Futebol traz autoestima e esperança para amputados por minas terrestres

A seleção angolana de futebol para amputados – vice-campeã da Copa do Mundo da categoria em 2022 – inspirou uma nação que ainda se recupera de uma guerra de 27 anos.

Um jogador de futebol participa da Copa do Mundo de Futebol Amputado em Istambul, na Turquia. O torneio, que terminou no início de outubro, contou com 24 times e foi vencido pelos donos da casa – 4 x 1 em cima dos angolanos. Nos últimos quatro anos, o time angolano manteve o título de melhor do mundo.

Foto de Celal Gunes Anadolu Agency via Getty Images
Por Adam Williams
Publicado 12 de out. de 2022, 10:32 BRT

Todas as noites no início de setembro, um barulho constante pode ser ouvido dentro do Estádio dos Coqueiros, no centro de Luanda, capital da Angola. O ruído vem das muletas de metal na grama do campo de futebol do estádio, uma indicação de que o treinamento havia começado para os atletas mais talentosos do país: o time de futebol masculino para amputados, vice-campeão mundial na Turquia – perdeu para os turcos por 4 x 1 na final, no último dia 9.

“Agradeço a Deus por estar aqui”, disse o capitão da equipe, Hilário Kufula, 33 anos, durante um treino antes da final. “E que tenho a oportunidade de contribuir para a nossa seleção nacional e fazer crescer o perfil do esporte, ganhar campeonatos e levar o nome do nosso país, Angola, a novos patamares.”

Dos 15 jogadores da equipe, 12 são amputados em decorrência de explosão de mina terrestre, acidente ou lesão; dois têm malformações congênitas; e um tem uma perna paralisada causada pela poliomielite. Eles jogam com muletas, que os impulsionam enquanto deslizam pelo campo. Nos últimos quatro anos, eles detiveram o título de melhor equipe do mundo, até o vice-campeonato disputado neste ano na Turquia.

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    Manuel Rocha, de Angola, joga contra Ghrairi Issa, do Iraque, durante a partida de futebol do Grupo F da Copa do Mundo de Futebol para Amputados em Istambul, Turquia.

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    Iraque e Angola entram em campo durante a partida de futebol do Grupo F da Copa do Mundo de Futebol para Amputados.

    fotos de Celal Gunes Anadolu Agency via Getty Images

    Kufula, que perdeu a perna direita em um acidente de trem aos 12 anos, relembra a glória que veio com o campeonato de 2018: tudo que eu podia fazer era chorar”, lembra.

    Outros países com jogadores feridos em conflitos armados, como Iraque, Libéria e Colômbia, também competiram em Istambul. O esporte é jogado com sete jogadores em cada equipe (em comparação com 11 de cada lado no futebol tradicional). Seis atletas jogam em um campo com cerca de metade do tamanho de um campo regular, e um serve como goleiro. 

    Os jogadores de campo podem ter duas mãos, embora apenas um pé, enquanto os goleiros podem ter duas pernas, mas apenas um braço, de acordo com as regras oficiais da Federação Mundial de Futebol para Amputados. 

    Em preparação para o torneio, Angola – que também foi vice-campeã da Copa do Mundo de Amputados de 2014 e venceu a Copa das Nações Africanas de Futebol para Amputados em 2019 – realizou sessões de treinamento rigorosas uma a duas vezes por dia durante os meses de verão. “Nossas expectativas eram muito altas e sabíamos que outras equipes se prepararam com o objetivo de derrubar Angola”, disse Jesus Mateus, goleiro de 27 anos, que perdeu o braço direito em um acidente aos 5 anos. Mateus, que tem o cabelo de vermelho brilhante, pegou um pênalti na final de 2018 contra a Turquia para levar Angola ao título mundial.

    “Sabemos que não será fácil, pois há muitas equipes muito fortes no torneio, mas espero voltar da Turquia novamente com uma medalha de ouro no peito”, diz ele.

    Campeões em 2018

    Em 2018, Angola derrotou a Turquia por 5 x 4 na disputa de pênaltis e venceu a Copa do Mundo de Futebol para Amputados, realizada no México. Para um país que ainda não conquistou uma medalha olímpica e marcou apenas um gol em sua única participação na Copa do Mundo de 2006, o título de 2018 foi o maior triunfo da história do esporte angolano.

    Ganhar esse campeonato trouxe aos membros da equipe o status de celebridade na nação da África Ocidental. Ao regressarem a Angola, foram recebidos no aeroporto de Luanda por centenas de torcedores que gritavam com as cores vermelha e preta da bandeira nacional. 

    Com medalhas de ouro penduradas no pescoço, os jogadores desfilaram pela cidade em cima de um grande caminhão ladeado por uma escolta policial que interrompeu o tráfego nas ruas movimentadas da cidade. No dia seguinte, reuniram-se com o presidente angolano João Lourenço, e foram presenteados com casas em Luanda como recompensa pela sua vitória.

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      O Iraque disputa com Angola durante o Mundial de Futebol para Amputados. No fim de semana, Angola venceu as três primeiras partidas do Grupo F contra Uruguai, Iraque e Itália. A equipe agora avança para a segunda fase.

      Foto de Celal Gunes Anadolu Agency via Getty Images

      Para os angolanos, o triunfo no cenário internacional teve um significado mais profundo do que apenas um troféu ou o direito de se gabar. Angola e seus 34 milhões de habitantes ainda estão se recuperando de uma guerra civil de 27 anos, que terminou em 2002, deslocou milhões de moradores, matou centenas de milhares de cidadãos, deixou grandes cidades em ruínas e isolou amplamente o país do resto do mundo.

      Como a jovem nação, que só declarou independência de Portugal em 1975, se reconstrói e cura, o campeonato da equipe de amputados representa o potencial de Angola no cenário mundial – e a capacidade de seu povo de superar tragédias e alcançar o sucesso internacional.

      “Conseguimos mostrar o talento que temos na África para o mundo inteiro”, lembra Jesus Morais, meio-campista de 31 anos que perdeu a perna após uma lesão aos 8 anos. “Isso me motiva e me dá força e, enquanto eu viver, sempre honrarei as cores da bandeira angolana.”

      Futebol para amputados na Angola

      O futebol para amputados foi introduzido na Angola em 1997, pela Vietnam Veterans of America Foundation, com sede em Washington DC, Estados Unidos, através da iniciativa Sports for Life, que oferece programas de reabilitação para sobreviventes de minas terrestres. O programa abriu um centro de reabilitação na província do Moxico, no leste de Angola, que foi fortemente minada durante a guerra civil.

      Um dos fundadores do programa foi Augusto Baptista, atual treinador da seleção angolana. Dada a grande quantidade de lesões causadas pelas minas terrestres na região, a prática de esportes foi considerada uma forma de dar aos amputados uma saída para sua dor e criar um sentimento de pertencimento à sociedade, diz Baptista.

      “De 1997 a 2014, cerca de 80% dos jogadores da seleção angolana foram vítimas de minas”, diz Baptista, acrescentando que a maioria desses jogadores envelheceu de acordo com a diminuição das lesões causadas pelas minas no país.

      Mais de 88 000 pessoas ficaram feridas por minas terrestres na Angola, que continua a ser um dos países mais minados do mundo, mesmo duas décadas após o fim da guerra civil, de acordo com o Mines Advisory Group, MAG. A agência, cujo objectivo é encontrar e destruir minas terrestres, munições de fragmentação e bombas não detonadas em locais afetados pelo conflito, estima que milhões de minas terrestres e outras bombas não detonadas ainda se encontram espalhadas pela Angola, o sétimo maior país da África em área, que é mais que o dobro do tamanho da França.

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        A Turquia compete contra a Libéria durante uma partida do Grupo A da Copa do Mundo de Futebol para Amputados. A Federação Turca de Futebol incluiu 50 países membros no campeonato e oferece oportunidades para jogadores de todo o mundo.

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        Omer Guleryuz da Turquia compete contra o jogador liberiano Jusu Mohamed Delvin durante uma partida em Istambul.

        fotos de Celal Gunes Anadolu Agency via Getty Images

        Sabino Antônio Joaquim, ex-capitão da seleção angolana de 38 anos e o atleta mais velho do atual plantel, cresceu na província do Moxico e, aos 9 anos, sempre acompanhava a mãe quando ela saía para trabalhar. Enquanto a seguia, ele pisou em uma mina e perdeu a metade inferior da perna direita. Inicialmente resistente a jogar futebol de muletas após a lesão, Antônio conta que está grato pelo que o esporte para amputados trouxe à sua vida.

        “Me sinto feliz por ser assim. Se tivesse duas pernas, não teria tido as oportunidades que tive”, diz Antônio. “Agora sou jogador de futebol e estou vivendo uma vida que não imaginava ser possível”.

        Sensação de pertencimento 

        Celestino Elias não se lembra dos acontecimentos do dia em que, aos 5 anos, pisou numa mina terrestre na sua aldeia na província central do Huambo, o que o levou à amputação da perna esquerda. Precisando de muletas para andar, Elias diz que muitas vezes foi excluído do futebol quando criança.

        “Jogar futebol era minha missão, mas toda vez que entrava em um jogo me diziam que não podia jogar com muletas”, lembra Elias, hoje com 32 anos. “Isso sempre me fez chorar por ser excluído da atividade física”.

        Elias, que joga na defesa, foi mais tarde apresentado ao futebol de amputados, onde se destacou e foi recrutado para jogar pela seleção nacional angolana. Na Copa do Mundo de 2018, foi eleito o melhor jogador do mundo.

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          José Manihuari, à esquerda, conduz a bola durante um treino em Lima, Peru, em preparação para a Copa do Mundo de Amputados de 2022. Outros países com jogadores feridos em conflitos armados, como Iraque, Libéria e Colômbia, também disputaram o na Turquia.

          Foto de Raul Sifuentes Getty Images
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          Um membro artificial usado por um dos membros do time de futebol do Iraque está encostado em um banco durante um treino em Bagdá, em preparação para a Copa do Mundo de Amputados. A maioria dos jogadores da equipe perdeu braços ou pernas durante os recentes conflitos do país.

          Foto de Sabah Arar AFP via Getty Images

          A Federação Mundial de Futebol para Amputados inclui 50 países membros e oferece oportunidades para jogadores de todo o mundo, alguns que agora jogam em ligas profissionais na Europa, Brasil e Turquia e ganham a vida como atletas amputados. Cinco jogadores angolanos jogam atualmente no estrangeiro em ligas profissionais. Dois jogadores, Heno Guilherme e João Chiquete, conquistaram o título da Liga dos Campeões da Europa em Maio pela equipe turca Etimesgut Amputee Sport Club.

          Guilherme, de 30 anos, que perdeu a perna direita em um acidente de carro aos 4 anos, pinta o cabelo de loiro e é um líder. Em sua carreira profissional de 13 anos, ele ganhou a Copa do Mundo, o título da Liga dos Campeões, a Copa da África e os campeonatos angolano e turco. Após o torneio de 2022 na Turquia, Guilherme começará a jogar por uma equipe profissional de amputados em São Paulo.

          Além dos elogios pessoais e profissionais, Guilherme diz que a coisa mais importante que conquistou na carreira é o respeito à família e ao país. “Minha família e meus amigos estão muito orgulhosos do que conquistamos”, conta. “Todos estão orgulhosos do trabalho que fizemos e das nossas conquistas representando Angola.”

          Baseado na Cidade do México, Adam Williams faz reportagens da América do Sul e Central, Caribe e México desde 2009. Ele viajou para Angola para ministrar um curso de jornalismo investigativo para jornalistas locais. Siga-o no Twitter.

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