ buscaram asilo nos Estados Unidos. A maioria delas vem de El Salvador, Honduras e Guatemala, segundo um pedido da Lei de Liberdade de Informações obtido pela NBC News por meio do Serviço de Cidadania e Imigração dos Estados Unidos.

      Kataleya conta que queria mudar o nome e gênero em seu passaporte, conseguir um emprego, trabalhar duro e construir seu futuro. “Acima de tudo, quero um lugar para morar. Uma casinha, por menor que seja”, comenta ela, “onde poderei respirar tranquila e ter a paz que sempre quis”.

      Kataleya chegou a Tijuana em setembro de 2019, onde se deparou com uma série de políticas do governo Trump, implementadas por meio de diversas medidas provisórias, cujo objetivo era dificultar a imigração para os Estados Unidos.

      Milhares de pessoas na fronteira receberam um número e tiveram que esperar por lá, muitas vezes durante meses, antes de poderem entrar com seus pedidos de asilo. Aqueles com casos já abertos, foram obrigados a permanecer no México até sua audiência, em vez de serem autorizados a entrar nos Estados Unidos, como era a política em governos anteriores.

      “O ex-presidente Trump realmente criou diversas políticas que se reúnem para conformar quase zero por cento de chance de imigração para muitas pessoas”, explicou Eli Maurus, advogado do Transgender Law Center, uma organização de defesa com sede em Oakland, na Califórnia, com escritório em Tijuana. Maurus representa Kataleya em seu pedido de asilo.

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        Em Tapachula, na fronteira sul do México, Kataleya, com a cabeça apoiada nos ombros da mulher à sua frente, espera na fila do lado de fora do escritório da Comissão Mexicana de Ajuda a Refugiados em setembro de 2019.

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        Em 2020, o escritório, que gerencia questões de migrantes e refugiados, estava quase deserto.

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        As restrições resultantes da pandemia de covid-19 aumentaram os empecilhos, e as chances de Kataleya de entrar nos Estados Unidos diminuíram. Ela e todos os milhares de outros requerentes de asilo estão esperando sem data definida, muitos morando em abrigos lotados ou em acampamentos em situação lamentável por toda a fronteira. Durante sua espera no México, migrantes LGBTQIA+ muitas vezes enfrentam os mesmos perigos que os levou a deixar seus países de origem.

        “Esses obstáculos são colocados intencionalmente”, acrescenta Maurus.

        Em 2019, os Estados Unidos concederam asilo a 46,5 mil pessoas, o maior número em mais de 15 anos, de acordo com dados do Relatório anual do fluxo de pessoas do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, publicado em setembro de 2020. As políticas do governo Trump para impedir e reduzir os pedidos de asilo coincidiram com um aumento no número de pessoas que procuram asilo, em grande parte devido ao aumento da violência na América Central, esclareceu Sarah Pierce, analista política do Instituto de Políticas Migratórias, um grupo de trabalho (think tank). Embora mais imigrantes tenham sido aceitos, essa ainda é uma proporção menor em comparação com o número total de pessoas que procuram asilo.

        Segundo dados do Ministério da Justiça, analisados pelo Instituto de Políticas Migratórias, foram aprovados 43% dos casos de asilo em 2016. Em 2020, esse número caiu para 26%, a porcentagem mais baixa desde 1997.

        No dia de Natal, Kataleya recebeu um cartão de supermercado — auxílio monetário para comprar alimentos e produtos básicos — emitido pela Organização Internacional para as Migrações. Ela havia perdido seu último cartão no mês anterior e estava comendo pouco há semanas. Com o novo cartão, comprou ovos, salsichas, arroz e maionese, e um casaco quente para se proteger do frio invernal de Tijuana.

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        Resta-nos acompanhar, alega Pierce, de que forma as promessas do presidente eleito Biden de desfazer algumas políticas de imigração irão se concretizar. “Antes da eleição, Biden fez diversas promessas realmente contundentes a respeito dos pedidos de asilo”, comenta Pierce. “Agora, estamos observando uma linguagem muito mais moderada do governo, porque a situação na fronteira sul é bastante complicada.” Considerações logísticas e políticas complexas sobre o assunto significam que “tudo vai ser lento”, explica ela.

        “Dada a quantidade inescrupulosa de violência e perseguição que Kataleya sofreu em Honduras e no México, ela deveria ter permissão para entrar imediatamente nos Estados Unidos e iniciar seu pedido de asilo”, reitera Maurus. Ele agora está apresentando uma moção para que Kataleya entre nos Estados Unidos enquanto ela espera o andamento do seu caso, o que pode levar de quatro meses a anos.

        Espero que “o novo governo faça o que é certo do ponto de vista moral e legal e permita que ela e todas as pessoas LGBTQIA+ que aguardam no México atravessem a fronteira”, comenta Maurus.

        Vivendo no limbo

        Os 17 meses de Kataleya em Tijuana foram traumáticos. Em um abrigo, ela foi roubada. De outro, foi expulsa após desenvolver bronquite, além de ter sido espancada em um terceiro abrigo. Ela começou a namorar uma pessoa, com quem rompeu porque essa pessoa bebia além da conta. Então foi morar com outro companheiro. Em março de 2020, cerca de duas semanas antes da data marcada da reunião com as autoridades de imigração dos Estados Unidos, a pandemia de covid-19 foi deflagrada.

        “De um dia para o outro, tudo desmoronou”, relembra Kataleya.

        Kataleya assiste à televisão da cama. Ela diz que os longos meses de incerteza e trauma na fronteira a estão fazendo sofrer. “As pessoas me veem feliz, mas não sabem como me sinto por dentro. Estou triste”, lamenta ela. Ela sempre se pergunta o que fez para merecer o sofrimento que suportou.

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          Kataleya encontrou companheirismo em Angel, mas ele não quer ir para os Estados Unidos.

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          O gato Micho conforta Kataleya quando ela está sozinha. Ela disse que Micho veio dos Estados Unidos e que quer levá-lo de volta para lá quando receber asilo político.

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          Uma ordem emitida pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos suspendeu o processamento de novos pedidos de imigração e fechou a fronteira para a grande maioria dos requerentes de asilo. Em junho de 2020, a agência de imigração dos Estados Unidos examinou a situação de apenas 622 requerentes de asilo na fronteira sul. Em junho de 2019, esse número havia sido 10,8 mil.

          Para Kataleya, a esperança que havia impulsionado sua jornada iniciada em Honduras se esvaiu. Voltar para casa não era uma opção. “Se eu voltar ao meu país, tenho medo de morrer”, afirma Kataleya. Em Honduras, “sou uma mulher morta”.

          Ela ficou deprimida e passou dias lutando contra o tédio, esperando por mudanças nas políticas de imigração que pudessem transformar sua vida. Ela pediu a seu atual namorado, Angel M. Mejia Ortiz, 39 anos, também de Honduras, que arranjasse um emprego para ela como operária na construção civil. Mas ele se recusou, dizendo que poderia sustentá-la sozinho.

          No pequeno apartamento de um cômodo que compartilham, ela se reclina na cama e procura por programas de TV durante o dia. Já reorganizou os móveis, empurrou a cama contra uma parede, o armário contra a outra e uma semana depois os trocou de lugar novamente. Ela preencheu cada vão que havia nas paredes. Também vestiu seu gato Micho com um macacão laranja de bebê, mas o tirou quando o gato a encarou.

          Os Estados Unidos estão tentadoramente próximos de Tijuana. Uma noite, no fim de dezembro, Kataleya estava na praia, de onde conseguia ver o muro da fronteira, quando avistou duas figuras fugindo de Tijuana para San Diego, correndo e sumindo na escuridão. Em poucos instantes, elas haviam alcançado algo com que sonhou por tanto tempo.

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          Ela telefonou para sua mãe em Honduras. “Conheça sua avó”, Kataleya disse à Micho, segurando-o na frente da câmera do telefone. Ela contou à sua mãe como se sente sozinha, sobre a falta de dinheiro, a violência que suportou, a sensação de estar presa, a tortura constante da incerteza — e desatou a chorar.

          Uma noite, no fim de dezembro de 2020, Kataleya, Angel e alguns amigos pegaram um ônibus para a praia próxima ao muro da fronteira com os Estados Unidos. Sentaram-se sobre um pequeno monte, conversaram e olharam para o mar enquanto a brisa soprava seus cabelos. À distância, um pouco além do alcance dos holofotes que iluminavam a fronteira, duas figuras com capuzes pretos correram para o norte em direção ao muro. Em uma fração de segundos, ultrapassaram a fronteira — e então estavam em solo norte-americano. Elas correram pela costa, com as ondas apagando seus passos, aparentemente sem serem vistas pelos agentes da Patrulha da Fronteira dos Estados Unidos que estavam em um veículo branco a alguns poucos metros de distância.

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            Alexa Smith, 20 anos, de Honduras, passa uma tarde com amigos no rio em Tapachula, na fronteira com a Guatemala. Um deles contou como nadou pelo Rio Grande do México até McAllen, no Texas, onde foi detido e deportado de volta ao México.

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            Kataleya observou a dupla desaparecer na escuridão e conquistar em poucos segundos o que a iludiu por um ano e meio. “Presenciar isso me dá vontade de fazer a mesma coisa”, exclama Kataleya. “Com apenas três passos estaria lá.”

            Mas, por enquanto, ela diz que vai continuar esperando.

            Implacável

            A cerca de quatro mil quilômetros de Tijuana, em Tapachula, no México, perto da fronteira com a Guatemala, Alexa Smith está na sua terceira tentativa para sair de Honduras. Na primeira tentativa, em 2017, quando tinha 16 anos, foi agredida sexualmente enquanto pedia carona. Ela seguiu para a Cidade do México, onde foi detida pelas autoridades e deportada de volta para Honduras. Em sua segunda incursão, dois anos depois, ela começou a usar drogas na Cidade do México e voltou a Honduras para se recuperar.

            Alexa conheceu seu namorado, Norlan Alexander González Cruz, à esquerda, em Tapachula, no centro para migrantes da América Central e de regiões mais distantes, como a África e o Sul da Ásia. Norlan está viajando com ela para Tijuana.

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              Alexa (à direita) ri com Maria Fidelina Cañados Claros, também migrante de Honduras.

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              Então, em outubro passado, ela se juntou à uma caravana de imigração em Honduras, mas retornou quando chegaram à Guatemala, com medo de que as autoridades levassem a sério a ameaça de prender os migrantes. Cerca de uma semana depois, ela tentou novamente por conta própria e conseguiu ir até Tapachula, onde permaneceu por três meses.

              Sem dinheiro, Alexa arranjou empregos ocasionais. Ela penhorou seu telefone celular e se mudou para uma construção de blocos de concreto de um cômodo em um canteiro sujo na periferia da cidade com seu namorado, Norlan Alexander González Cruz, e três outros homens migrantes. Os cinco compartilhavam dois colchões de espuma tamanho casal que colocavam no chão para dormir. Como travesseiro, Alexa utilizou uma jaqueta enfiada em uma sacola de supermercado.

              Eles passaram esse tempo fumando cigarros e planejando como chegariam à fronteira dos Estados Unidos, assim que juntassem dinheiro suficiente.

              “No momento, não sabemos como iremos continuar”, lamenta Alexa. “Ainda estou tão longe.”

              De volta a Honduras, alguns amigos de Alexa, a maioria transgênero, estão sendo vítimas de violência e das dificuldades das quais ela está fugindo, em San Pedro Sula. Um de seus conhecidos está na prisão por causa de drogas, ela conta, e uma amiga desapareceu depois que passou a roubar para sobreviver durante a pandemia de covid-19. “As pessoas procuraram por ela nos necrotérios e na Guatemala, mas ninguém conseguiu encontrá-la até hoje”, acrescenta Alexa. “Ela provavelmente foi assassinada.”

              No centro de Tapachula, Alexa conversa com duas mulheres recém-chegadas de El Salvador. Todos os anos, milhares de centro-americanos que fogem da violência crescente — e no caso de membros da comunidade LGBTQIA+, da estigmatização e discriminação sistêmicas — dirigem-se aos Estados Unidos na esperança de conseguir asilo político.

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              Contudo mais um amigo foi esfaqueado, outra pessoa morreu de covid-19 e uma mulher entrou em conflito com uma gangue local em San Pedro Sula, que ameaça matá-la.

              Considerando os perigos existentes em Honduras, Alexa salienta, a decisão de ir embora “foi muito fácil — não precisei pensar duas vezes”.

              No fim de janeiro, Alexa e Norlan conseguiram avançar, a pé e de carona, cerca de 320 quilômetros ao norte até a cidade de Tuxtla Gutiérrez. “Eu tenho um lugar para dormir, mas não me sinto segura”, complementa Alexa. “Eles estão sequestrando pessoas, não há trabalho — só tenho dinheiro o suficiente para comer.” Mas ela quer “dar tudo de si” e chegar à Tijuana até o fim do mês.

              Enquanto isso, em Tijuana, Kataleya espera — ou melhor, deseja — que “2021 seja um ano abençoado para os migrantes e para as pessoas do outro lado do muro”.

              “Conseguirei realizar meu objetivo”, afirma ela. “Estou quase lá. Estou perto da fronteira, perto dos Estados Unidos, meu único empecilho é o muro. Apenas ele.”

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