Peças sagradas de religiões afro-brasileiras deixam guarda da polícia após 75 anos
Objetos sagrados recolhidos entre 1890 e 1945 por batidas policias em terreiros cariocas foram transferidos para o Museu da República. Fotos mostram alguns dos 521 itens, que contam a história de religiões como candomblé e umbanda.
Com base em códigos penais promulgados em 1890 e 1940, a polícia perseguia religiões como a umbanda e o candomblé. O movimento Liberte Nosso Sagrado, liderado por Maria do Nascimento, a Mãe Meninazinha d´Oxum, lutava pela transferência e guarda compartilhada dos objetos desde 2017.
Murmúrios de “nossas coisas que estão lá na polícia” marcaram a infância de Maria do Nascimento.
Ela não se recorda quando ouviu a avó dizer essas palavras pela primeira vez, mas ainda consegue sentir a dor na voz da matriarca ao falar com outras mulheres também moradoras do bairro de Ramos, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Por décadas, batidas policiais aterrorizaram terreiros afro-brasileiros no estado, baseadas em códigos penais promulgados em 1890 e 1940 para perseguir negros brasileiros, criminalizar suas religiões e prender quaisquer de seus praticantes. Como provas, foram apreendidos objetos sagrados que, desde 1938, permaneceram alojados no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em um acervo denominado Magia Negra.
Quando cresceu, a menina que havia ouvido a avó sabia que precisava fazer algo para ajudar seu povo a cicatrizar a ferida. Hoje, com 83 anos e conhecida como a respeitada iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum, do terreiro Ilê Omolu e Oxum em São João de Meriti, é uma das muitas lideranças do candomblé e da umbanda apoiada por pesquisadores e ativistas do movimento dos direitos negros que trabalharam nos últimos 30 anos para reaver o que lhes pertence por direito.
“Foi um roubo. Entraram nos terreiros e tiraram o que não era deles”, diz a mãe-de-santo. “Meu povo sofreu.”
Agora, Mãe Meninazinha e seu grupo, conhecido como Liberte Nosso Sagrado, conseguiram o que acreditavam ser impossível: trazer os objetos, o “nosso sagrado”, de volta.
Acervo descuidado
Faltava um dia para o início da primavera quando as 521 peças religiosas chegaram ao Museu da República, no Palácio do Catete. Apreendidas pela polícia carioca entre 1889 e 1945, muitas estavam em condições precárias devido à forma de armazenamento. Após o local ter sido escolhido como o novo lar das peças, dois anos se passaram antes que os objetos pudessem ser transferidos ao museu.
A equipe do museu levou quatro dias para desembalar todos os objetos – vestuários, espadas, esculturas, entalhes, rosários, instrumentos musicais e bonecas, entre outros –, alguns dos quais são a prova de que o candomblé jeje, trazido ao Brasil por escravizados de várias regiões da África, já foi praticado no Rio de Janeiro.
Entre as peças, havia fragmentos de estátuas e rosários, guardados em caixas de sapatos e nunca antes catalogados. O museólogo André Andion Angulo já conseguiu descobrir a que local pertencem alguns dos fragmentos. No entanto, ele sabe que identificar todos os objetos sagrados é uma tarefa que ele e sua equipe não conseguem fazer sozinhos.
Gaveta da reserva técnica no Museu da República, no Rio de Janeiro, com um escudo de bronze, um quadro com símbolos ritualísticos conhecidos como ponto-riscado, uma caixa de madeira em forma de estrela de seis pontas e um colar de miçangas doado por Mãe Meninazinha d'Oxún, líder do movimento Liberte o nosso Sagrado, que retirou as peças apreendidas pela polícia e entregou ao museu.
O museólogo André Andion analisa a recém-chegada imagem de São Jorge, comumente associada ao orixá Ogun, no Múseu da República.
Coroas utilizadas em rituais em homenagem aos orixás Oxun (à direita) e possivelmente Ogun ou Iemanjá (ao fundo).
O museu sabia que tinha capacidade técnica para alojar e manter as peças, mas também que não poderia assumir a função sem o consentimento expresso dos terreiros e em uma possível parceria com eles.
“O museu se propõe a só gestar esse acervo, tendo em vista que a gestão seja compartilhada com as casas de terreiro,” diz Angulo, “para a gente não cometer uma segunda violência, que seria uma violência museológica, como foi praticada pelo Museu da Polícia Civil.”
Como parte do que considera uma reparação histórica, o Museu da República pretende contratar membros das religiões do candomblé e da umbanda para identificar os objetos e conduzir pesquisas necessárias a fim de contextualizar suas descrições e a forma como serão exibidos – uma exposição está prevista para novembro de 2021, mês da Consciência Negra. A organização sem fins lucrativos Instituto Ibirapitanga, dedicada à igualdade racial, também ofereceu ajuda.
Recorte do jornal carioca Gazeta de Notícias, de 29 de julho de 1916, reporta uma batida policial que prendeu 44 pessoas em ritual de candomblé em Madureira, Zona Norte do Rio de Janeiro. As açòes eram baseadas em artigos dos códigos penais de 1890 e 1940.
Até o fim da década de 1990, as peças faziam parte de uma exposição pública no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que já foi sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), conhecido por praticar repressão e tortura durante a ditadura militar. Depois, os objetos sagrados foram transferidos ao arquivo do museu, permanecendo inacessíveis ao público. Na década de 2000, quando o museu foi reformado, a coleção passou a ser armazenada em caixas de papelão em um prédio adjacente, sem controle de temperatura e umidade.
Para Mãe Meninazinha, ver as peças expostas no Museu da República será uma forma de os negros brasileiros retomarem sua própria história e também de permitir que outros aprendam mais sobre o racismo religioso que ela e tantos outros enfrentaram e continuam enfrentando, já que ataques violentos a terreiros persistem em todo o país.
“Queremos que as pessoas possam visitar para conhecer a nossa história, que faz parte da história do nosso Brasil”, diz Mãe Meninazinha.
Mas para alguns, isso não é o bastante.
O babalorixá Sidnei Barreto Nogueira, coordenador e professor do Instituto Ilê Ará, em São Paulo (SP), compara a situação a alguém condenado injustamente por um crime. A liberdade dessa pessoa, afirma ele, é algo que sempre foi dela por direito, assim como os objetos sagrados levados pela polícia sempre pertenceram aos terreiros de candomblé e umbanda.
“Não é nem privilégio, não é nem reparação,” diz o pai-de-santo. “É um direito. É nosso.”
Os integrantes do Liberte Nosso Sagrado tiveram apoio para sua campanha por meio da circulação de petições, do documentário Nosso Sagrado, da Quiprocó Filmes, de 2017, e de políticos como a deputada federal Talíria Petrone.
Cachimbos entalhados, forquilhas e figas provavelmente utilizados em rituais.
Gavetas da reserva técnica no Museu da República, no Rio de Janeiro, guardam espadas, comumente associadas ao orixá Ogun, utilizadas em rituais de umbanda.
Machados e leques representando, respectivamente, os orixás Xangô, da justiça, e Oxum, do amor.
Quando o Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro concordou em devolver os objetos religiosos aos terreiros, Ivanir dos Santos, babalawo e professor de história comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, consideraram a decisão como uma vitória simbólica e um avanço, assim como outros líderes da umbanda e do candomblé. No entanto, ele se preocupa com a história a ser contada quando os objetos fossem devolvidos.
“Quero saber como que a República vai contar a história. Não pode só dizer que são umas peças afro-brasileiras, e ponto. Vai ter que contar a repressão toda e por que esses objetos estão naquele lugar”, diz o líder religioso. “Qual é a narrativa que vai ter?”
Por ora, saber que os objetos sagrados estão fora do controle da polícia é o suficiente. Mãe Meninazinha tem certeza de que era esse o desejo da avó.
“Para nós, não é só um acervo”, diz Mãe Meninazinha. “É nosso sagrado.”