Skatistas bolivianas vestem trajes indígenas contra a discriminação

Elas andam de skate com polleras e chapéus para passar uma mensagem de inclusão e empoderamento.

Por Paula Ramón
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Publicado 8 de fev. de 2022, 15:08 BRT

Atletas do grupo ImillaSkate praticam o esporte em uma estrada em declive nos arredores de Cochabamba, na Bolívia. A estrada é ladeada por árvores e campos agrícolas onde muitas pessoas da comunidade indígena trabalham.

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As saias coloridas, conhecidas como polleras, são um símbolo de identidade no interior boliviano. Mas essas saias volumosas e tradicionais, usadas pelas mulheres indígenas aimarás e quíchuas, também são objeto de discriminação, consideradas por alguns como algo estranho à identidade moderna. Agora, um grupo de mulheres atletas voltou a usá-las na cidade – vestindo as roupas durante competições de skate – a fim de celebrar a herança cultural das cholitas.

“As polleras são muito valiosas para mim”, conta Deysi Tacuri López, de 27 anos, integrante do ImillaSkate, grupo fundado em 2018 em Cochabamba, a terceira maior cidade da Bolívia. “Eu uso com orgulho.”

Mulheres do ImillaSkate treinam os movimentos em um parque afastado do centro da cidade.

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    As mulheres aimarás, Joselin Brenda Mamani Tinta e sua mãe, Lucia Rosmeri Tinta Quispe, vestem trajes tradicionais de pollera. Para Brenda, que começou a andar de skate aos 6 anos, a saia volumosa passou a representar um símbolo de orgulho.

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    María Belén Fajardo Fernández é estudante de fisioterapia e a mais jovem do grupo. Ela começou a praticar skate há quatro anos porque ficou impressionada com as habilidades de equilíbrio e o nível de dificuldade das manobras.

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    Tacuri vê nas polleras não apenas uma expressão cultural, mas também uma forma de empoderamento. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Bolívia possui a maior proporção de indígenas da região. Mais da metade da população boliviana é de ascendência indígena.

    Tacuri e outras mulheres do grupo ImillaSkate também são descendentes indígenas. Algumas de suas parentes ainda usam polleras.      

    “São roupas da minha mãe e das minhas tias, e eu as vejo como mulheres fortes. Aqui, na Bolívia, muitas mulheres que usam polleras são chefes de família”, relatou ela em entrevista por telefone. “Para mim, mujeres de polleras podem fazer qualquer coisa.”

    Tacuri e suas companheiras de equipe passam longas horas praticando movimentos no parque Ollantay, um dos dois lugares da cidade com rampas e outras estruturas projetadas para o esporte.

    As saias no comprimento dos joelhos ondulam e giram a cada volta, salto e eventuais quedas. Remar e realizar manobras complexas usando as camadas pesadas das polleras não é fácil, admite Tacuri. Mas é algo único.

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        Deysi Tacuri López, 27 anos, comenta que pretende ajudar a popularizar a cultura do skate na Bolívia e criar mais oportunidades para a próxima geração conhecer suas raízes. Ela vê a pollera como uma forma de expressão autêntica e única.

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        As mulheres do ImillaSkate começaram a usar roupas tradicionais indígenas com a ideia de mesclar as raízes tradicionais com o esporte urbano. A palavra imilla significa “mulher jovem” em aimará e quíchua, as duas línguas nativas mais faladas na Bolívia.

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        Huara Medina Montaño cuida de uma ferida no joelho após cair de skate. Ela relata que se inspirou para ser forte e seguir em frente porque a roupa de cholita a lembra de sua avó. Montaño andava de skate quando criança, mas passou a levar o esporte mais a sério em 2019.

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        Huara Medina Montaño posa com seu skate e tranças. O penteado faz parte da identidade cultural indígena da jovem.

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        ImillaSkate: skate feminista

        O grupo ImillaSkate foi fundado por Daniela Santiváñez, de 26 anos, e duas amigas. Seu irmão a ensinou a andar de skate enquanto ela ainda era criança, embora fosse “raro ver garotas andando de skate”.

        O esporte é praticado na Bolívia há cerca de duas décadas. Mas não havia exemplos femininos a seguir em Cochabamba. Cansada de ouvir as reclamações de sua mãe sobre os hematomas causados pelas quedas – Santiváñez parou de praticar na adolescência. Ela voltou a andar de skate após se formar em design gráfico na faculdade. Foi então que Dani, como as amigas a chamam, descobriu que não era a única mulher apaixonada pelo esporte.

        “Um dia eu estava conversando com as garotas sobre como os meninos se reúnem para andar de skate – e por que as meninas não faziam isso?” recorda Santiváñez, que agora estuda engenharia comercial na Universidade Privada Domingo Savio. Após concluir sua segunda graduação, ela espera lançar uma produtora audiovisual.

        O nome do grupo provém das aspirações das jovens: a palavra imilla significa “mulher jovem” em aimará e quíchua, as duas línguas nativas mais faladas na Bolívia. As fundadoras começaram a praticar juntas e isso as levou a competições, além de também atrair mais integrantes.

        Skatistas bolivianas pelo mundo

        Nos últimos três anos, o ImillaSkate cresceu para nove skatistas. Ser um membro ativo significa ter tempo para praticar todas as semanas e poder participar de competições. Também significa compartilhar os mesmos princípios de aceitação de diversos grupos e tradições. Embora o coletivo esteja localizado em Cochabamba, nas redes sociais o grupo angariou um grande público para além da Bolívia, com mais de cinco mil seguidores no Instagram. Elas também mantêm uma página no Facebook, com mais de sete mil seguidores, e um canal no YouTube, onde alguns vídeos reúnem milhares de visualizações.

        Santiváñez esclarece que elas usam as saias apenas em apresentações, não necessariamente como roupas do dia a dia. “Fazemos isso em forma de protesto, como um grito de inclusão”, reitera ela.

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          Ellinor Buitrago Méndez, vestida com uma pollera, flutua na água cercada de flores. As origens das polleras remontam à conquista espanhola no século 16.

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          Durante uma visita a um mercado em Cochabamba, as integrantes do ImillaSkate ensinam outras pessoas sobre o esporte. “O skate influenciou muito minha vida, me encheu de coragem quando mais precisei. E é algo que gostaria de poder compartilhar com outras pessoas”, conta Huara Medina Montaño.

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          O Mercado La Cancha é um dos mais populares da região, onde está à venda uma grande variedade de produtos, incluindo alimentos básicos, livros, roupas, artesanato, antiguidades e eletrônicos.

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          Inclusão e empoderamento

          Para essas atletas, o skate é o veículo ideal para impulsionar uma mudança de comportamento. “O skate é inclusivo, une todos os tipos de pessoas”, observa Santiváñez. “É uma comunidade e aproveitamos isso para tornar o mundo um lugar mais gentil.”

          Tacari afirma que elas se desafiaram, em primeiro lugar, a abraçar suas próprias raízes. “Decidimos conhecer nossa cultura e nossa identidade. Decidimos reavaliar nossas vestimentas e incentivar as novas gerações”, explica. Tacuri tirou uma licença do trabalho com marcenaria para se dedicar, em tempo integral, aos treinos para a competição nacional de skate, marcada para a última semana de novembro em Tarija, no sul da Bolívia.

          O que são polleras

          A origem das polleras remonta à conquista espanhola no século 16. Originalmente impostas pelos governantes coloniais para fácil identificação da população nativa e também para adequar o traje ao que estava sendo utilizado na Espanha pelos mais pobres, as saias acabaram sendo adaptadas como parte do traje tradicional andino, mais comumente associado às cholas – mulheres indígenas das regiões serranas. Assim como essas ancestrais deram às saias sua própria identidade, misturando-as com blusas estampadas, acessórios locais e chapéus, as imillas do skate estão fazendo suas próprias modificações na vestimenta – e tentando acabar com um estigma.

          “A pollera está associada ao campo, a pessoas ignorantes e sem recursos. Queremos que as pessoas entendam que não há nada de errado em usar uma pollera – elas são parte de nossas raízes”, salienta Santiváñez. “Precisamos nos orgulhar delas.”

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            Huara Medina Montaño ensina a mãe de outra skatista a manter o equilíbrio. O esporte existe há duas décadas na Bolívia, mas as fundadoras do ImillaSkate não tinham muitos exemplos a seguir, até que criaram seu próprio grupo.

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            Belu, integrante do ImillaSkate, experimenta um chapéu tradicional usado por mulheres indígenas.

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            “Cada ornamento tem seu significado”, observa Huara Medina Montaño sobre os trajes de pollera.

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            Luisa Zurita usa a pollera da avó enquanto arruma o cabelo.

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            A ideia de usar as saias como forma de expressão identitária  exigiu que as próprias skatistas se familiarizassem com a roupa, pois elas mesmas já tinham perdido o contato com a tradição. O grupo nem sabia onde conseguir as saias elaboradas, então pediram ajuda às avós.

            Nem todas as integrantes concordaram com a ideia de imediato, preocupadas em serem estigmatizadas. Mesmo sendo descendente de uma mujer de pollera, Luisa Zurita lutou para que sua família entendesse a premissa por trás da vestimenta. Somente depois de ela ser convidada a participar de um programa de televisão local para uma apresentação de skate, ela recebeu a benção – e a pollera preferida – de sua avó Zurita.

            “Na minha casa, apenas minha bisavó era mujer de pollera, então era mais difícil conseguir uma para usar”, diz ela. “Mas várias meninas pegaram polleras de suas mães, tias e avós, e emprestaram umas às outras. No começo, ficamos um pouco chateadas porque as saias eram velhas e caras. Tinham muitas camadas e um valor cultural, então ficamos com receio de que elas rasgassem ou ficassem manchadas.”

            As skatistas, então, saíram em busca de lojas fora da cidade que vendiam versões mais baratas, assim como os chapéus e as fitas para colocar nos cabelos trançados. Quando foram ao Mercado del Cerrito, o maior mercado ao ar livre de roupas usadas de Cochabamba, “todos ficaram surpresos que estávamos buscando esse tipo de roupa. Somos jovens e da cidade. As pessoas não entendiam por que queríamos nos vestir assim”, recorda Santiváñez. 

            “Mas tentamos explicar, dizendo que a peça nos ajudava a entender nossas mães, tias e avós”, acrescenta Tacuri.

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              Miriam Estefanny Morales observa Cochabamba enquanto segura seu skate. Ela diz que a vista a lembra de como ela se orgulha em ser k’ochala (termo usado para se referir à identidade étnica e cultural dos habitantes de Cochabamba). 

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              Para ela, o estigma associado às polleras mudou um pouco com a eleição do ex-presidente Evo Morales, em 2006. No governo Morales, o primeiro presidente indígena da Bolívia, foi aprovada uma nova constituição que reconhecia formalmente 36 línguas indígenas e também concedia direitos mais amplos aos povos indígenas, como a propriedade comunal da terra. Morales renunciou em 2019 em meio a protestos e acusações de tentativas de minar a democracia para estender seu governo de 14 anos. 

              Mesmo com esse progresso, Tacuri sentiu que poderia promover mais reconhecimento cultural. “As polleras são usadas em eventos e exposições culturais. As mulheres estão se tornando mais empoderadas, mas é um trabalho em andamento”, enfatiza ela.     

              Por enquanto, as imillas veem uma mudança em sua cidade. “Quando eu era pequena, não passava pela minha cabeça que meninas pudessem andar de skate”, recorda Tacuri. “Na verdade, foi por isso que parei de praticar por alguns anos. Agora, com o ImillaSkate, criamos uma rede. Não é mais tão raro ver uma garota andando de skate.”

              Várias integrantes do grupo chegaram a embarcar em uma viagem ao interior da Bolívia para gravar um curta-metragem. No documentário de seis minutos, lançado nas redes sociais em setembro, elas são vistas praticando o esporte com suas saias coloridas em zonas industriais, áreas rurais, parques e outros locais.

              “Nosso objetivo é promover e incentivar a prática do skate, expandir o esporte e ao mesmo tempo abrir novos espaços para a prática”, afirma Tacuri. “Mas também queremos enviar uma mensagem: não vamos nos esquecer de nossas raízes.”

              Luisa Dörr é uma fotógrafa brasileira cujo trabalho foca, principalmente, na imagem humana feminina. Veja mais dela em seu site e no Instagram.

              Paula Ramón é uma jornalista venezuelana baseada em Los Angeles. Siga seu trabalho @paulacramon.

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