Corrida do ouro ilegal desencadeia ataques a povos indígenas na Amazônia
Manifestante indígena participa de protestos de rua em junho em frente ao Palácio do Congresso Nacional em Brasília. Povos indígenas de todo o Brasil se reuniram para protestar contra um projeto de lei, denominado PL490, que legaliza o garimpo, a extração de madeira e outros projetos industriais que causam destruição ambiental em terras indígenas, sem sequer exigir o consentimento das comunidades locais.
À medida que as tensões entre garimpeiros ilegais e comunidades indígenas irrompem em violência desmedida na Amazônia brasileira, legisladores aliados ao presidente Jair Bolsonaro buscam medidas agressivas para reduzir a proteção dos territórios e cercear os direitos dos povos indígenas.
Desde meados de maio, garimpeiros lançaram uma série de ataques diretos contra as comunidades ianomâmi e mundurucu, nos estados de Roraima e Pará, respectivamente.
Líderes indígenas acreditam que suas comunidades enfrentam o pior momento desde a redemocratização do Brasil na década de 1980, após mais de 20 anos de ditadura militar. As ameaças de morte e intimidações são diárias em algumas regiões, e os líderes mundurucus afirmam que seu povo vive em “estado de guerra”.
Garimpeiros e seus cúmplices indígenas na Terra Indígena Mundurucu atearam fogo nas casas de diversos líderes indígenas no fim de maio, em aparente represália por uma operação policial em uma área de garimpo de ouro.
Recentemente, foram registrados ao menos oito ataques separados à Terra Indígena Ianomâmi, incluindo um tiroteio entre garimpeiros e moradores de aldeias, de acordo com a Hutukara Associação Yanomami. Em um incidente, duas crianças indígenas morreram afogadas no pânico que sucedeu quando os garimpeiros abriram fogo com armas automáticas posicionados em lanchas no rio Uraricoera. Em outro atentado, os garimpeiros bateram em uma canoa com oito crianças a bordo. Todas elas conseguiram chegar à margem em segurança e se esconderam na mata.
Em ambos os territórios, agentes da Polícia Federal que chegaram para atenuar as tensões também foram atacados pelos garimpeiros.
A vista aérea de um garimpo ilegal de mineração de ouro revela um caminho de destruição pela floresta equatorial próximo à Terra Indígena Menkragnoti, no estado do Pará. A prática faz uso de mercúrio altamente tóxico para separar o ouro dos solos arenosos da Amazônia, contaminando rios e riachos. Garimpeiros atacaram recentemente comunidades indígenas nos estados do Pará e Roraima.
Enquanto isso, em Brasília, os conservadores linha-dura na Câmara dos Deputados superaram um grande obstáculo no mês passado em sua busca para reformular a Constituição federal brasileira de 1988 a fim de permitir atividade comercial em terras indígenas.
O Projeto de Lei 490, conhecido como PL490, legaliza o garimpo, extração de madeira, agricultura industrial e outros projetos considerados “de interesse nacional” em terras indígenas, sem sequer o consentimento das comunidades locais. O polêmico projeto de lei foi aprovado no dia 23 de junho pela Comissão de Constituição e Justiça e agora segue para a Câmara dos Deputados, antes de passar para o Senado. Conservadores aliados do agronegócio — ruralistas — além de fundamentalistas evangélicos formam o núcleo do bloco de votação que detém a maioria na Câmara e no Senado.
A medida abrangente também permitiria contestações legais às demarcações dos territórios indígenas, ameaçando reduzir a extensão de algumas áreas e eliminar outras por completo. No Brasil, 441 terras indígenas foram demarcadas e reconhecidas oficialmente, mais 237 estão em estágios intermediários de reconhecimento. As maiores terras indígenas do Brasil encontram-se na floresta equatorial e compreendem um quarto da região amazônica do país.
Talvez o mais preocupante de tudo, segundo os críticos, seja que o projeto de lei possibilitaria ao governo rever e reduzir as fronteiras de vários territórios reservados para proteger grupos indígenas isolados, também conhecidos como “povos isolados”. Agentes de campo da Fundação Nacional do Índio, a Funai, confirmaram a existência de 28 grupos indígenas isolados no Brasil, e pode haver até mais 70. A polêmica legislação também permitiria um contato forçado com esses grupos altamente vulneráveis se houver qualquer interesse nacional preponderante, autorizando ainda que terceiros participem de equipes de contato organizadas.
“E quem seriam esses terceiros?”, indaga Fabrício Amorim, veterano de 10 anos da Funai que atualmente trabalha no Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato, grupo de defesa brasileiro. “Missionários, é claro. O PL490 abre caminho não só para ruralistas, mas também para evangélicos com uma visão extremista de divulgar a palavra de Cristo aos povos isolados.”
Desde 1987, a lei brasileira proíbe o contato forçado com povos isolados, exceto como último recurso para poupar um grupo de violência ou doença devastadora. A proibição condiz com os valores progressistas expressos na Constituição de respeitar a escolha dos povos indígenas de praticar seus modos de vida tradicionais em suas terras ancestrais sem interferências. Mas a nomeação de missionários a postos importantes no governo Bolsonaro, incluindo na Funai, despertou temores de uma pressão iminente para contatar e evangelizar os povos isolados.
A promulgação do projeto, no todo ou em parte, provavelmente dependerá do Supremo Tribunal Federal. Está sob julgamento no tribunal um caso sobre uma medida apoiada por ruralistas que obrigaria os povos a provar que ocupavam seu território na época da ratificação da Constituição federal do país, em 5 de outubro de 1988. Essa chamada “tese do marco temporal”, elaborada no Projeto de Lei 490, vem atraindo críticas ferrenhas de líderes e defensores de direitos indígenas.
Manifestantes indígenas dançam em frente ao Palácio do Congresso Nacional em Brasília em junho de 2021 para protestar contra a legislação que reverteria proteções às terras indígenas e direitos consagrados na Constituição federal brasileira. Líderes indígenas afirmam que seu povo enfrenta o pior momento desde a redemocratização do país na década de 1980, após duas décadas de ditadura militar.
“No caso de povos isolados, é impossível aplicar o marco temporal”, conta Amorim. “Não é possível provar onde habitavam quando a Constituição foi ratificada.” Muitos grupos estão quase sempre em movimento, destaca Amorim, seja seguindo as rotas tradicionais de migração ou buscando escapar das pressões de forasteiros.
Ainda que essa medida seja suspensa no Congresso ou na Justiça, Amorim teme que o presidente Bolsonaro permita que diversas medidas provisórias de proteção a terras indígenas percam a validade nos próximos meses. As medidas oferecem tranquilidade provisória contra a exploração comercial em sete terras indígenas que abrigam povos isolados. Quatro das medidas de proteção perderão a validade no fim deste ano ou no início do próximo. Uma quinta medida que protege os kawahivas, povos nômades isolados no estado de Mato Grosso, corre o risco iminente de perder sua validade legal caso a tese do marco temporal se transforme em lei. Agentes da Funai confirmaram a presença desses nômades ainda em 1996.
‘Incitação à violência’
Independentemente do desfecho final do PL 490, os críticos afirmam que o simples debate no Congresso a seu respeito já ajudou a legitimar posições extremistas que são populares nas fronteiras das terras indígenas, provocando mais atos de violência e tentativas de invadir seus territórios protegidos.
“É uma incitação à violência”, afirma Jeremy Campbell, antropólogo da Universidade George Mason, na Virgínia, especialista em posse de terras indígenas no Brasil. “Promove ainda mais invasões de terras. Oferece uma estrutura de base para desrespeitar os direitos indígenas.”
“Querem extinguir nossa memória, nossa existência”, declarou Alessandra Korap Munduruku à National Geographic por telefone de sua aldeia no rio Tapajós. Ela havia acabado de retornar à Terra Indígena Mundurucu, dominada por conflitos, após passar uma semana em Brasília, onde se juntou a cerca de 800 manifestantes indígenas de todo o país para protestar contra o Projeto de Lei 490. Os manifestantes foram recebidos pela tropa de choque com balas de borracha e gás lacrimogêneo ao se aproximarem do Palácio do Congresso Nacional. “Eles querem apagar nossa história e apagar os povos indígenas do Brasil para abrir caminho para a produção de exportações”, lamentou ela.
Citando o que acreditam ser a cumplicidade da Funai no anulamento de décadas de leis e instituições que protegem seus direitos e terras, manifestantes indígenas em Brasília emitiram uma carta aberta no dia 16 de junho pedindo a destituição de Marcelo Augusto Xavier da Silva, presidente da Funai nomeado por Bolsonaro. A carta considerava o mandato de Xavier o “pior” da história da Funai e declarava que o órgão fracassou em sua obrigação de proteger direitos indígenas em favor de “interesses escusos e privados do agronegócio, garimpo ilegal e tantas outras ameaças que colocam nossa existência em risco”.
Garimpo ilegal de ouro em área na Terra Indígena Mundurucu, ao longo do rio Tapajós, no estado do Pará. O garimpo está causando estragos ambientais e provocando conflitos entre os 14 mil mundurucus que vivem na região. Quase 30 toneladas de ouro são extraídas ilegalmente no estado a cada ano, segundo estimativas oficiais. Os críticos afirmam que o garimpo ilegal, um empreendimento criminoso violento e que requer um alto investimento, está aterrorizando as comunidades indígenas.
Além de chefiar a Funai, Xavier também é policial de carreira. Desde abril, ele determinou que colegas policiais investigassem diversas lideranças indígenas e até nove funcionários da Funai sob acusações como “manchar” a imagem do Brasil no exterior e tentar impedir a construção de uma linha de transmissão na Terra Indígena Waimori Atroari, em Roraima. Líderes indígenas alegam que Xavier mudou o objetivo do órgão de proteger as populações indígenas para persegui-las.
Em resposta por escrito a perguntas da National Geographic, a Funai negou qualquer irregularidade e alegou tentar superar “décadas de fracassos da política indigenista brasileira” ocasionados por “interesses escusos, falta de transparência e uma forte presença de organizações não governamentais”. Autodenominando-se “Nova Funai”, o órgão disse que seu objetivo é promover a autonomia dos povos indígenas.
“A Nova Funai tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica, pacificação de conflitos e promoção da autonomia dos indígenas, que devem ser, por excelência, os protagonistas da própria história”, diz a resposta do órgão.
A declaração também ofereceu apoio a um “amplo debate” no Congresso sobre disposições que alterariam a Constituição e abririam territórios indígenas ao garimpo, a despeito dos métodos empregados na extração de ouro na Amazônia que devastam florestas e poluem cursos d’água com mercúrio altamente tóxico.
Atendendo a uma determinação do Supremo Tribunal Federal para restaurar a segurança na região, policiais federais e militares do exército, bem como agentes da Funai e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais, o Ibama, começaram a chegar no dia 28 de junho à Terra Indígena Ianomâmi, onde vivem cerca de 25 mil pessoas. Mas observadores afirmam que será necessário um esforço conjunto com centenas, senão milhares de funcionários para expulsar os garimpeiros, estimados entre 10 mil e 20 mil, que operam ilegalmente na região desde 2019. Ninguém está certo de que o governo esteja de fato disposto a tal empreitada.
“Uma combinação de cobiça e sensação de impunidade suscita a nova corrida do ouro nesse território”, afirma Bruce Albert, antropólogo francês que atua com os ianomâmis desde 1975 e dirige pesquisas no Institu de Recherche pour le Développement, em Paris. Longe de ser uma atividade artesanal, segundo Albert, as operações atuais de garimpo são “empreendimentos criminosos mecanizados e capitalizados, capazes de mobilizar grupos armados em um esforço para romper a resistência do povo ianomâmi”.