Ötzi, o Homem de Gelo: o que sabemos 30 anos após sua descoberta

Considerada a múmia mais famosa da Europa, os restos mortais do homem assassinado nos Alpes há cinco mil anos continuam revelando detalhes da vida neolítica – e informações úteis para o campo da saúde moderna.

Por Jennifer Pinkowski
Publicado 18 de set. de 2021, 07:00 BRT

Em setembro, há trinta anos, a múmia mais famosa da Europa foi encontrada de bruços no gelo, à beira de um lago a mais de três quilômetros nos Alpes de Venoste, na fronteira da Áustria com Itália.

Protegidos contra o sol, o vento e temperaturas congelantes por mais de cinco mil anos graças a processos naturais, os restos enrijecidos de Ötzi, o Homem de Gelo, logo se tornaram uma sensação global e assunto de incontáveis livros, documentários e até mesmo um longa-metragem reconstituindo sua vida na Europa Neolítica e sua morte violenta.

Hoje, Ötzi está sob os cuidados criteriosos de pesquisadores do Museu de Arqueologia de Tirol do Sul, na cidade de Bolzano, na Itália, onde seu corpo enrugado é mantido em uma câmara frigorífica personalizada a uma temperatura constante de cerca de -30ºC. Quatro ou cinco vezes por ano, seus restos são borrifados com água esterilizada para criar um exoesqueleto protetor e gelado que o transforma em uma ‘múmia úmida’ (preservada naturalmente em ambiente úmido em vez de seco).

Em um ano comum, cerca de 300 mil visitantes viajam a Bolzano para observar o Homem de Gelo através de uma janela de vidro grosso, que permite uma visão de sua câmara gelada. Ötzi é igualmente procurado por cientistas, que aproveitam as raras oportunidades para estudar restos mortais incrivelmente bem preservados de um homem que viveu muito antes da ascensão das primeiras cidades da Europa, e até mesmo antes da construção da primeira pirâmide do Egito.

“Ötzi, a meu ver, é o corpo humano mais estudado em toda a história mundial”, afirma Oliver Peschel, patologista forense de Munique responsável pela conservação de Ötzi.

Confira a seguir o que três décadas de pesquisas revelaram sobre a vida e a morte do Homem de Gelo – e o que o estudo futuro de seus extraordinários restos mortais reserva.

QUEM FOI ÖTZI?

Ötzi era magro, baixo (aproximadamente 1,57 metros) e tinha cerca de 46 anos quando morreu. Era canhoto e calçaria sapatos tamanho 39 do padrão brasileiro. Seus olhos – ainda preservados nas órbitas – por muito tempo foram considerados azuis, mas uma análise genômica revelou o contrário. “Poderíamos provar que tinha olhos e cabelos castanhos escuros e um tom de pele típico do Mediterrâneo”, conta Albert Zink, chefe do Instituto de Estudos de Múmias da Academia Europeia, em Bolzano, que realizou grande parte das pesquisas básicas sobre Ötzi.

O Homem de Gelo tinha sangue tipo O, era intolerante à lactose e possuía uma anomalia congênita rara que impediu a formação de seu 12o par de costelas. Ele teve cáries, parasitas intestinais, doença de Lyme e padecia de dores nos joelhos, quadris, ombros e costas. Suas 61 tatuagens mapeiam os locais onde seus ossos e articulações apresentam desgastes (bem como pontos da acupuntura moderna). Ötzi quebrou várias costelas e o nariz durante a vida, e sulcos horizontais em suas unhas indicam que ele passou por episódios repetidos de privação física – provavelmente em decorrência de desnutrição – nos meses que antecederam sua morte. Ele apresentava predisposição genética à arteriosclerose, e uma tomografia computadorizada confirma que esse é o caso mais antigo conhecido de doença cardíaca no mundo.

Com base na datação por carbono, Ötzi viveu há cerca de 5,2 mil anos (entre 3350 e 3110 a.C.).

A QUE POVO PERTENCIA?

Com base em sua assinatura de DNA, Ötzi fez parte da migração de agricultores neolíticos que passaram pela Anatólia (a atual Turquia) entre oito mil e seis mil anos atrás, e substituíram os caçadores e coletores europeus do Paleolítico. Sua herança genética materna não existe mais nas populações modernas, mas sua linhagem paterna se mantém em grupos encontrados em ilhas mediterrâneas, sobretudo na Sardenha.

O QUE VESTIA

Ötzi foi encontrado vestindo apenas um sapato, mas muitos de seus pertences foram posteriormente recuperados no local onde ele foi encontrado. Suas perneiras e casacos – uns mais leves, outros mais pesados – foram feitos com remendos de peles de ovelhas e cabras da região. Seus sapatos eram estofados com capim silvestre e amarrados com couro de auroque, um bovino selvagem já extinto. Seu chapéu era feito de pele de urso-marrom.

O QUE CARREGAVA

O Homem de Gelo caminhou pelos Alpes de Venoste com uma mochila de madeira e uma aljava de pele de cervo com 20 hastes de flecha, das quais apenas duas tinham pontas. Sua adaga de sílex foi afiada com uma ferramenta feita de madeira de tília e uma ponta de chifre endurecida pelo fogo. Um recipiente feito de casca de bétula, semelhante aos que ainda são feitos hoje na região, continha carvão embrulhado em folhas verdes de bordo que teriam lhe permitido acender uma fogueira rapidamente.

Um dos objetos mais importantes é o impressionante machado de cobre de Ötzi. Preso a um cabo de teixo com couro bovino e alcatrão de bétula, a lâmina foi fundida a partir de um molde e sua composição é de 99,7% cobre puro. Era um objeto extraordinariamente rico para a época, e sua descoberta antecipou a determinação do início da Idade do Cobre na Europa em mil anos.

ÚLTIMA REFEIÇÃO

Nas horas antes de sua morte, Ötzi fez uma refeição farta de trigo einkorn, cervo-nobre e íbex. Pesquisadores levaram 18 anos para identificar seu estômago – por meio de uma tomografia computadorizada em 2009 –, porque o órgão havia se deslocado sob suas costelas para onde está localizada a parte inferior dos pulmões.

Um corte entre o polegar e o indicador da mão direita revelou que Ötzi havia sido esfaqueado alguns dias antes de morrer. Foi um ferimento causado na tentativa de se defender, o que significa que ele provavelmente tentou agarrar a lâmina. A ferida ainda estava cicatrizando quando foi novamente atacado por uma flecha que atingiu uma artéria em suas costas, no ombro esquerdo. Ele pode ter tido tempo de se sentar e talvez tentar pegar uma flecha, porém é improvável que pudesse ter alcançado antes de sangrar até a morte em minutos.

O Homem de Gelo também apresentou hemorragia cerebral substancial, mas não há consenso entre especialistas sobre a causa. Alguém terminou de matá-lo com um golpe na cabeça? Ele caiu e bateu com a cabeça em uma pedra? Peschel afirma que não há evidências nítidas de nenhuma dessas hipóteses.

MUMIFICAÇÃO NATURAL DE ÖTZI

Com base na análise do pólen e das folhas de bordo que carregava, Ötzi morreu no início do verão. Uma teoria defende que ventos quentes de verão foram responsáveis pelo ressecamento de seu corpo. Mas Peschel afirma que devem ter sido as temperaturas gélidas de alta montanha que preservaram o Homem de Gelo, pois seu cérebro, que normalmente se liquefaz junto com outros órgãos alguns dias após a morte, congelou rapidamente, preservando-o na forma desidratada.

CONTEÚDO ESTOMACAL E INTESTINAL

Embora centenas de estudos já tenham sido realizados em Ötzi, há mais pesquisas em andamento. Após sequenciar o genoma de Ötzi, o Instituto de Estudos de Múmias passou a analisar geneticamente seu microbioma estomacal e intestinal. “Gostaríamos de entender toda a flora bacteriana no interior de seu estômago e intestinos”, revela Zink.

A diversidade de nossa flora intestinal parece estar associada à nossa saúde, por isso, os pesquisadores estão ansiosos para determinar a composição da flora de Ötzi. Um resultado preliminar, parte de um estudo em andamento conduzido pela Universidade de Trento sobre Ötzi e 6,5 mil pessoas dos dias atuais, revela que o Homem de Gelo possuía três dentre as quatro cepas da bactéria Prevotella copri. Povos indígenas em todo o mundo têm uma variedade de cepas da bactéria em suas vísceras, porém 30% dos ocidentais modernos com P. copri possuem apenas uma cepa, que geralmente prevalece sobre as demais, reduzindo a diversidade.

Outra constatação é que as vísceras de Ötzi continham a Helicobacter pylori, bactéria encontrada atualmente em metade da população mundial, com consequências graves ou mortais para a saúde de cerca de 10% das pessoas. A cepa predominante de H. pylori na Europa atualmente é uma híbrida de cepas asiáticas e africanas. A cepa de Ötzi é quase puramente asiática, o que sugere que a cepa africana chegou à Europa após sua morte. Isso tem implicações para o debate que discute se a H. pylori é um membro natural de nossa flora intestinal e estomacal ou se precisa ser tratada com antibiótico tão logo identificada.

Outro estudo do microbioma em suas vísceras encontrou a cepa ancestral patogênica Clostridium perfringens, atualmente uma causa comum de intoxicação alimentar.

UM ÖTZI MELHOR, MAIS ECOLÓGICO

A cidade de Bolzano planeja construir um novo museu de arqueologia nos próximos anos para abrigar Ötzi e um acervo maior de artefatos de Tirol. Também busca melhorar a eficiência energética do sistema da câmara frigorífica que há 22 anos conserva seus restos mortais (uma segunda câmara reserva também está de prontidão no caso de falhas na principal).

IMITANDO A NATUREZA

Para compreender melhor os processos naturais que preservaram Ötzi durante cinco milênios – sobretudo em vista da exposição ao clima e às ações de micróbios – pesquisadores do Instituto de Estudos de Múmias estão analisando restos naturais preservados de uma camurça, uma espécie de caprino, encontrada na mesma região de Ötzi em meados de 2020. Embora tenha apenas algumas centenas de anos, seu estado de conservação é semelhante ao do Homem de Gelo, e os cientistas estão variando as condições de umidade e temperatura em que os restos do animal são armazenados para entender melhor como esses fatores afetam a conservação. Eles também estudam sua comunidade microbiana, tanto interna quanto externa. “Sabemos que existem bactérias e fungos que podem sobreviver a baixas temperaturas, então talvez, se algo for alterado, possam voltar a crescer”, explica Zink.

A PESQUISA INIMAGINÁVEL DE 2050

Avanços tecnológicos serão cruciais para desvendar mais segredos de Ötzi – e provavelmente ocorrerão. Seu genoma de cinco mil anos foi decodificado em 2012, exatamente quando o sequenciamento da última geração havia se tornado mais comum e acessível. Ainda assim, Zink afirma nunca ter esperado que um dia os pesquisadores também pudessem reconstituir o microbioma do Homem de Gelo. “Esses métodos se desenvolveram bastante rapidamente e agora é possível obter muito mais dados”, comemora ele.

Pesquisas futuras podem se concentrar na funcionalidade do corpo de Özti, incluindo proteínas, lipídios e enzimas encontradas em seus tecidos que podem revelar informações sobre o sistema imunológico. Por ora, entretanto, a análise de proteínas de amostras antigas continua sendo um processo muito complexo.

Enquanto isso, os responsáveis por Ötzi precisam encontrar um equilíbrio delicado entre disponibilizar a múmia para pesquisas e garantir que as pesquisas não sejam muito invasivas ou frequentes. O museu recebe entre dez e 15 pedidos para estudar Ötzi a cada ano. Um comitê de especialistas de diversas universidades e do museu avalia cada solicitação. Em geral, uma vez por ano, são coletadas amostras da superfície para estudos microbiológicos. Raramente o descongelam. A última vez foi em 2019.

“Não fazemos ideia de quais métodos científicos estarão disponíveis em 2050”, observa Peschel. “Faz muito sentido manter Ötzi nas melhores condições, para tornar a pesquisa ainda possível dentro de 20 ou 30 anos.”

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