Lagos estão perdendo o gelo do inverno em um ritmo recorde
Atividades como patinação e pesca no gelo e práticas culturais no lago podem acabar para milhões de pessoas em algumas décadas.
POR CENTENAS DE anos, padres de Shinto que moram às margens do Lago Suwa, na província de Nagano, no Japão, observaram a superfície do lago congelar a cada inverno. A certa altura do inverno, o gelo racharia e recongelaria, criando uma crista longa e irregular de uma margem à outra: diz a lenda que são pegadas de um deus que atravessa o lago para ver o seu amor.
Os padres registram esmeradamente a data em que o lago congela e aparece a crista de gelo a cada ano desde 1442. A crista aparecia cedo em alguns anos, alguns dias depois em outros, mas o lago quase sempre solidificava o bastante para o deus fazer sua peregrinação anual.
Contudo, desde a Revolução Industrial, os impactos inexoráveis do aquecimento diminuíram o gelo do Lago Suwa, deixando o lago escuro e não congelado por mais anos do que congelado.
E o Lago Suwa não é o único, segundo uma nova pesquisa publicada na revista científica Nature Climate Change: em todo o mundo, lagos já estão congelando menos e por períodos menores no inverno do que antes das mudanças climáticas que afetam o planeta. E, com o aquecimento da Terra, dizem os autores da nova análise, dezenas ou até centenas de milhares de lagos ao redor do planeta congelarão menos—ou talvez nem sequer congelarão.
Mundo de lagos
Existem aproximadamente 117 milhões de lagos espalhados pela superfície da Terra, de minúsculos lagos de erosão de curta extensão até o Lago Superior, com mais de 80 mil quilômetros quadrados. Mais da metade desses lagos congelam todo inverno. O período de congelamento é crucial tanto para a ecologia do lago quanto para a cultura da população que vive ao seu redor ou às suas margens.
“Em termos ecológicos, o gelo é quase um botão de reinicialização de um lago no inverno”, afirma Sapna Sharma, especialista em lagos e bióloga da Universidade York no Canadá e autora principal do estudo. O gelo atua como uma tampa sobre os lagos, mantendo fria e parada a água em seu interior. E a duração desse período frio e parado é importante. Se o gelo se romper precocemente—ou nem sequer se formar—o plâncton recém-eclodido que serve de alimento para os peixes poderá aparecer cedo demais, aumentará a probabilidade de florescimento de algas nocivas e a água do lago evaporará, deixando os lagos menores e até mais suscetíveis ao aquecimento futuro.
E lagos congelados são importantes às pessoas. No norte do Canadá, diversas comunidades se conectam somente após o congelamento de lagos e rios, permitindo uma trama de caminhos temporários para atravessar a paisagem. Outras comunidades dependem dos peixes extraídos dos lagos congelados como proteína para sua subsistência durante o resto do ano. E atividades como patinação, pesca no gelo e outras formas de recreação em lagos congelados são cruciais à identidade de diversas comunidades.
“Nos últimos anos, aqui em Colodaro, alguns torneios realizados em certos lagos de menor altitude tiveram de ser adiados porque o clima estava bom demais”, conta Wayne Brewster, o administrador do site da Web da Associação de Pesca no Gelo dos Estados Unidos, que hospeda anúncios de torneios de pesca no gelo em toda América do Norte.
No entanto muitos da comunidade de pesca no gelo, acredita ele, ainda não sentiram totalmente os efeitos. “Somos eternos otimistas”, conta. “Mas, se observarmos esses torneios serem cancelados ano após ano em razão das condições do gelo, acho que debates serão iniciados”.
O futuro descongelado
A equipe fez um levantamento de centenas de lagos do Hemisfério Norte para verificar o grau de mudança na cobertura de gelo desde 1970—se os lagos congelaram e permaneceram congelados durante toda a estação, se alternaram entre gelo e água líquida ou se nem sequer congelaram. O aspecto mais importante, descobriram, era a temperatura atmosférica média a que o lago ficava sujeito durante o ano todo: se esse número ultrapassasse aproximadamente 8°C, os lagos que geralmente congelavam a ponto de solidificar congelariam apenas parte do tempo. E se a temperatura do lago alcançasse 10°C, era provável que o lago nem sequer congelasse.
Até mesmo pequenas alterações podem provocar grandes efeitos, afirma Olaf Jensen, biólogo e especialista em lagos da Universidade Rutgers, que não participou do estudo. “É normal pensarmos em 2°C como talvez apenas uma mudança branda”, conta ele. “Se ficar 2°C mais quente durante um dia, por exemplo, mal notaremos. Entretanto o mesmo aumento nas temperaturas atmosféricas médias faria com que perdêssemos o gelo lacustre em extensas áreas do mundo todo.”
Os impactos das mudanças climáticas podem ser difíceis de sentir em alguns casos, explica Sharma. Mas o gelo? Ou está congelado ou não está. Então mudanças na temperatura atmosférica sutis demais para se perceber no dia a dia ficam evidentes no inverno, quando um lago congela—ou deixa de congelar.
De modo geral, a equipe estimou que em torno de 15 mil lagos na América do Norte, Europa e Ásia podem estar apenas parcialmente congelados durante os invernos atuais.
Superando os limites das mudanças climáticas
Esse número pode aumentar exponencialmente no futuro, afirmam, porque as temperaturas atmosféricas estão aumentando abruptamente—a uma velocidade maior no norte do planeta do que em qualquer outro lugar—e também porque existem mais lagos espalhados nas paisagens mais ao norte.
Até 2080, foi verificado que, se as emissões de gases de efeito estufa continuarem com força total, a quantidade de lagos que não permanecem congelados no inverno seria provavelmente quase quatro vezes maior. Nos cenários piores, essa quantidade poderia ser 15 vezes maior—o que significa que quase 20% de todos os lagos do Hemisfério Norte atualmente cobertos de gelo nos invernos continuariam líquidos e escuros ao longo da estação.
No entanto a quantidade de lagos que perderão o gelo—e a que ritmo ocorre a transição—dependem, em grande medida, de quanto o planeta aquecerá, que, por sua vez, depende do esforço que o homem fará para cortar as emissões de gases de efeito estufa. Então o futuro dos lagos está nas mãos de todos, afirma Sharma.
“O que se percebe é que isso reflete muito a urgência do ritmo das mudanças climáticas”, prossegue. “Porque, nesta geração e certamente na geração de nossos filhos, algo que considerávamos normal—o acesso a lagos congelados—poderá se tornar coisa do passado.”