Além da droga: conheça o valor histórico e cultural da região da Cracolândia, em São Paulo
O bairro no centro paulistano já abrigou barões do café em luxuosos palacetes. Hoje, após décadas de negligência, projetos culturais grandiosos e outras iniciativas recuperam a autoestima da área e de seus habitantes.
Quando se fala em Cracolândia, as primeiras imagens que vêm à cabeça são de degradação urbana e uso de drogas. Mas ali existem diversas camadas históricas importantes na formação do Brasil, além de instituições e movimentos culturais que lutam para preservar e reinventar um bairro ofuscado por uma grave crise urbanística e de saúde.
A história da região começa no final do século 19, quando o suíço Frederico Glete e o alemão Victor Nothman lançam o primeiro bairro planejado da cidade de São Paulo, o Campos Elíseos. Batizado em homenagem à famosa avenida parisiense Champs Elisee, o bairro passou a abrigar a aristocracia do café e logo se tornou a região mais nobre da cidade, berço da política cafeeira que governou o Brasil por décadas.
Ao longo de quase 50 anos de glória, a região recebeu edificações de renomados arquitetos da época, como a estação de ferro Sorocabana – atualmente Júlio Prestes – e o santuário Sagrado Coração de Jesus, cujos ornamentos e relíquias sagradas foram trazidos diretamente da Europa.
A região começa a se degradar com a crise econômica mundial de 1929, que afetou de forma dramática a exportação do café brasileiro. Falidas, muitas famílias foram obrigadas a deixar a região e seus luxuosos casarões começaram a ser demolidos para dar lugar a galpões. O bairro se transformou em uma região semindustrial e de baldeação para o centro da cidade através das vias férreas e do primeiro terminal rodoviário da cidade. Nos anos 1970, após décadas de declínio urbanístico, somadas a diversas políticas urbanas malsucedidas, a região passa a ser conhecida como Boca do Lixo – uma referência ao lixão surgido entre as linhas dos trens e aos altos índices de prostituição e violência. Com a epidemia do crack no ínicio dos anos 1990, usuários e traficantes tomaram conta de algumas de suas ruas de forma ostensiva – surgia a cracolândia.
Cinema e retomada cultural
Ainda nos anos 1930, o baixo custo dos casarões transformados em galpões e a proximidade com linhas férreas, levou a incipiente indústria cinematográfica do Brasil a se instalar na região. Mas só nos anos 1960, com políticas de cotas de exibição de filmes nacionais em salas de cinema, o Campos Elísios se transforma em um verdadeiro polo produtor cinematográfico. A Boca do Lixo, que produziu cineastas importantes – Carlos Reichenbach, José Mojica Marins e Rogério Sganzerla, por exemplo – tornou-se mais conhecida pelos filmes de baixo custo e grande apelo, muitos de conteúdo altamente erótico, que perdurou até o fim dos anos de 1970.
Ao final da década de 1980, surgem as primeiras iniciativas para retomada cultural da região, marcada por uma grande reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo, um dos maiores acervos de arte nacional.
Em 1999, com a região já conhecida como cracolândia, é inaugurada a Sala São Paulo no conjunto da Estação Júlio Prestes. Casa da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a sala de concertos já foi considerada uma das dez melhores do mundo pelo jornal inglês The Guardian. Dois anos depois, a Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp Tom Jobim) muda sua sede para o bairro.
Outros grandes espaços arquitetônicos e antigas construções também passaram por reformas e deram lugar a novos conjuntos culturais. O Museu da Energia de São Paulo ocupou, em 2005, uma antiga residência da família de Santos Dumont. O Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado em 2006 na Estação Ferroviária da Luz. E o Memorial da Resistência abriu as portas em 2009 na antiga sede do Departamento Estadual Ordem Política e Social de São Paulo, onde presos políticos ficavam detidos na época da ditadura militar.
Espaços multiculturais
Instituições privadas também têm investido na região, criando espaços multiculturais como o Sesc Bom Retiro, o Centro Cultural Porto Seguro e o Museu dos Salesianos. O Centro Cultural Casa da Luz, criado em 2015, funciona em um antigo casarão e oferece aulas, exposições, residências artísticas e até um co-working gratuito. Já o Teatro de Container Mungunzá foi criado para receber os ensaios da companhia de teatro homônima e dar continuidade a projetos sociais criados anteriormente. Em um terreno abandonado, viram a oportunidade para criar um polo cultural de caráter colaborativo levando em conta a realidade do entorno.
O projeto arquitetônico é formado por 11 contâiners de carga e os espetáculos são gratuitos e abertos a todos que ali passam e desejam participar. Focando no bem-estar da comunidade local, o teatro também funciona como base de vários outros projetos sociais que promovam o desenvolvimento da região, como uma oficina de costura cooperativa que produz roupas e acessórios de alta moda auxiliando usuários de crack que buscam por uma nova vida.
Instituições privadas, centros culturais tradicionais e outras novas iniciativas lutam para superar as dificuldades dos problemas locais, especialmente de público, mas são a grande ferramenta para romper com décadas de abandono e transformar uma das regiões com maior índice de vulnerabilidade social do país em um grande polo cultural e histórico.