A histórica visita do papa ao Iraque pelos olhos de um fotógrafo

Membros da comunidade cada vez menor de cristãos no Iraque renovam as esperanças durante a primeira visita papal da história do país – apesar da pandemia e das questões de segurança.

Por MOISES SAMAN EM DEPOIMENTO A SYDNEY COMBS
Publicado 24 de mar. de 2021, 07:00 BRT

Papa Francisco recebe as boas-vindas no palácio presidencial em Bagdá logo após a chegada do pontífice ao Iraque, em 5 de março de 2021. Francisco é o primeiro papa a visitar o Iraque. “Eu venho como um peregrino, um peregrino penitente, implorar ao Senhor por perdão e reconciliação após anos de guerra e terrorismo, rogar a Deus para que console os corações e cure as feridas”, declarou Francisco ao saudar o povo do Iraque antes da sua visita.

Foto de Moises Saman

Em 2016, na última vez que visitei Qaraqosh, uma cidade predominantemente católica no norte do Iraque, ela estava sem vida. Forças iraquianas e aliados, na tentativa de retomar a cidade de Mossul, tinham acabado de libertar a cidade do Isis. Tudo o que restava eram paredes grafitadas, destroços e comida estragada – todos os habitantes, tanto a milícia do Isis quanto os locais, tinham deixado a cidade às pressas. Era possível sentir como era fugir para proteger sua vida.

No começo de março, eu estive novamente em Qaraqosh para fotografar o papa Francisco em sua histórica visita ao Iraque. Nas ruas outrora vazias, balões coloridos balançavam ao vento. Prédios e muros cintilavam, recém-pintados de branco. Multidões de pessoas agitavam bandeiras do Iraque e do Vaticano enquanto corriam para a cidade a fim de vislumbrar o pontífice.

Dias após a visita histórica do papa Francisco, pessoas em Qaraqosh, cidade no norte do Iraque predominantemente cristã, marcham em celebração pelas ruas. A cidade foi tomada pelas forças do Isis em 2014, mas muitos cristãos já retornaram desde que ela foi libertada, em 2016.

Foto de Moises Saman

“Queria que o papa viesse todos os anos!”, brincou um vendedor de frutas de um movimentado mercado ao ar livre.

Desde que comecei a trabalhar no Iraque, há quase 20 anos, tenho visto o país e seu povo cada vez mais marcados por conflitos. No entanto, enquanto eu seguia os passos de Francisco, percebi um fio de esperança e validação que eu não tinha visto antes. Parecia um ponto decisivo, para pessoas de todas as fés, que alguém tão importante tenha ido ao Iraque – apesar da pandemia, das questões de segurança e de todos obstáculos. 

Francisco é o primeiro papa em exercício a visitar o Iraque, mas não por falta de empenho. Tanto João Paulo II quanto Bento XVI tentaram visitar o país – não conseguiram devido aos conflitos e guerras da região. Então, quando o presidente Barham Salih fez o convite a Francisco em julho de 2019, ele aceitou prontamente. Após 15 meses sem realizar viagens internacionais em virtude da pandemia, Francisco escolheu o Iraque como seu primeiro destino. 

Fiéis se reúnem para rezar, acender velas e fazer pedidos próximo à entrada de uma caverna conhecida como monastério de Saint Qryaqos, localizado nas proximidades de Qaraqosh. O Iraque abriga algumas das mais antigas comunidades cristãs do mundo. Durante séculos, elas conviveram com outras religiões, incluindo o judaísmo, islamismo e zoroastrismo.

Foto de Moises Saman

Moradores preparam balões e faixas para a chegada de Francisco a Qaraqosh. Antes da queda de Saddam Hussein, em 2003, 1,5 milhão de cristãos viviam no Iraque. Desde então, a população caiu para um terço desse número.

Foto de Moises Saman

Iraquianos tentam ver o papa Francisco na igreja Nossa Senhora da Salvação, em Bagdá, em 5 de março de 2021. Em 2010, 58 devotos foram mortos na igreja por terroristas suicidas da Al-Qaeda. “Adversidades fazem parte do cotidiano da fé iraquiana”, reconheceu Francisco na igreja Nossa Senhora da Salvação.

Foto de Moises Saman

A viagem quase não aconteceu. Embora o papa de 84 anos tenha sido vacinado em janeiro, havia muito receio em estimular a propagação do vírus entre os participantes. O Iraque passa pelo pior período de novos casos da covid-19. Além disso, havia uma infinidade de preocupações em relação à segurança – Bagdá tinha sido atingida por bombas alguns dias antes da chegada de Francisco. Guardas do Vaticano, a força militar do Iraque e a polícia local criaram barreiras fortemente armadas em cada espaço de evento e nos corredores.

Na festa de boas-vindas ao papa, fiquei encurralado atrás dos guardas do presidente, enquanto Francisco e Salih passavam por uma fila de dançarinos e músicos tradicionais. Após algum tempo consegui me movimentar em meio à procissão e cheguei mais perto do papa. Conforme me aproximava, percebi que ele estava mancando e visivelmente com dor. Mais tarde soube que Francisco sofre de uma lesão no nervo ciático e já tinha cancelado eventos devido a essa condição. No entanto, naquela sexta-feira, 5 de março, ele sorriu enquanto conversava com o presidente iraquiano. Ao fim da viagem, Francisco pediu a Salih e vários outros líderes religiosos mais tolerância e união religiosa.

Papa Francisco se encontrou com líderes inter-religiosos no sábado, na antiga cidade de Ur, onde teria nascido Abraão– um grande persongem do cristianismo, islamismo e judaísmo.

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O papa, um santo, e o mundo islâmico

Fui criado na tradição católica, embora não me considere uma pessoa religiosa. Mesmo assim, sabia de Francisco e sua reputação como um homem do povo. Como clérigo em Buenos Aires, ele era conhecido por andar de metrô e socializar com fiéis nas favelas. Uma vez declarou: “como eu gostaria de uma igreja que fosse pobre e para os pobres!”

Francisco foi o primeiro papa a escolher São Francisco de Assis como homônimo, santo defensor dos desfavorecidos e que estabeleceu relações com o mundo islâmico. Durante a quinta Cruzada, em 1219, Francisco de Assis arriscou a própria vida para se encontrar com o sultão egípcio al-Malik al-Kamil. Os dois saíram do encontro sentindo uma profunda apreciação pela crença do outro.

Cristãos iraquianos rezam dentro do monastério Al Saleeb em Qaraqosh.

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Sanvilla Maryam Luai, de seis meses, de Karemlesh, é batizada no mosteiro ortodoxo sírio Mar Matta, datado do século 4, em 3 de março de 2021.

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Mari Salebu, monge cristão iraquiano, é o único guardião e habitante do monastério Al Saleeb, nos arredores de Qaraqosh.

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“[Francisco de Assis] tinha essa intuição incrível identificada como sendo a afinidade universal: a irmandade entre todos os povos. Esse foi o fundamento da vida e da mensagem de Francisco de Assis. O papa Francisco compreendeu isso profundamente”, explica a Irmã Kathleen Warren, da diocese de San Diego, que escreveu um livro sobre o encontro com o sultão. “[O papa Francisco] tinha uma mensagem profunda, muito parecida com a mensagem que Francisco de Assis levou ao povo muçulmano do Egito, 800 anos atrás.”

No sábado, o papa Francisco viajou até Najaf para se encontrar com o líder espiritual muçulmano dos xiitas no Iraque, o Grande Aiatolá Ali al-Sistan, uma figura reclusa que raramente se encontra com estrangeiros. Mais tarde, no mesmo dia, Francisco falou sobre união no seu sermão na cidade de Ur, enquanto observava as planícies onde muitos acreditam ter vivido Abraão – uma figura religiosa igualmente importante para cristãos, muçulmanos e judeus.

Freiras se posicionam em um telhado para tentar espreitar o papa Francisco enquanto ele sai da Igreja da Imaculada Conceição, em Qaraqosh. Devido a questões de segurança, guardas fecharam as ruas que cercavam cada evento e escoltaram o papa em veículos blindados.

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Forças de segurança e moradores locais, jovens e idosos, reúnem-se do lado de fora da catedral de São José em Bagdá, no dia 6 de março de 2021.

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“Se quisermos preservar a fraternidade, não podemos perder o céu de vista. Que todos nós – descendentes de Abraão e representantes de diferentes religiões – percebamos que, acima de tudo, temos este papel: ajudar nossos irmãos e irmãs a erguer seus olhos e orações para o céu”, disse Francisco.

Voltando para casa

Antes da chegada do papa ao país, passei vários dias com a comunidade cristã em Qaraqosh, e pude perceber que, ao reconstruir a cidade, eles reivindicavam seu lugar no Iraque.

Em uma pequena colina nos arredores da cidade, me encontrei com o monge Mari Salebu que, após viver por 15 anos no Líbano, voltou para reformar um pequeno monastério. O prédio de um andar não tinha eletricidade e havia apenas uma capela pequena com algumas cadeiras, mas Salebu está determinado a transformá-lo em lugar de adoração. Ele plantou árvores nas proximidades com a esperança de que um dia o local se torne um espaço de lazer para os cristãos.

Papa Francisco reza uma missa na catedral de São José em Bagdá no sábado, 6 de março de 2021.

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Multidões de cristãos e não cristãos se aglomeram nas ruas de Qaraqosh para ver o comboio de Francisco no domingo, 7 de março de 2021.

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Após voltar para Roma na segunda-feira, 8 de março, Francisco fez uma parada na basílica de Santa Maria Maggiore, com um buquê de flores iraquianas em mãos. Lá dentro, colocou as flores aos pés de uma imagem da Virgem Maria, Maria Salus Populi Romani, e agradeceu a proteção durante a viagem. Em seguida, descansou em sua casa de dois quartos no Vaticano.

Vilas cristãs se estendem pela região da Planície de Nínive, no norte do Iraque. Durante a viagem, Francisco defendeu uma união maior entre os credos no Iraque.

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