Transformados em hospitais, centros de teste e necrotérios, estádios ganham nova importância
Arenas esportivas no mundo todo foram rapidamente convertidas para ajudar no combate à pandemia de coronavírus.
ESTÁDIO PACAEMBU, SÃO PAULO | O estádio do Pacaembu, em São Paulo, foi convertido em hospital de campanha para enfrentamento da crise da Covid-19.
Esta reportagem foi publicada em parceria com a ESPN. Veja em ESPN.com.br a história completa da transformação do Pacaembu.
Não faz muito tempo, nos enfileirávamos nos portões do estádio ansiosos e empolgados, vestindo a camisa do nosso time, prontos para comemorar. Sentir uma certa ansiedade era saudável, do tipo que deixava o esporte mais emocionante. Nesses casos, sempre soubemos que não havia nenhuma vida em jogo.
A ansiedade agora é diferente. Muitos estádios e campos esportivos ao redor do mundo foram transformados para cumprir diferentes propósitos. Hoje tornaram-se hospitais de campanha ou locais para teste do coronavírus. Uns abrigam os sem-teto. Outros são utilizados para alimentar os famintos. Alguns são necrotérios.
Mas as fachadas de concreto, aros elevados, pisos de madeira e gramados verdes nos lembram do que tivemos no passado e da promessa daquilo que nos espera quando a pandemia acabar.
Estes são nossos campos de jogo.
ESTÁDIO HARD ROCK, FLÓRIDA | Fila de carros para a realização de testes drive-thru que detectam a Covid-19 no estacionamento da casa do Miami Dolphins.
América do Norte
Pela primeira vez na história da América do Norte, o estado de emergência foi declarado simultaneamente em todas as províncias do Canadá e em todos os 50 estados, Distrito de Columbia e quase todos os territórios dos Estados Unidos. Governadores começaram a mobilizar unidades da Guarda Nacional para transformar ginásios, estádios, arenas e estacionamentos. Os locais incluem dez estádios da NFL (a liga de futebol americano), além de pistas de corrida e mais de três dezenas de outras instalações normalmente utilizadas para basquete, hóquei, beisebol e tênis, incluindo onde o US Open é realizado, acima. Todos eles têm novas funções, já que o número de mortes ultrapassou 50 mil em abril.
A primeira-sargenta Donita Adams, da Guarda Nacional do estado de Maryland, caminha entre as tendas beges do exército que circundam o FedEx Field.
ARENA SLEEP TRAIN, CALIFÓRNIA | Trabalhadores transformam a antiga casa do Sacramento Kings em um hospital de emergência com 400 leitos.
“É surreal”, diz ela. “O FedEx Field é algo importante para nós, pois é a casa dos Redskins [time de futebol americano]... É uma atmosfera totalmente diferente. Em vez de estarmos alegres, felizes e comemorando, estamos preocupados e cautelosos.”
Como todos os demais soldados de seu país, Adams tem uma história para contar sobre por que se alistou à Guarda Nacional voluntariamente. Após uma bem-sucedida carreira de basquete no Faculdade Estadual Glenville, na Virgínia Ocidental, ela sonhava em entrar na WNBA (principal liga americana de basquete feminino). Porém, acabou dispensada do Los Angeles Sparks antes de estrear. “Foi uma decepção”, conta ela. “Simplesmente tive que me recompor e encontrar outra alternativa. E foi isso que fiz.”
Na Guarda, ela encontrou uma maneira de ser treinadora de basquete em sua vida civil e uma atleta de destaque em seu uniforme militar. Ela faz parte da equipe feminina do exército dos Estados Unidos, vencedora da medalha de ouro contra equipes de outras divisões militares e, em outubro passado, foi uma das doze jogadoras escolhidas para representar os Estados Unidos nos Jogos Mundiais Militares em Wuhan, na China. Semanas depois que a equipe ganhou a medalha de bronze, veio a notícia de um novo vírus.
Agora, em vez de se preparar para outra temporada, Adams está entre os membros da Guarda Nacional que trabalham em um local de testes do coronavírus nos arredores do estádio Fedex Field, que testou mais de 800 pessoas em três semanas. “Daqui a um mês, eu estaria no campo de treinamento [de basquete]”, diz ela. “Mas, ao mesmo tempo, entendemos que isso é mais importante. Estamos sacrificando tudo para garantir que todos fiquem bem.” – Tisha Thompson
ESTÁDIO MARACANA, PANAMÁ | Voluntários levam aos carros sacos de comida que serão entregues às famílias afetadas pelo coronavírus na Cidade do Panamá.
América do Sul
Enormes tendas brancas cobrem o campo do Estádio Municipal Cícero Pompeu de Toledo, o Pacaembu, em São Paulo, onde um hospital de campanha temporário abriga pacientes com Covid-19 na cidade mais populosa do Brasil. Os médicos de lá, da América Central e do restante da América do Sul estão começando a testemunhar um salto em doenças relacionadas, como pneumonia. “A quantidade de testes disponíveis para detecção do coronavírus é muito limitada”, diz Kelly Henning, médica e epidemiologista do programa de saúde pública da Bloomberg Philanthropies. “Preocupa-nos muito o fato de que o surto esteja, na verdade, avançando silenciosamente.” As autoridades começaram a utilizar instalações esportivas, incluindo a mais antiga arena de touradas das Américas, para se preparar para a próxima onda.
O Pacaembu é um dos palcos mais emblemáticos do futebol brasileiro. Ele recebeu seis partidas durante a Copa do Mundo de 1950 e testemunhou 127 gols de Pelé. Mas, em apenas 11 dias, trabalhadores o transformaram em um hospital com 200 leitos.
“Foi difícil quando vi o campo tomado por tendas brancas”, diz Edson Tadeu da Silva, locutor do estádio há cerca de dez anos. “O estádio é um lugar de diversão. De repente, se transformou em um lugar de dor, de morte.”
COLISEU CARLOS MAURO HOYOS, COLÔMBIA | Durante a quarentena nacional, moradores de rua estão sendo abrigados dentro do local multiuso na cidade de Medellín.
O estádio foi construído há 80 anos e fica na região central de São Paulo, metrópole com mais de 12 milhões de habitantes e o epicentro da crise do coronavírus no Brasil. Temendo o colapso dos hospitais tradicionais, as autoridades buscaram locais para atendimento emergencial e optaram pela localização do Pacaembu. O campo agora abriga dez enfermarias e 200 leitos, metade dos quais já foram preenchidos.
[Leia mais sobre a história da transformação do Pacaembu no site da ESPN Brasil]
Entre os 250 trabalhadores da construção civil estava Flavio Alves da Silva, 46 anos, que esperava ser jogador profissional de futebol e jogar no Pacaembu. Com esse esforço, ele finalmente conseguiu: “Sinto que sou um herói, um vencedor.” – Rafael Valente e Paulo Cobos
PISTA DE GELO LA NEVERA, ESPANHA | Esta foto concedida pela Comunidade de Madri mostra como a cidade transformou sua pista de patinação no gelo em um necrotério temporário.
Europa
Em um dos continentes mais atingidos pela Covid-19 até agora, os hospitais de campanha ficam nos gramados normalmente ocupados pelos jogadores de futebol mundialmente famosos da Premier League e da Bundesliga, além de quadras de basquete e campos de rúgbi, como o Estádio do Principado no País de Gales, acima. E as arenas de gelo foram transformadas em necrotérios de emergência para abrigar os corpos das mais de 100 mil vítimas.
Lee Marchant é torcedor fanático do Southampton FC e seu trabalho era selecionar locais temporários para os principais eventos esportivos do Reino Unido. Após a chegada do coronavírus, ele passou a trabalhar consertando o telhado térmico de um necrotério temporário no leste de Londres.
“Quando testemunhamos a crise em primeira mão... havia andaimes prontos para receberem os caixões”, diz Marchant, 37 anos. “Foi algo de fato real. Acredito que as pessoas não estejam percebendo a gravidade da situação.”
ACADEMIA DE BOXE DE MOSCOU, RÚSSIA | Voluntários organizam máscaras e álcool em gel para distribuição a crianças e idosos em Moscou.
Agora, ele trabalha em um hospital de campanha no Estádio do Principado, que possui 74,5 mil lugares, em Cardiff, no País de Gales. O Hospital Dragon’s Heart, que é temporário, possui leitos espalhados pelo vasto campo do estádio.
Marchant ajudou a instalar cerca de 14 mil metros quadrados de piso de madeira. No andar de cima, pacientes se recuperam em suítes executivas que foram transformadas.
Marchant diz que estava nervoso por aceitar o emprego. Seu tio está em tratamento intensivo para Covid-19 e ele tem um filho de 18 meses, Theo, em Southampton.
“O que me levou a fazer esse trabalho foi o fato de poder ajudar as pessoas; se não fosse por isso, eu teria ficado bem longe”, diz ele. “É um risco enorme, mas você está fazendo sua parte. Precisa ser feito. Tenho meu crachá para que, no futuro, possa mostrá-lo ao meu filho e dizer a ele como me orgulhei por ter trabalhado aqui.” – Tom Hamilton
ESTÁDIO SANI ABACHA , NIGÉRIA | Profissional mede o espaço entre as camas em um centro de isolamento de pacientes com Covid-19 dentro do estádio.
África
Assim como a América do Sul, a África ainda não sentiu a força total do coronavírus. Amanda McClelland, especialista em saúde pública da ONG Resolve to Save Lives diz que isso se deve, em parte, às lições aprendidas com o vírus ebola. “Devido à sua experiência, vemos uma inovação realmente importante na forma como a África está reagindo à situação”, diz McClelland. Por exemplo, quando as autoridades ganenses souberam do coronavírus, ordenaram que 750 viajantes estrangeiros ficassem em quarentena após o desembarque. Mais de 100 foram confirmados com Covid-19. O grupo de McClelland constrói instalações de tratamento de emergência e ajuda os governos africanos a planejar o combate a surtos como esse há 16 anos. “Construir centros de tratamento para Covid-19 em uma arena esportiva representa uma situação emergencial”, diz ela. “Muitos países africanos já têm unidades de tratamento contra o ebola.” Em vez disso, estádios e campos estão sendo utilizados para pacientes mais graves, como o estádio Caledonian, na África do Sul.
A família de Lucky Manna fundou o Arcadia Shepherds FC, o primeiro time de futebol totalmente profissional da África do Sul, em 1903. “Fomos o primeiro clube a desafiar o governo e jogar com jogadores negros”, diz Manna, proprietário e gerente-geral da equipe. Quando a pandemia começou, o time negociava com autoridades locais para transformar o estádio Caledonian, na capital Pretória, “em um estádio de futebol de primeira linha”.
Em vez disso, foi transformado em um abrigo para moradores de rua durante o bloqueio que ocorre em todo o país. Até duas mil pessoas foram abrigadas no local, diz Manna, com pouco saneamento ou água potável. “Isso gerou um grande problema”, diz ele. “Não havia comida suficiente e as tendas eram inadequadas para a chuva, levando muitos a se amontoarem nas arquibancadas.
Manna diz que as traves do gol foram roubadas devido ao valor do metal e as instalações foram depredadas. Oficiais do governo, que não responderam aos pedidos de comentário da reportagem, acabaram transferindo a maioria dos abrigados. Cerca de 500 foram para o estádio de rugby West Pretoria. “Eu levo comida para os que foram deixados para trás a cada três dias mais ou menos”, diz Manna. “Cerca de onze pessoas ainda residem ilegalmente no clube, mas nada pode ser feito.” – Tisha Thompson
WUHAN, CHINA | Um estádio esportivo foi convertido em hospital temporário para pacientes com Covid-19.
Ásia e Austrália
ARENA ESPORTIVA, IRÃ | Profissional da saúde em um hospital de campanha montado por militares para 200 pacientes com coronavírus na cidade de Tabriz.
Medidas rigorosas de distanciamento social e cumprimento das ordens de isolamento ajudaram a Austrália e outras nações da Ásia e da Oceania a evitarem aumento no número de hospitalizações e mortes por coronavírus. Estádios esportivos na Austrália estão sendo usados como centros de comando da polícia e para distribuir alimentos aos necessitados. A situação é mais grave na Ásia, onde o vírus está causando estrago em países como Índia, Irã, Turquia e no Oriente Médio. Instalações esportivas passaram a ser utilizadas como centros de atendimento à pandemia de Covid-19 na China, depois que os primeiros casos confirmados em todo o mundo apareceram em Wuhan, em janeiro. Desde então, o vírus se espalhou para mais de 210 países e infectou pelo menos 2,3 milhões de pessoas, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.
Não foi assim que Peter Wright imaginou chegar ao estádio Metricon, na Austrália, em uma tarde de sexta-feira.
Peter Wright nasceu na Austrália e é jogador de futebol australiano (esporte cujas regras foram derivadas das do rugby, assim como o futebol americano). Com 2 m de altura e corpo atlético, ele costumava chegar às instalações do Gold Coast Suns com sua bolsa esportiva à mão. Mas, assim como quase todas as outras ligas do mundo, a Liga Australiana de Futebol Americano foi suspensa e o Metricon foi transformado em centro de distribuição de alimentos.
ARENA DE JUDÔ EM YOKOHAMA, JAPÃO | Joji Hatakeyama, 29 anos, chega a um abrigo temporário designado para pessoas que não podem pagar aluguel e que estavam passando a noite em cibercafés na Prefeitura de Kanagawa.
Wright, juntamente com os colegas de equipe Touk Miller e Lachie Weller, se voluntariaram para entregar refeições a pessoas isoladas devido ao surto da Covid-19. Wright e Miller, uma dupla de sucesso nos gramados, uniram-se para entregar refeições aos membros do clube que são idosos.
“Acabamos de voltar da casa deles. Deixamos as refeições na porta e conversamos um pouco sobre como está sendo o isolamento para eles”, conta Wright. “É um mundo completamente diferente do que há alguns meses. Mas acho que precisamos nos adaptar e tirar o melhor de qualquer situação.” – Matt Walsh