Crise humanitária no Haiti traz escassez de alimento, abrigo e saúde

Assassinato do presidente, terremoto letal, chuvas torrenciais e pandemia fazem moradores perderem a esperança no Haiti.

Por Jacqueline Charles
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Publicado 24 de ago. de 2021, 16:30 BRT
Morador de Corail, no Haiti, dorme nas ruas em abrigo improvisado. “A maioria dos moradores dessa ...

Morador de Corail, no Haiti, dorme nas ruas em abrigo improvisado. “A maioria dos moradores dessa cidade atualmente estão sem-teto”, declarou Alex Maxcia, o magistrado (prefeito) de Corail. Aqueles que não fugiram da cidade de 23 mil habitantes, a uma distância de duas horas de carro de Jeremias, agora dormem nas ruas. É impossível continuar morando em suas casas destruídas e cheias de rachaduras.

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JEREMIAS, HAITI Mais de uma semana depois que um terremoto letal assolou essa já frágil nação caribenha, seguido por fortes chuvas da tempestade tropical Grace que agravou o tormento, o Haiti se prepara para tempos ainda mais difíceis que estão por vir.

Casas desabaram, estradas partiram ao meio e igrejas desmoronaram. A tempestade chegou apenas dois dias depois que um forte terremoto matou ao menos 2,1 mil pessoas, deixou mais de 12 mil feridos e danificou ou destruiu cerca de 61 mil casas.

Embora Grace tenha poupado o país de um impacto direto, as chuvas incessantes da tempestade provocaram enchentes que trouxeram ainda mais problemas às vítimas do terremoto em meio a uma lenta distribuição de suprimentos.

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    Criança transportada de helicóptero da cidade haitiana de Jeremias pela Guarda Costeira dos Estados Unidos é levada por equipe de resgate a hospital na capital Porto Príncipe.

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    Em um país com mais disposição do que capacidade para fornecer saúde e assistência, ao menos 44 unidades de saúde, incluindo hospitais que desabaram, foram afetadas pelos tremores contínuos. A equipe médica trata pacientes no chão, em pátios abertos e em dormitórios médicos improvisados como salas de cirurgia.

    Antes dos desastres, muitas comunidades rurais tinham seus próprios profissionais, clínicas e suprimentos locais de saúde. Com o esgotamento dos recursos locais, muitos dos doentes ou feridos procuraram atendimento em Jeremias, capital de Grande Enseada, um dos 10 departamentos do Haiti.

    “Esses pacientes não deveriam precisar deixar suas casas, ficando expostos a possíveis deslizamentos de terra para cuidar de ferimentos que poderiam ter sido facilmente tratados por um agente comunitário de saúde”, afirma Nadesha Mijoba, diretora nacional da Haitian Health Foundation, organização sem fins lucrativos dos Estados Unidos.

    Grande Enseada estava apenas começando a se recuperar do furacão Matthew de categoria 4 ocorrido em 2016, que causou estragos generalizados. O terremoto de magnitude 7.2 de 14 de agosto de 2021 deixou ao menos oito mil casas na região em estado precário ou em ruínas, de acordo com números preliminares.

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        Na cidade de Jeremias, antigas construções coloniais desabaram durante o último terremoto de magnitude 7.2 no Haiti. Mas a devastação foi pior nas áreas rurais.

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        Poucos dias após o forte terremoto que atingiu o Haiti na semana passada, moradores da península meridional do Haiti estavam ocupados limpando os escombros, tijolos e pedras que obstruíam as ruas. Na imagem, um homem limpa os destroços da parede desabada de um hotel de dois andares.

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        Devastação generalizada

        A devastação é evidente. Nas cidades de Jeremias e Les Cayes, localizadas na península meridional do Haiti, pilhas de destroços marcam o local onde antes havia construções. Catedrais ainda estão em pé, mas seus telhados foram arrancados. Rachaduras recobrem as paredes das estruturas danificadas. E os feridos continuam a entrar, caminhando com dificuldade, em busca de atendimento.

        No campo, os estragos são ainda piores. As paredes desmoronaram, os telhados estão estilhaçados no chão, algumas estradas estão quase inacessíveis. O que restou dos abalos sísmicos, Grace terminou de destruir com seu temporal. Juntos, terremoto e tempestade inundaram montanhas e abriram rachaduras nas estradas.

        Os sucessivos desastres naturais deixaram uma sensação de perda e desamparo em muitos nessa nação tão assolada por crises.

        “Sempre que ouço falar de terremoto ou tempestade, sinto que algo em mim está prestes a explodir”, desabafa Marie Roseline Macenat, de 56 anos, mãe de cinco filhos. “Pessoas caem em prantos de desespero. Sentimos que não vamos mais aguentar.”

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          Sol nasce ao longo da costa norte da península meridional do Haiti, conhecida por sua beleza rural. Pode ser tão bela quanto perigosa.

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          A parte ocidental da península meridional do Haiti é montanhosa e é ocupada principalmente por plantações de banana e abacaxi. Motocicletas são o principal meio de locomoção. As estradas são eventualmente destruídas ou bloqueadas por rochas de penhascos instáveis.

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          A devastação foi agravada pela instabilidade política intensificada pelo chocante assassinato do presidente Jovenel Moïse, no mês passado, baleado várias vezes dentro de sua casa nas colinas acima da capital Porto Príncipe.

          E a crise atual é ainda mais complexa devido à falta de segurança em todo o país. Preocupações com a violência de gangues e o acesso incerto à estrada principal que liga Porto Príncipe às regiões devastadas pelo terremoto criaram desafios logísticos ao governo e às equipes internacionais de socorro, que conseguiram começar a distribuição de suprimentos apenas cinco dias após os desastres.

          Tarde demais para vítimas como Mariette Altime, mãe de quatro filhos que enfrentou os três últimos grandes desastres no Haiti: o terremoto de 2010 que atingiu Porto Príncipe, o furacão Matthew em 2016 e o desastre atual. Altime foi forçada a morar nas ruas após o terremoto de 7.0 de magnitude que quase destruiu por completo a capital no dia 12 de janeiro de 2010, matando mais de 300 mil pessoas e deixando 1,5 milhão sem teto devido principalmente a construções precárias que desabaram com o potente abalo.

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            Lener Joseph, com ossos quebrados, recebe atendimento médico no Hospital Saint Antoine em Jeremias. Sua irmã, Evie Joseph, aguarda ao seu lado.

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            Após o terremoto de 2010, Altime passou meses dormindo em um colchão sujo, ao relento, antes de decidir que já estava farta de Porto Príncipe. Ela voltou para sua cidade natal Marceline, que era então um distante entreposto rural nos arredores de Les Cayes — e agora é conhecida por ser a cidade portuária duramente atingida pelo terremoto em 14 de agosto de 2021.

            Por certo tempo, após o retorno de Altime, a vida pareceu voltar ao normal, apesar das dificuldades para sobreviver. Mas então passou o furacão Matthew em 2016, quebrando árvores como palitos de dente e devastando grande parte das terras agrícolas da região antes de deixar a população mais uma vez orando por clemência e aprofundar a pobreza.

            Depois veio o terrível tremor na manhã de 14 de agosto de 2021.

            “Sofri muito com essas catástrofes”, conta Altime. Ela está alojada em um campo de futebol onde ela e outras quatro famílias passaram a noite sob a chuva torrencial da tempestade Grace depois que o vento levou embora sua lona improvisada. “Sinto como se Deus estivesse me segurando.”

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              Em Corail, famílias se amontoam em colchões e lençóis trazidos às pressas dos destroços de suas casas. A maioria das casas em Corail, Haiti, atualmente está inabitável. Se não desabaram por completo, estão inseguras, com rachaduras e muros desmoronados, deixando uma cidade inteira dormindo nas ruas.

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              Reconstrução improvável

              No sul e no oeste do Haiti, onde os solavancos do terremoto foram mais intensos, as casas foram reduzidas a escombros e os prédios do governo estão soterrados sob os destroços. A vila de pescadores de Corail, a leste de Jeremias, está em ruínas. Os moradores se refugiaram na praça principal, criando abrigos improvisados com pedaços de lona e barracas velhas. Do outro lado da praça, a Igreja Católica local se transformou em uma pilha de pedras, ao passo que a escola está quase irreconhecível, a não ser pelas carteiras de madeira penduradas no segundo andar. Neste momento, moradores de áreas ainda mais rurais têm recorrido a beber água salobra e usam lonas sujas há mais de seis anos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional como abrigo.

              Os mais afetados não conseguem sequer imaginar a reconstrução, ainda que desejassem.

              O Haiti já enfrentava uma infinidade de desafios e inúmeras crises antes desse último desastre. Passada mais de uma década desde o terremoto de 2010, as iniciativas de reconstrução ainda estão em andamento e milhares continuam a viver em acampamentos improvisados.

              Antes de seu assassinato na madrugada de 7 de julho, Moïse, até então o presidente do Haiti, havia sido acusado de tentar se tornar o próximo homem-forte da América Latina e do Caribe depois de usar seus poderes de decreto para emitir dezenas de leis polêmicas e ameaçar fazer um referendo para mudar a constituição que, segundo especialistas, era ilegal.

              Moïse — uma das 11 autoridades eleitas após a crise eleitoral no Haiti — enfrentou enormes contestações a seu governo. A turbulência política se aprofundou em 2019, quando o país sofreu um de seus piores e mais amplos colapsos econômicos, conhecido como peyi lok — as medidas de restrição da pandemia no país. Escolas e empresas fecharam e os empregos foram paralisados.

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                Pequenos barcos transportando feridos começam a chegar na primeira calmaria no tempo após a passagem da tempestade tropical Grace.

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                Mas nada disso foi a causa da pobreza extrema, nem tampouco foi o motivo pelo qual o governo desprovido de recursos mal consegue fornecer até mesmo os cuidados mais básicos às vítimas do novo terremoto. Faltam ataduras, antibióticos e soros intravenosos; um voluntário no aeroporto de Les Cayes foi ouvido queixando-se de que os pacientes a serem transportados por helicóptero para fora da área apareciam sem ter recebido nenhum tratamento médico. Enquanto expressava suas frustrações, ele preparava uma tala feita de pedaços cortados de papelão para um homem que atendia no chão.

                De acordo com três relatórios diferentes, quase US$ 2 bilhões da ajuda financeira que deveria ter sido destinada a melhorar a vida dos haitianos — ajuda concedida ao Haiti pela Venezuela, na maior parte, após o terremoto de 2010 — foi desperdiçada ou desviada por ex-funcionários do governo e por pessoas relacionadas ao governo.

                Embora a ajuda não fosse necessariamente destinada às comunidades atingidas por esse último terremoto, se o dinheiro houvesse sido empregado corretamente e assim fosse construída alguma infraestrutura, acredita-se que o país estaria numa posição melhor para responder ao desastre mais recente. O caos e a incerteza política em que o Haiti se encontra sem dúvida agravaram as crises humanitária e de desnutrição infantil, que só tenderam a deteriorar depois do início dos confrontos entre gangues armadas na entrada sul de Porto Príncipe, forçando a migração interna de mais de 16 mil pessoas.

                Caminhão-pipa na estrada principal entre Jeremias e Corail abastece de água os moradores desesperados por se hidratar. O rio Lacombe, nas proximidades, normalmente é a principal fonte de abastecimento de água na região.

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                Mulher afasta galões de vizinhos também desesperados por sua quota de água. Após o terremoto, o rio Lacombe, como muitos no oeste da península, ficou marrom e, os moradores, que já passaram por surtos de cólera, acreditam que esteja poluído.

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                  O desespero por água potável aumenta a cada dia. Embora caminhões-pipa tenham visitado os vilarejos rurais, não foram suficientes para abastecer os moradores que antes contavam com um rio inteiro para suas necessidades hídricas.

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                  Grave crise humanitária

                  A vacinação contra a covid-19 no Haiti teve início no mês passado. A pandemia, somada às facções políticas em conflito, sequestros e violência de gangues, deixou o Haiti mais vulnerável do que nunca.

                  Locais como Marceline, no sudoeste, deveriam ser um refúgio seguro. Contudo, com o controle da estrada de saída de Porto Príncipe pelas gangues, a ajuda demora a chegar e os haitianos mais uma vez precisam escolher entre os riscos de ficar em casas destruídas durante as réplicas dos tremores e dormir ao ar livre. Não há dúvida de que os haitianos afundarão cada vez mais na miséria.

                  O primeiro-ministro Ariel Henry, especialista em saúde pública e neurocirurgião, disse à população de 11,5 milhões para se preparar para tempos difíceis.

                  O Haiti enfrenta uma enorme crise humanitária, declarou Henry, acrescentando que, embora o terremoto tenha devastado grande parte das regiões do sul, mostrou como todo o país é frágil.

                  “Alguns de nossos cidadãos ainda estão sob os escombros”, lamentou ele. “Há equipes de estrangeiros e haitianos tentando resgatá-los.”

                  Embora as equipes tenham conseguido desenterrar algumas pessoas com pás e as próprias mãos, os hospitais estão sobrecarregados com a quantidade de feridos que não param de chegar.

                  “Temos que nos unir para reconstruir o Haiti”, Henry pediu à população. “Este país está física e mentalmente destruído.”

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                    A família Joseph começa a caminhada de um dia do vilarejo de Duquillon até Beaumont. Eles fizeram as malas de seus dois filhos e os pertences restantes, abandonando sua casa, destruída pelo terremoto.

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                    Altime concorda com essa avaliação do cenário.

                    Assim como muitos haitianos, ela aprendeu a não esperar muito do governo. Não porque falte recursos ao governo, mas porque, até mesmo quando o governo dispunha deles, nunca lhe forneceu ajuda. Durante os diversos desastres, ela disse que se sentiu ignorada.

                    Agora ela pede apenas o mínimo de que necessita.

                    “Desejo apenas encontrar um lugar para dormir, uma lona e algo para comer”, afirma.

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