Arquivo secreto da Alemanha Oriental se encerra, mas acerto de contas com o passado continua
O acervo da Stasi, banco de dados de crimes de vigilância contra cidadãos da Alemanha Oriental, passarão a integrar os Arquivos Nacionais da Alemanha para garantir a continuidade de seu importante papel.
Emblema nacional da República Democrática Alemã em um cinto que pertenceu a um membro do Ministério da Segurança do Estado. O ministério da Alemanha Oriental também era conhecido como Serviço de Segurança do Estado (Staatssicherheitsdienst, em alemão), conhecido apenas como Stasi.
BERLIM Quando Siegfried Wittenburg se sentou pela primeira vez para ler o dossiê sobre ele compilado pela Stasi, polícia secreta da Alemanha Oriental, ele não tinha certeza do que esperar. Era 1999, uma década após a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha. Wittenburg, com 68 anos, fotógrafo e ex-cidadão da Alemanha Oriental, havia passado uma década registrando o regime.
Entre as imagens fotografadas por ele havia cenas de pobreza, escassez e protestos — cenas que o governo da Alemanha Oriental não desejava ver na época, motivo de ter censurado algumas das fotos de Wittenburg em suas exposições na década de 1980. Compreensivelmente, ele estava curioso — e apreensivo — sobre as informações que seu dossiê poderia conter.
“Li o dossiê como se fosse um romance policial”, conta ele.
Prédios que guardam o acervo da Stasi em Berlim, iluminados em 2014 para marcar o 25º aniversário da queda do Muro de Berlim.
Pastas nos arquivos da Stasi em Berlim. Cerca de 110 quilômetros de documentos estão armazenados nos arquivos.
No passado, monitores exibiam a movimentação dos presidiários da antiga prisão “Roter Ochse” (Boi Vermelho) da Stasi, no estado alemão de Saxônia-Anhalt. A prisão atualmente é um museu.
Wittenburg é mais um entre os mais de sete milhões de pessoas que solicitaram acesso a documentos no Arquivo de Registros da Stasi, localizado na antiga sede da polícia secreta no bairro de Lichtenberg em Berlim, desde sua inauguração em 1991.
Agora, passadas mais de três décadas desde a queda do Muro de Berlim, o Arquivo de Registros da Stasi oficialmente deixou de existir. Em junho, seus registros foram incorporados aos Arquivos Nacionais da Alemanha, em Berlim, que os transferirão a novos locais distribuídos em todos os cinco estados do leste da Alemanha. O mais recente diretor do acervo, também aposentado em junho, foi o último.
Em 1989, os manifestantes da Revolução Pacífica que protegeram o Arquivo de Registros da Stasi e seus milhões de documentos tinham como objetivo garantir que fosse conservado todo o registro da vigilância ampla enfrentada pelos cidadãos da República Democrática Alemã entre 1949 e 1990. O acervo foi importante para um ajuste de contas da Alemanha Oriental com seu passado. Seu primeiro diretor, Joachim Gauck, viria a se tornar o presidente da Alemanha em 2012.
Para Wittenberg, após anos sem saber quem o havia denunciado ou o quanto era vigiado, muitas das respostas estavam subitamente bem à sua frente. As seis horas que ele passou com seu dossiê naquele dia foram repletas de emoções ambíguas. Algumas vezes, ele não conseguia deixar de rir dos detalhes inócuos do dossiê, como comentários feitos por ele gravados completamente fora de contexto ou quando informaram da existência de suas correspondências em inglês, mas cujo conteúdo, segundo escreveram, não pôde ser avaliado devido ao idioma.
Farda pertencente a um membro do Ministério da Segurança do Estado da Alemanha Oriental. O ministério também era conhecido como Serviço de Segurança do Estado (Staatssicherheitsdienst em alemão), geralmente chamado apenas de Stasi.
Ao ler outros trechos, “fiquei arrepiado”, recorda ele. Compreender a tamanha extensão da vigilância sobre Wittenburg foi algo difícil de processar: entre os relatórios sobre ele estavam os de um colega de sindicato, de seu chefe, de conhecidos de organizações culturais e, o mais surpreendente: do companheiro da melhor amiga de sua esposa. Ao constatar a quantidade de informações coletadas e a forma como foram obtidas — ele encontrou provas de que a Stasi havia revistado seu apartamento — ele percebeu como sua situação era frágil e começou a considerar o impacto sobre sua família: “só mais um passo em falso e eu iria para a prisão.”
“Para aqueles que participaram do movimento pela democracia em 1989, não havia dúvida de que os arquivos... deveriam ser conservados”, declarou Gauck em uma cerimônia recente em homenagem ao trabalho realizado nos acervos. “A questão era mais como isso seria conduzido. Era preciso dar início ao processo político, jurídico e histórico de ajuste de contas com a ditadura”.
Durante os últimos 30 anos, algumas revelações expostas pelos 110 quilômetros de registros resultaram em prisões ou demissões de funcionários de alto escalão. Outras são cruciais à pesquisa histórica sobre a era da República Democrática Alemã. De forma mais pessoal, os arquivos forneceram informações importantes — e resolução — não apenas para alemães sob a vigilância da Stasi, mas também para seus filhos e netos.
Acesso aos registros
Normalmente, o acesso aos registros é restrito a indivíduos e familiares próximos. Qualquer pessoa interessada em um registro precisa apresentar um pedido. Após a confirmação da existência do registro e a aprovação do pedido, o que pode levar meses, a pessoa pode ter acesso ao registro em Berlim ou, em determinadas situações, em uma das localizações satélites dos arquivos nos estados do leste.
Imagens de câmeras de monitoramento gravadas pela Stasi, agora exibidas aos visitantes do museu da República Democrática Alemã, em Berlim.
Mais imagens de câmeras de monitoramento. Entre 1949 e 1990, a Stasi conduziu uma ampla vigilância de seus cidadãos.
“As pessoas que examinaram os arquivos reunidos pela Stasi obtiveram respostas a perguntas como: como a Stasi interveio em suas vidas? Quem é o responsável pelas injustiças enfrentadas? Quem fazia relatórios a seu respeito?”, afirma Roland Jahn, diretor aposentado do acervo. “É tudo que interessa às pessoas no que diz respeito ao seu próprio destino.”
A importância do acervo para ajudar as pessoas a entender suas vidas é enorme, observa Stefan Trobisch-Lütge, psicólogo de Berlim que possui um consultório para atender àqueles que sofrem efeitos psicológicos devidos à vigilância da Stasi. Transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e incapacidade de confiar são comuns entre aqueles atendidos, explica ele.
Para aqueles que ainda enfrentam as repercussões do que viveram, os arquivos da Stasi podem ser tanto uma bênção quanto uma maldição. “Para alguns, é a prova de que, sim, tudo de fato aconteceu — e é preciso levar o assunto a sério”, afirma Trobisch-Lütge. Eles encaram os registros como provas de “todo mal que lhes sucedeu. Contudo, para outros, seja devido ao conteúdo terrível ou simplesmente por terem de reviver o passado, os registros despertam uma enorme sensação de angústia.”
Conhecendo melhor a história
Nos últimos anos, muitos dos novos pedidos para verificar os arquivos da Stasi partiram de jovens que desejam conhecer mais sobre as histórias de seus pais ou avós. A imprensa alemã normalmente enfatiza os aspectos negativos da Alemanha Oriental apresentando apenas nuances da vida das pessoas e das memórias daquela época.
Amostras de suor humano em potes de vidro expostos no Museu da Stasi em Berlim.
Câmera espiã disfarçada de caixa de passarinho exposta no Museu da Stasi.
Tilmann Löser tinha apenas seis anos quando o Muro de Berlim foi derrubado. Como cresceu em Leipzig, tinha memórias do início da infância na República Democrática Alemã, mas sentia que abordar o assunto era uma espécie de tabu.
“Sentia que sabia pouco sobre a história da minha família e a história da Alemanha Oriental”, conta ele.
Ler o dossiê de sua mãe compilado pela Stasi foi uma maneira de descobrir mais sobre o que ele não sabia quando era menor. O dossiê não continha revelações explosivas — era relativamente fino e, na maior parte, documentava as correspondências sobre pesquisas conduzidas por sua mãe, que era química, trocadas com colegas da Alemanha Ocidental, comenta ele.
O dossiê facilitou conversas com a família sobre o passado. “No início da década de 1990, acredito que meus pais receavam um pouco falar sobre o assunto”, afirma Löser. “Mas agora que estão aposentados”, acrescenta, “é um bom momento para procurá-los novamente e conversar”. O acervo da Stasi — e o fato de que sua filha atualmente tem a mesma idade que ele tinha quando o muro foi derrubado — despertou-lhe um novo ânimo para falar sobre aquele tempo.
Jahn destaca que a mudança de situação do acervo da Stasi não significa que o ajuste de contas com o passado da Alemanha Oriental tenha sido encerrado.
Reconstituição de estação de escuta da Stasi no Museu da República Democrática Alemã, em Berlim.
“É justamente o oposto”, afirma ele. Uma vantagem de passar os registros para os Arquivos Nacionais é que serão digitalizados, melhor preservados e, posteriormente, disponibilizados em locais de arquivamento em toda a Alemanha. Essas medidas garantirão que os próprios registros continuem a desempenhar um papel central nas pesquisas para as próximas gerações: “estamos construindo estruturas sustentáveis para o futuro”, prossegue Jahn.
Para ressaltar seu compromisso em compreender e ajudar a reparar o legado nocivo do governo da Alemanha Oriental, o governo nomeou Evelyn Zupke, ex-membro do movimento de oposição à Alemanha Oriental, para a função de Comissária Federal das Vítimas da Ditadura do Partido Socialista Unificado da Alemanha.
Com uma eleição federal marcada para setembro, e com o partido de extrema direita chamado Alternativa para a Alemanha arraigado no leste da Alemanha, a região permanecerá objeto de debate na política alemã.
“Ainda há muito a ser feito”, afirma Jahn. “É importante que as mudanças e a nova posição passem uma mensagem de que houve uma ditadura que ainda precisa ser abordada, mas também que tenha fim a obsessão pela Stasi e que fique claro que sempre haverá reparação a suas vítimas.”