Há 1,5 mil anos, uma pessoa comeu uma cobra peçonhenta inteira. Por que será?

Seria essa enigmática descoberta prova de um antigo ritual ou simplesmente uma aventura pré-histórica que deu errado?

Por Erin Blakemore
Publicado 1 de mai. de 2019, 17:17 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Esse dente de víbora, provavelmente de uma cascavel ou de uma cabeça-de-cobre, estava preservada num coprólito ...
Esse dente de víbora, provavelmente de uma cascavel ou de uma cabeça-de-cobre, estava preservada num coprólito pré-histórico.
Foto de Elanor Sonderman

A análise de coprólitos — cocô de gente preservado — é um trabalho sujo e malcheiroso. Mas, vez ou outra, revela algo bastante surpreendente.

No caso de um novo artigo publicado no periódico Journal of Archaeological Science, esse algo surpreendente foi o dente de uma cobra peçonhenta, digerido por uma pessoa e deixado num abrigo de pedras no que agora é o estado do Texas, Estados Unidos, há cerca de 1,5 mil anos.

A arqueóloga Elanor Sonderman, que encontrou o dente durante seu trabalho de pós-graduação pela Texas A&M University, não procurava especificamente essa agulha num palheiro de fezes pré-históricas. Na verdade, ela queria aprender mais sobre os povos indígenas que utilizavam um local conhecido como Conejo Shelter, uma caverna na região dos cânions de Lower Pecos do Texas, como latrina. O abrigo tornou-se sítio arqueológico nos anos 1960 antes que o projeto de uma barragem inundasse a área.

As cavernas dessa área guardavam diversos artefatos pré-históricos incrivelmente preservados, inclusive sandálias e cestos feitos de fibra vegetal, mas o dado científico mais valioso pode ser surpreendente para quem é leigo nessa área. “É o cocô”, diz Tim Riley, especialista em coprólitos e curador do Museu Pré-Histórico do Leste da Universidade Estadual de Utah, que não participou da pesquisa. Os coprólitos, explica Riley, contêm toda uma riqueza de informações: eles dão detalhes mais profundos sobre a saúde da pessoa que as depositou, contendo resquícios de alimentos que são provas diretas dos hábitos alimentares dos povos antigos.

Os pesquisadores ainda analisaram o pólen encontrado no coprólito, que revelou que a pessoa também comeu flores da planta iuca.
Foto de Crystal Dozier

A análise do coprólito do Conejo Shelter revelou a presença de pólen, indicando que a pessoa havia consumido plantas suculentas, como as flores de iuca. A pessoa também havia ingerido o que parecia ser um pequeno roedor, sem tirar a pele nem cozinhar — algo típico dos povos da região de Lower Pecos da época.

Já a presença de escamas, ossos e o dente de uma cobra peçonhenta na amostra é outra história.

“Tudo o mais encontrado no coprólito era bem normal para aquela região”, diz Sonderman. “Mas o dente foi algo tão estranho que sabíamos que precisávamos investigar para entender o que acontecera”.

O centro oco do dente ajudou a equipe a identificar a infeliz cobra da família Viperidae — muito provavelmente uma cascavel-diamante-ocidental ou serpente-cabeça-de-cobre, ambas comuns na região. Não havia marcas de carvão nas escamas, o que sugere que ela foi ingerida sem cozimento. E o grande número de escamas sugere que o animal foi comido por inteiro.

Mas por quê? É impossível voltar no tempo e perguntar ao autor do coprólito, logo, os pesquisadores debruçaram-se sobre a história e as mitologias de outras culturas da região em busca de pistas. Eles descobriram que as cobras eram consumidas raramente, exceto nos casos de estresse alimentar — e, mesmo assim, costumavam ser preparadas e cozidas sem ossos, cabeça ou dentes. E, ainda que já se tenham encontrado restos mortais de cobras em outros coprólitos do Conejo Shelter, nenhum deles parece ter vindo de uma espécie peçonhenta.

A arte rupestre da mesma região e época apresenta temas referentes a cobras, com estes animais desempenhando importante papel como guardas dos portais de mundos sobrenaturais em rituais xamânicos de outras culturas da Meso-América e do sudoeste dos EUA. Uma importante especialista em arte rupestre da área de Lower Pecos, Carolyn E. Boyd, sugeriu que a arte pode representar visões comuns às daqueles que consomem peiote e outras substâncias alteradoras da consciência.

Então o dente é prova de um ritual xamânico? Embora a equipe de pesquisa de Sonderman proponha que a cobra tenha sido ingerida para "fins particularmente cerimoniais ou ritualísticos", não dá para se ter certeza. “Não quero que ninguém saia dizendo: ‘existe uma cultura de culto à cobra em que as pessoas consomem cobras em rituais’”, diz Sonderman. “Não é isso que estamos tentando dizer. Esse é só um exemplo”.

O que o dente de fato sugere, diz ela, é que não era algo totalmente inédito alguém comer cobras peçonhentas — mas, dadas as circunstâncias únicas, pode ser que ela tenha sido consumida numa ocasião especial. Ou não. Talvez tenha sido só uma aventura — ou uma preferência alimentar bem perigosa.

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