Como agricultores brancos usurparam a última rainha do Havaí

O golpe brutal, porém sem derramamento de sangue, pôs fim à monarquia no Havaí — e abriu caminho para a criação de um estado pertencente aos Estados Unidos.

Por Erin Blakemore
Publicado 26 de jun. de 2021, 06:00 BRT
Liliuokalani, Queen of Hawaii

Lili‘uokalani, a última rainha do Havaí, posa para uma foto mais de duas décadas depois que uma conspiração de proprietários de plantações derrubou seu governo em 1895. Liliʻuokalani passou anos em disputa por uma indenização e, em 1911, ganhou o direito à pensão vitalícia do Território do Havaí.

Foto de Photograph, via Library of Congress

Em seu palácio em Honolulu, Lili‘uokalani hesitou diante do pedaço de papel que, uma vez assinado, significaria o fim de seu título de rainha da nação. Se ela abdicasse, seis dos seus maiores apoiadores seriam libertados da prisão, onde aguardavam execução por traição. Um pequeno exército, com menos de cem pessoas, foi reunido para defender a posição dela como governante do Havaí, mas teve que recuar após alguns combates malsucedidos.

“Por mim, eu teria escolhido morrer em vez de assinar aquele papel”, ela relatou em sua autobiografia. “Imagine minha situação… o sangue pronto para ser derramado, a menos que fosse estancando pela minha caneta.”

Com a assinatura, em 24 de janeiro de 1895, a monarquia havaiana chegou ao fim. As ilhas que Liliʻuokalani governou logo seriam anexadas pelos Estados Unidos, por ordem de colonizadores brancos que passaram a enxergar o Havaí como uma grande fonte de renda. O legado da perda da nação para uma minoria rica ainda tem consequências nos dias atuais.

Em 1893, o então presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, nomeou James H. Blount para investigar o golpe no Havaí. O Comitê Representativo de Delegados do Povo Havaiano, retratado na foto, solicitou a Blount a restauração da monarquia sob o comando da Rainha Lili‘uokalani.

Foto de Photograph, via Library of Congress

Crescimento do setor açucareiro gera crise política

Historicamente, cada ilha era governada por um chefe, seguindo uma sucessão hereditária. Após a chegada dos primeiros exploradores europeus, em 1778, o contato com o mundo externo trouxe oportunidades de comércio e outros avanços, como o surgimento de uma linguagem escrita. Um guerreiro da Ilha do Havaí — também conhecida como Ilha Grande — chamado Kamehameha aproveitou as armas trazidas pelos colonizadores e as utilizou para dominar a maioria dos chefes das ilhas. Em 1795, ele uniu o Reino do Havaí sob uma monarquia constitucional, encerrando anos de conflito entre as ilhas. Como uma nação unida, o Havaí estava mais protegido contra interesses estrangeiros e uma possível dominação.

Esses interesses também dizimaram a sociedade tradicional havaiana. Doenças introduzidas nas ilhas por estrangeiros assolaram os havaianos nativos e, em 1840, o número da população havia sido reduzido em uma taxa impressionante de 84%. A nova monarquia constitucional, que se baseava nos conceitos europeus de governo, também remodelou antigas estruturas sociais.

A população das ilhas era cada vez mais composta por europeus, desde missionários até empresários norte-americanos que passaram a adquirir terras para plantar açúcar. Era necessário um grande número de trabalhadores para as plantações e os proprietários começaram a importá-los do mundo inteiro, pagando baixos salários, especialmente do Leste Asiático. Logo, o Havaí começou a produzir enormes quantidades de açúcar. Em 1874, exportou cerca de 11,3 milhões de quilogramas de açúcar para os Estados Unidos.

O Havaí não era apenas uma potência econômica: a ilha tinha importância estratégica por estar localizada entre a Ásia e os Estados Unidos, que buscavam estar bem-posicionados no Pacífico. Os produtores de açúcar pagavam impostos exorbitantes sobre as importações para os Estados Unidos, e o recém-coroado rei Kalākaua concordou em ceder algumas terras havaianas — Pearl Harbor, na ilha de Oahu, e uma ilhota atualmente conhecida como Ilha Ford — em troca do Tratado de Reciprocidade de 1875, um acordo de livre comércio que suspendeu impostos sobre o açúcar e outras importações havaianas.

O investimento dos Estados Unidos no mercado açucareiro disparou. Assim como a interferência dos Estados Unidos em questões havaianas. Em 1887, um grupo de influentes produtores de açúcar brancos, liderados pelos advogados Lorrin Thurston e Sanford B. Dole, se aproveitou de um escândalo de gastos envolvendo Kalākaua para exigir — sob a mira de uma arma — que ele assinasse uma nova constituição que destituía quase que totalmente o poder da monarquia havaiana.

Conhecido como Constituição da Baioneta, o documento dava direito a voto para os residentes estrangeiros e restringia os direitos de sufrágio dos trabalhadores asiáticos, das pessoas de baixa renda ou que não possuíssem propriedades. Subitamente, três em cada quatro pessoas nativas do Havaí perderam o direito ao voto. Embora ainda fossem minoria, os agricultores brancos, que se autodenominavam “Liga Havaiana”, controlavam efetivamente as ilhas.

Na década de 1890, crises econômicas e políticas agitaram o Havaí. Os Estados Unidos aprovaram leis que suspenderam tarifas sobre o açúcar para outros países que competiam com a indústria açucareira do Havaí — e o preço caiu drasticamente. Na esperança de estabilizar a economia e recuperar a vantagem competitiva, os produtores passaram a solicitar que os Estados Unidos anexassem o Havaí ao seu território.

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    Nesta ilustração da época, Lili‘uokalani acompanha sua antecessora, Kapi‘olani, Rainha Consorte de Kalākaua, em visita à Casa Branca, no dia 4 de maio de 1887. Posteriormente, Lili‘uokalani solicitaria ao governo dos Estados Unidos uma intervenção para colocá-la de volta no poder, mas seus esforços foram em vão.

    Foto de Illustration by J. H. Moser, Corbis/Getty Images

    Um golpe sem derramamento de sangue

    Kalākaua morreu em 1891 e a irmã dele, Liliʻuokalani, assumiu o trono. Em 1893, ela tentou substituir a Constituição da Baioneta por uma versão que tiraria os privilégios de voto dos estrangeiros residentes e fortaleceria o poder da monarca.

    Em resposta, Thurston e um grupo armado, que incluía estrangeiros e súditos havaianos se reuniu próximo ao palácio de Liliʻuokalani e exigiu que ela renunciasse. O diplomata norte-americano John Stevens enviou fuzileiros navais até a ilha de Oahu para proteger os interesses de seu país. Liliʻuokalani ordenou que sua guarda real se rendesse, e os líderes do golpe declararam a abolição da monarquia, estabeleceram leis marciais e hastearam a bandeira norte-americana no palácio.

    Foi um golpe sem derramamento de sangue e, a princípio, parecia que o governo provisório, liderado por Dole, garantiria uma rápida anexação do Havaí pelos Estados Unidos. O presidente Benjamin Harrison até assinou um tratado de anexação, em fevereiro de 1893.

    Mas, menos de um mês depois, quando Grover Cleveland se tornou presidente, ele anulou o tratado e enviou o comissário especial James H. Blount às ilhas para investigar o golpe. “O sentimento indubitável do povo é a favor da Rainha, contra o Governo Provisório e contra a anexação”, escreveu Blount em seu relatório.

    Cleveland considerou o golpe um “sério constrangimento”, pediu que Stevens voltasse aos Estados Unidos e instruiu seu novo ministro a reestabelecer o reinado da monarca. A princípio, convencida de que seria apoiada pelos Estados Unidos, Liliʻuokalani insistiu que os participantes do golpe fossem punidos sob as leis do reino. Mas Dole a enfrentou, afirmando que seu governo provisório era legítimo e que apenas a força o destituiria. Ele se recusou a renunciar e os Estados Unidos não tomaram outras medidas contra os insurgentes. Embora Lili‘uokalani tenha mantido o direito ao trono, ela não impediu Dole.

    Em dezembro de 1893, o Congresso dos Estados Unidos iniciou sua própria investigação sobre o golpe. O Relatório Morgan, a resposta do Congresso ao relatório de Blount, foi descaradamente a favor da anexação e, nas palavras do historiador Ralph S. Kuykendall, “conseguiu exonerar a culpa de todos, com exceção da rainha”. O Congresso não tomou ações em seguimento ao relatório e o governo provisório de Dole apressou-se em consolidar o poder. A República do Havaí foi fundada em julho de 1894, com Dole na função de presidente.

    Seis meses depois, em janeiro de 1895, um grupo de rebeldes monarquistas liderados pelo havaiano Robert W. Wilcox fez uma tentativa malsucedida de restaurar a monarquia. Ele e os demais conspiradores esperavam reunir pelo menos mil nativos havaianos e outros residentes, mas conseguiram recrutar cerca de uma centena somente. A contrarrevolução foi desorganizada e malfadada, e o grupo travou três batalhas curtas antes de se render à polícia. Cento e noventa e um suspeitos de conspiração foram presos depois que a contrarrevolução terminou, e Liliʻuokalani foi presa e julgada por conspirar a favor deles, após armas serem encontradas em sua casa. Ela abdicou oficialmente em troca da liberdade de seis de seus apoiadores que haviam sido condenados à morte. Embora ela tenha sido multada e condenada a cinco anos de trabalhos forçados, foi mantida em prisão domiciliar. Em 1896, Dole concedeu a ela o perdão oficial.

    Anexação pelos Estados Unidos

    O governo de Cleveland não quis usar a força para recuperar o Havaí dos norte-americanos que o haviam conquistado. Quando a Guerra Hispano-Americana começou, em 1898, o então presidente, William McKinley, ansioso para conquistar uma vantagem estratégica para a Marinha dos Estados Unidos ao aumentar a capacidade de reabastecimento em águas longínquas, cumpriu sua promessa de campanha de anexar as ilhas. Ele apelou para uma resolução conjunta no Congresso e, em agosto de 1898, o Havaí se tornou parte do território dos Estados Unidos. Permaneceria com o status de território por mais 61 anos. Em 1959, o Havaí passou a ser o 50º estado dos Estados Unidos.

    E o que aconteceu com a rainha destituída? Durante anos após sua abdicação, Liliʻuokalani tentou recuperar as terras da sua família e receber indenizações do governo norte-americano. Em 1911, quase duas décadas após a queda da monarquia, lhe foi concedido o direito de receber uma pensão vitalícia do Território do Havaí.

    Em 1993, o Congresso dos Estados Unidos adotou uma resolução conjunta reconhecendo que os nativos havaianos “nunca renunciaram diretamente” sua reivindicação pela soberania. No entanto o pedido de desculpas não mudou a política dos Estados Unidos. Eles são o único grupo indígena norte-americano que não possui soberania política.

    Atualmente, cerca de apenas 10% dos habitantes das ilhas são descendentes de havaianos nativos. Os nativos enfrentam inúmeras desigualdades sociais e no acesso à saúde, como menores níveis de escolaridade, maior desemprego e pobreza, além de maiores taxas de incidência de tuberculose, tabagismo e obesidade, em comparação com os habitantes brancos.  

    Mas o orgulho em relação a sua cultura é inabalável. Na década de 1970, nativos havaianos começaram um movimento revitalizado com o objetivo de manter seu idioma e práticas culturais tradicionais. Isso incentivou um movimento crescente de soberania que ainda procura reconhecimento do governo. “Somos uma nação independente e soberana”, declarou Kealii Holden, professora residente da ilha de Kauai, durante uma audiência pública sobre o assunto realizada em 2014. “Há um grupo crescente de pessoas que estão se conscientizando da verdade.”

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