Comparações com epidemias anteriores não são argumento contra isolamento social, dizem especialistas

Características únicas fazem com que a Covid-19 tenha impactos muito mais severos do que a H1N1. Brasil pode ter mais de um milhão de mortes sem medidas de prevenção coordenadas.

Por João Paulo Vicente
Publicado 2 de abr. de 2020, 17:26 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 03:22 BRT
Imagem colorizada de microscópio eletrônico mostra célula isolada (em azul) infectada por partículas do vírus Sars-COV-2, ...

Imagem colorizada de microscópio eletrônico mostra célula isolada (em azul) infectada por partículas do vírus Sars-COV-2, o coronavírus.

Foto de National Institute of Allergy and Infectious Diseases

Em 2020, conforme a Covid-19 avança rapidamente sobre o Brasil e o número de infectados ultrapassa 1 milhão em todo o mundo, o presidente Jair Bolsonaro insiste em relativizar a dimensão da pandemia para garantir uma suposta saúde da economia. Em 1974, à medida que um surto de meningite no Brasil atingia 40 mil infectados só em São Paulo, a ditadura militar impedia a imprensa de divulgar a dimensão da epidemia para não sujar a imagem do milagre econômico.

Não há um número exato de quantas pessoas morreram na epidemia de meningite, mas foram na casa de “milhares”, segundo André Mota, professor do Departamento de Medicina Preventiva e coordenador do Museu Histórico da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMU-USP).

“Uma das motivações das mortes foi estarmos dentro do regime militar, que impedia que informações sobre o que acontecia fossem dadas à população. Quando explodiu a questão, centenas e centenas de pessoas tinham morrido sem saber por quê”, conta Mota. “Isso merece atenção porque também escondia questões políticas que de alguma maneira vemos hoje novamente em parte dentro do governo Bolsonaro, do ponto de vista palaciano. São os mesmos equívocos, as mesmas interpretações irresponsáveis, escondendo da população o que de fato se trata e não fazendo o que deve ser feito.”

Por mais que o próprio Bolsonaro, assim como aliados políticos e apoiadores, tenham feito comparações com outras epidemias que assolaram o Brasil para descrever como exageradas e desnecessárias as estratégias de contenção da Covid-19, a verdade é que esse argumento é equivocado. Por um lado, uma série de características fazem com que a doença causada pelo novo coronavírus tenha impactos muito mais severos do que a H1N1, para ficar no exemplo mais citado. Por outro, uma perspectiva histórica revela as consequências de fechar os olhos.

“Dentro da pandemia, há um descontrole: não temos vacina, não temos remédios efetivos e o contágio atinge as pessoas de maneira exponencial”

por André Mota
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da USP

No caso da H1N1, em 2009, o alcance da epidemia era menor porque esse novo tipo de gripe se propagava em uma velocidade menor do que a Covid-19. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), cada infectado com a H1N1 transmitia o vírus a entre 1,2 e 1,6 pessoas. No caso da Covid-19, ainda que não haja um número consolidado, epidemiologistas do Imperial College of London sugerem que o valor seja superior a 3 pessoas. Além disso, a letalidade também era menor: 0,02% no caso da H1N1, contra estimativas que variam entre 0,5% a mais de 3% para o Covid-19.

Para completar, a H1N1 é um tipo de vírus influenza. Para diversos cientistas, idosos que já haviam enfrentado pandemias de determinadas gripes nas décadas de 1950 e 1960 estavam imunes. Por fim, havia medicamentos e vacinas prontas a partir dos quais era possível trabalhar como um ponto de partida para criar fármacos específicos para a H1N1. Nada disso é verdade para a Covid-19. Por mais que outras duas epidemias causadas por tipos diferentes de coronavírus tenham ocorrido – a Sars, na Ásia, em 2002; e a Mers, no Oriente Médio, em 2012 – não foram desenvolvidos remédios para nenhuma delas. Da mesma forma, a busca por uma vacina também não teve sucesso. Em resumo, há uma vulnerabilidade total contra a nova doença.

Cadê a tecnologia?

Seis meses atrás, parecia improvável ver ruas vazias e tamanho isolamento social causado por doenças, dado o estado avançado da medicina. Há 102 anos, a sensação era semelhante para quem assistiu à gripe espanhola dizimar 50 milhões de pessoas no mundo. “Há um paralelo no assombro de uma epidemia em um período quando a medicina tem vários recursos que em tese poderiam barrar esse tipo de coisa”, diz Liane Maria Bertucci.

Pós-doutora em história da saúde e professora da Universidade Federal do Paraná, Bertucci é autora do livro Influenza, a medicina enferma: ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo. “Mesmo em 1918 a medicina tinha uma série de procedimentos que vinham do final do século 19, com avanços na microbiologia e bacteriologia, com práticas que selecionavam ou diminuíam problemas de saúde que atormentavam pessoas do mundo inteiro há milênios, como febre amarela e varíola”, afirma. “De repente uma epidemia como a gripe foi um grande susto.”

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    Outro paralelo traçado pela pesquisadora está nas recomendações básicas para lidar com a gripe espanhola: lavar as mãos, ficar dentro de casa e evitar ao máximo o contato social. O período mais grave da epidemia foi entre meados de outubro até o fim de dezembro de 1918. Neste intervalo, foram 35 mil mortos no Brasil – à época, a população do país era de 3,7 milhões de habitantes. Em São Paulo, então com 528 mil habitantes, 116.780 pessoas se infectaram e 5.311 morreram por conta da gripe espanhola – pouco mais de 1% da população.

    “Depois da gripe espanhola, todas as gripes que tivemos, e mesmo os outros casos de coronavírus, havia na verdade tecnologia suficiente e um certo controle territorial sobre elas”, diz André Mota, da USP. “Desta vez, nós perdemos controle e toda tecnologia existente foi incapaz da contenção.”

    Para Luc Montaigner, virologista francês que isolou o HIV no início da década de 1980, o mundo nunca mais viveria uma epidemia como a da gripe espanhola. Isso a partir da perspectiva de uma doença que teve uma taxa de contágio e número de mortes tão altos dentro de um período de tempo determinado, explica Liane Bertucci. Parece ser o caso da Covid-19.

    Mas não da tuberculose. No dia 24 de março, o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), aliado de primeiro hora de Jair Bolsonaro, postou no Twitter um comparativo entre o número de mortes da tuberculose e da Covid-19 para minimizar a seriedade do segundo. “Essa fala é uma irresponsabilidade, não há outra palavra”, diz Mota. “Temos realmente um problema de tuberculose no Brasil, que envolve problemas de moradia, alimentação, tudo isso, agora é incomparável". O professor argumenta que é um erro equiparar uma doença em que há um controle epidemiológico pelo estado – com um número total de mortes conhecido, assim como medicamentos específicos para tratamento – com uma pandemia.

    “Dentro da pandemia, uma epidemia global, há um caráter importante que é o descontrole. Nós não temos vacina, não temos remédios efetivos, há um descontrole e o contágio atinge as pessoas de maneira exponencial”, continua o pesquisador da USP.

    Por conta disso, ele caracteriza como problemático o argumento da imunização de rebanho, ou seja, evitar o confinamento, mesmo que isso signifique determinado número de mortes, para que toda a população se torne imune à Covid-19 mais rápido. “É falacioso dizer que, por ser mais concentrado e ocorrer em menos tempo, não terá um efeito ão arrasador”, afirma ele.

    Na verdade, modelagens estatísticas produzidas por pesquisadores do Imperial College of London estimam que o Brasil pode ter mais de um milhão de mortes se nenhuma medida de prevenção – como distanciamento social, isolamento de doentes e testes de diagnóstico – for tomada.

    Na peste negra, em 1347, Londres tinha 80 mil habitantes. Em 1351, a população cairia para 40 mil. “Morreu 50% da população. Essa ideia de que tudo bem a população contrair o vírus pode trazer uma hecatombe populacional”, diz Mota. “Sem contar que uma pergunta que precisa ser feita para as pessoas que defendem isso é: quanto vale uma vida?”.

    Então,façamos como fazíamos ainda em 1918, na época da gripe espanhola: lave as mãos e fique em casa. São cuidados que contribuem para evitar algumas destas outras doenças, como lembra Bertucci. “A epidemia traz um susto tão grande que espero que as pessoas continuem lavando as mãos. Isso nos ajudaria, por exemplo, a não ter tanta tuberculose.”

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