Maior manto de gelo da Terra é mais vulnerável ao derretimento do que se acreditava

Evidências chocantes sugerem que, na última vez que o manto de gelo da Antártida Oriental entrou em colapso, ele aumentou o nível do mar em mais de 3 metros – e é provável que isso se repita.

Por Douglas Fox
Publicado 4 de ago. de 2020, 07:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT

Novo estudo conclui que o manto de gelo da Antártida Oriental entrou em colapso muito mais recentemente do que se acreditava e que isso poderia se repetir nos próximos séculos.

Foto de George Steinmetz, Nat Geo Image Collection

Um raro cristal translúcido, preto e branco, parado em uma caixa por 30 anos levou os cientistas a uma descoberta surpreendente: o manto de gelo da Antártida Oriental, que contém 80% do gelo do mundo, pode estar ainda mais vulnerável ao aquecimento do que se acreditava.

Os cientistas haviam determinado que o último recuo desse manto de gelo ocorreu há cerca de três milhões de anos. Mas um novo artigo publicado no periódico Nature sugere — com base em um estudo dos cristais coletados na região — que grande parte desse manto entrou em colapso há apenas 400 mil anos. E o mais surpreendente é que os cálculos da equipe sugerem que a mudança drástica ocorreu durante um período quente prolongado, mas relativamente brando.

Durante esse período, a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera nunca subiu muito, atingindo apenas cerca de 300 partes por milhão (ppm), afirma David Harwood, que estuda a história glacial antártica na Universidade de Nebraska, em Lincoln.

“É assustador”, diz Harwood. Os níveis atuais de dióxido de carbono ultrapassaram os 300 ppm em 1915 — e atualmente estão em 410 ppm. Nos próximos séculos, esse dióxido de carbono adicional poderia elevar as temperaturas e o nível do mar, bem acima do ocorrido há 400 mil anos, segundo ele. “Não é uma notícia boa para o futuro.”

Já há previsões de que outros mantos de gelo do mundo, incluindo os da Groenlândia e da Antártida Ocidental, perderão gelo no próximo século. A Groenlândia fica distante do Polo Norte, expondo-se ao ar quente, e a Antártida Ocidental está situada em uma ampla bacia com profundidade abaixo do nível do mar, expondo-se a correntes oceânicas quentes. Mas o manto de gelo da Antártida Oriental era considerado mais seguro porque está no congelante Polo Sul, e sua maior parte fica acima da superfície terrestre, o que o protege do calor do oceano.

“Durante décadas, o manto de gelo da Antártida Oriental foi retratado com uma armadura de invencibilidade”, afirma Slawek Tulaczyk, glaciólogo da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que participou da pesquisa. Falar de seu encolhimento “era impensável até pouco tempo atrás”.

Se confirmadas essas novas descobertas, a Antártida Oriental poderia contribuir para um aumento do nível do mar antes do esperado. Os gases de efeito estufa produzidos até hoje pelos humanos podem já ter garantido um aumento do nível do mar acima de 12 metros provocado por todas as geleiras previstas para derreter nos próximos séculos, incluindo as da Antártida Oriental.

Desvendando um mistério

Essa descoberta foi feita em um estudo sobre as delicadas camadas de um cristal preto e branco nas profundezas do manto de gelo. Tulaczyk e Terry Blackburn, geoquímico da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, encontraram o cristal ao conduzir outras pesquisas. Tudo começou em 2017, quando visitaram o Vale Taylor, na costa da Antártida Oriental, para investigar um mistério: medições feitas por eles e outros cientistas indicavam que a água infiltrada pelo solo possuía um teor extraordinariamente elevado de urânio.

“Os sinais indicavam que a origem estava localizada em outro ponto” mais acima no vale, afirma Graham Edwards, aluno de doutorado de Blackburn que também esteve naquela expedição. Assim, partiram em busca da origem dos sinais de urânio, na expectativa de que fosse revelado algo interessante sobre a história do manto de gelo.

Embora a maioria das pessoas identifique o urânio como um combustível nuclear, pequenos vestígios dele são encontrados em todas as rochas, rios e oceanos do mundo. A maior parte é encontrada na forma pesada, denominada urânio-238. Contudo, misturados nele, os cientistas sempre encontram alguns átomos de uma versão mais leve, denominada urânio-234, que é produzida quando seu primo mais pesado passa por decaimento radioativo. Em todos os oceanos do mundo, a proporção dessas duas formas é relativamente constante — cerca de um átomo de urânio-234 para cada 16 mil átomos de urânio-238.

Camadas de cristal como essas, formadas há 200 mil anos abaixo do manto de gelo da Antártida Oriental, revelam seu derretimento há 400 mil anos, muito mais recentemente do que se acreditava.

Foto de Michael Scudder

Os cientistas supõem que, quando um manto de gelo cobre um continente por um longo período, a água aprisionada abaixo desse manto acumula lentamente urânio-234 à medida que ocorre o decaimento do urânio-238 nas rochas e no cascalho abaixo do gelo, lançando átomos de urânio leve na água, onde são acumulados ao longo do tempo.

A água escoada pelo Vale Taylor é peculiar porque contém entre duas e cinco vezes o nível normal de urânio-234 mais leve. “Esses fluidos têm mantido contato com a rocha por um período significativo”, especula Blackburn.

Medir a quantidade de urânio-234 abaixo do manto de gelo da Antártida Oriental poderia, portanto, fornecer indícios sobre o tempo transcorrido desde o último recuo do manto de gelo.

Decifrando as rochas

No entanto ninguém jamais havia medido o urânio-234 abaixo de um manto de gelo. Assim, Blackburn, Edwards e Tulaczyk partiram em busca dos minerais formados na água abaixo da superfície da Antártida Oriental. Essas rochas podem registrar a quantidade de urânio-234 presente na água no local de sua formação, o que poderia, por sua vez, indicar o período do último derretimento do manto.

Encontrar rochas debaixo do manto de gelo pode soar como uma tarefa impossível, mas Tulaczyk e Blackburn sabiam de um local onde as rochas abaixo do gelo eram acessíveis a partir da superfície: uma região chamada Elephant Moraine, logo acima das montanhas do Vale Taylor.

Milhares de rochas cobrem o gelo nessa região. Elas são erguidas a partir do escorrimento do fundo do gelo sobre uma cordilheira subterrânea, semelhante ao quebrar das ondas, mas em um ritmo glacial. Os ventos secos constantes evaporam vários centímetros da superfície de gelo por ano e, assim, as rochas acabam aflorando à superfície.

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    Na extremidade da Geleira Taylor, uma salmoura hipersalina conhecida como “Cachoeiras de Sangue” escorre na superfície de gelo. A cor vermelha é devido à presença de óxido de ferro. Os pesquisadores examinaram os depósitos minerais desses fluidos e encontraram evidências surpreendentes de um recuo da geleira há cerca de 400 mil anos. Acreditava-se que o manto de gelo da Antártida Oriental havia permanecido estável por milhões de anos.

    Foto de Terry Blackburn

    Durante a década de 1980, um cientista da Universidade Estadual de Ohio coletou centenas de rochas de Elephant Moraine. A maioria era composta de granitos, arenitos e basaltos formados antes da cobertura do continente pelo manto de gelo. Contudo, entre as rochas, foram encontrados alguns pedaços misteriosos de cristais, que ficaram parados na coleção por 30 anos, até Blackburn ler a respeito e adquirir três do Banco de Rochas Polares da Universidade Estadual de Ohio em 2019.

    Uma das rochas era especialmente marcante, com lâminas com a espessura de uma folha de papel alternadas entre opala branco leitoso e âmbar ou calcita preta dispostas como anéis de árvore em toda a sua extensão.

    Blackburn retirou uma lasca de camadas individuais e determinou suas idades medindo seu urânio-234 e outro elemento radioativo, o tório-230, substância resultante do decaimento do urânio que é produzida a uma taxa conhecida. Ele descobriu que as camadas na rocha do tamanho de um punho haviam se formado ao longo de um período de 120 mil anos iniciado cerca de 270 mil anos atrás.

    Em seguida, mediu o porcentual do urânio-234 mais leve em cada camada. Ele acreditava que seria o mesmo em cada camada — porque, segundo ele, “existe uma noção de que o manto de gelo da Antártida Oriental se manteve estável por milhões de anos”.

    Para sua surpresa, os cristais revelaram algo completamente diferente: na realidade, houve um crescimento de 50% no teor de urânio-234 em camadas sucessivas. No mundo de medidas precisas da geoquímica, “é uma alteração drástica”, conta Blackburn. Dois outros cristais com camadas extraídos de Elephant Moraine apresentaram resultados semelhantes.

    Essa descoberta pode levar a apenas uma conclusão: o manto de gelo da Antártida Oriental recuou mais recentemente do que acreditava. Com a eliminação do gelo, a água abaixo do manto escoou ao oceano — fazendo com que o teor de urânio-234 retornasse a um nível baixo. Somente após a recuperação do manto de gelo, o urânio-234 começou a se acumular novamente abaixo do manto; foi esse acúmulo que foi captado nos cristais.

    Também não foi um recuo pequeno, afirma Tulaczyk. Para a água do mar se aproximar de Elephant Moraine, o gelo teria que recuar mais de 640 quilômetros em relação a sua costa atual. Elephant Moraine fica à beira de uma vasta área, chamada Bacia de Wilkes, onde o leito rochoso e gelado possui uma profundidade de até 1,5 quilômetro abaixo do nível do mar — expondo o gelo a correntes oceânicas profundas que poderiam ter derretido sua parte inferior.

    Tulaczyk estima que, em uma extensão de quase 300 mil quilômetros quadrados (aproximadamente o tamanho do Arizona), o manto de gelo afinou centenas de metros — até se desprender de seu leito e flutuar sobre o oceano. Enfraquecido, não conseguiria suportar tanto gelo escorrendo de cima e a Bacia de Wilkes perdeu mais de um milhão de quilômetros cúbicos de gelo, o suficiente para elevar o nível do mar entre 3 e 4 metros.

    Já aconteceu antes.

    Segundo Maureen Raymo, geóloga marinha do Observatório da Terra Lamont-Doherty em Nova York, os novos resultados completam as informações tão necessárias que faltavam. Ela estuda antigas linhas costeiras em todo o mundo, agora localizadas acima das ondas, repletas de areia, conchas e tocas de camarões fósseis. Essas linhas costeiras revelam as diversas vezes em que o nível do mar esteve mais alto no passado, incluindo há 400 mil anos, quando ela estima que atingiu um pico entre 10 e 13 metros acima dos níveis atuais.

    A Groenlândia, a Antártida Ocidental e outras geleiras globalmente podem contribuir com uma elevação de mais de nove metros, caso derretam. Adicionar mais 3 a 4 metros devido ao derretimento da Bacia de Wilkes, na Antártida Oriental, “é perfeitamente condizente” com essas estimativas, afirma Raymo.

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