Produtores rurais estão diante de uma crise de fósforo e a solução começa pelo solo

O uso excessivo de fertilizantes levou à escassez de fósforo e à poluição da água. Mas grandes quantidades de fertilizantes talvez não sejam necessárias para a existência de plantações saudáveis.

Por Julia Rosen
Publicado 27 de out. de 2020, 17:00 BRT, Atualizado 5 de nov. de 2020, 01:56 BRT
Produtor rural espalha adubo orgânico composto por granulado de farinha de osso e fosfato de rocha ...

Produtor rural espalha adubo orgânico composto por granulado de farinha de osso e fosfato de rocha antes do plantio de espinafre no viveiro da loja Harmony Garden em Golden, Colorado, Estados Unidos.

Foto de Joe Amon, The Denver Post/Getty Images

EM UM DIA NUBLADO, Roger Sylvester-Bradley caminha ao lado de uma cerca-viva de espinheiro, retirando uma grossa crosta de lama de suas botas de couro, antes de pisar em um campo de cevada com um discreto declive.

Ele se abaixa para arrancar uma muda na altura do tornozelo e examina o aglomerado saudável de raízes brancas finas. Virando-as nas mãos, diz: “uma planta deficiente em fósforo não tem esta aparência.”

É uma surpresa para Sylvester-Bradley, cientista agrícola da ADAS, empresa de consultoria agrícola em Cambridge, Inglaterra. O fósforo ocorre naturalmente no solo e é um nutriente fundamental para cultivos agrícolas. Durante séculos, produtores rurais aplicaram quantidades adicionais em seus campos para aumentar a colheita, mas Sylvester-Bradley e seus colegas estudam maneiras de produzir alimentos utilizando menos fósforo.

Existem dois motivos para buscar uma redução: em primeiro lugar, a lixiviação do fósforo das plantações contribui com a vasta poluição da água. Além disso, não há uma abundância de fósforo para desperdiçá-lo.

Quase todo o fósforo utilizado atualmente por produtores rurais — e consumido pelas pessoas por meio da ingestão de alimentos — é extraído de algumas fontes de fosfato de rocha localizadas principalmente nos Estados Unidos, China e Marrocos. Segundo algumas estimativas, essas fontes poderiam ser esgotadas em apenas 50 a 100 anos. Os geólogos conhecem outras jazidas, mas elas têm acesso mais difícil e contêm menos fósforo. Assim, o preço provavelmente aumentará, o que dificultará sua compra pelos produtores e encarecerá o preço dos alimentos.

Naquele e em outros locais de pesquisas na Inglaterra, Sylvester-Bradley e seus colegas tomaram a primeira medida sensata para resolver o problema: interromperam a aplicação de fertilizante com fósforo em metade da plantação de cevada para analisar os efeitos sobre as plantas. Somente depois de oito anos começaram a notar as primeiras alterações na safra e na produtividade agrícola. As plantas sobreviveram a partir do excedente de nutrientes no solo — denominado legado de fósforo — que, segundo alguns, representa uma peça-chave no enigma do fósforo.

Pesquisadores calcularam que, em países como o Reino Unido e os Estados Unidos, já há bilhões de dólares em fertilizantes no solo para reduzir a demanda por fósforo proveniente das jazidas. Aproveitar esse fósforo no solo também deteria sua lixiviação.

Roger Sylvester-Bradley inspeciona as raízes de uma planta de cevada saudável em busca de sinais de ...

Roger Sylvester-Bradley inspeciona as raízes de uma planta de cevada saudável em busca de sinais de deficiência de fósforo. A plantação não recebe fertilizante adicional há quase uma década e só agora as plantas começam a demonstrar uma discreta deficiência.

Foto de Julia Rosen

Para Paul Withers, especialista em pedologia da Universidade de Lancaster e um dos colaboradores de Sylvester-Bradley, explorar o legado do fósforo é algo simples e continuar sem nenhuma mudança é uma receita certa para desastres ecológicos e humanitários. “A poluição ambiental provocada pela agricultura e os atuais recursos agrícolas utilizados não podem continuar assim”, afirma Withers. “Se nada for feito, acabará ocorrendo um colapso.”

Um nutriente evasivo

O fósforo é um elemento fundamental à vida. Ele compõe a hélice do DNA e é o P na ATP — a molécula que transporta a energia às células. As plantas precisam de fósforo para crescer e, por isso, o elemento é aplicado nos cultivos agrícolas há milênios.

Inicialmente sem conhecimentos químicos, as pessoas utilizavam esterco e estrume humano como adubo. Posteriormente, na década de 1800, agricultores perceberam que rochas e ossos ricos em fósforo também podiam ser utilizados.

Em 1842, John Bennet Lawes, aluno que abandonou a Universidade de Oxford, patenteou um processo para tratar novas formas minerais de fósforo com ácido, tornando o nutriente mais acessível às plantas, e logo começou a vender o primeiro fertilizante do mundo produzido artificialmente.

Lawes investiu seus consideráveis lucros em pesquisas na propriedade de sua família, que posteriormente se tornou o Centro de Pesquisas Rothamsted. Foi nessa propriedade que os cientistas descobriram que o fósforo era um nutriente um tanto evasivo.

O fertilizante produzido por Lawes continha uma forma solúvel e inorgânica de fósforo prontamente utilizável pelas plantas. Contudo, assim que o fósforo chegava ao solo, uma grande porção dele reagia com os minerais do solo e formava compostos inacessíveis às plantações. Parte dele também era bloqueada sob formas orgânicas igualmente indisponíveis.

A partir dessas observações, os cientistas concluíram que o fósforo não deveria ser poupado. Seu uso deveria ser indiscriminado, sobretudo para alimentar as crescentes populações mundiais durante o século 20.

Aliás, o próprio Withers se encarregou de espalhar a notícia. Como consultor agrícola do governo na década de 1980, ele dirigia uma perua Volvo vermelha pelas estradas sinuosas no interior da Inglaterra orientando os produtores rurais a garantir uma aplicação suficiente de nutrientes essenciais a suas plantações.

Esse método, denominado por Withers como “agricultura de precaução”, ainda prevalece em muitas regiões do mundo. Na Europa, aproximadamente quatro quilos de fósforo são aplicados na agricultura para cada quilo de alimento consumido. Em dietas dos Estados Unidos, essa proporção é de cerca de nove para um e, na China, pode chegar a 13 para um (há importantes exceções em locais onde não há acesso adequado a fertilizantes com fósforo, como muitas regiões da África e da América do Sul).

O fósforo se perde em muitas etapas da produção e processamento de alimentos. Mas essas ineficiências representam um entrave, já que mudanças iminentes na disponibilidade e nos preços de fósforo ameaçam desestabilizar o sistema alimentar mundial, afirma Withers. “Houve certo exagero e agora voltamos a uma situação de vulnerabilidade.”

Pior ainda, há acúmulos de parte dos fertilizantes não utilizados no solo, o que causa problemas ambientais por muito tempo após a aplicação, afirma Helen Jarvie, especialista em hidroquímica do Centro de Ecologia e Hidrologia de Wallingford, no Reino Unido. Sua pesquisa demonstra uma lixiviação gradual de fósforo no meio ambiente há décadas, frustrando as iniciativas bem-intencionadas de redução da poluição de nutrientes por parte dos produtores rurais.

Até mesmo pequenas quantidades de fósforo escoadas das propriedades e redes de esgotos são suficientes para estimular a proliferação de algas que mancham os cursos d’água com um esverdeado deplorável. Às vezes, como ocorreu com o Lago Erie, são produzidas toxinas que podem contaminar a água potável e esgotar o oxigênio dissolvido, matando peixes e outras formas de vida aquáticas.

De acordo com um estudo, a contaminação por fósforo afeta quase 40% da superfície terrestre. E os prejuízos se acumulam. Segundo uma estimativa, os impactos do excesso de fósforo e nitrogênio — outro importante nutriente — na qualidade da água e nos ecossistemas custam US$ 2,2 bilhões por ano apenas nos Estados Unidos.

Abundância para plantas?

Embora o legado de fósforo seja um problema ambiental, também representa uma ótima oportunidade, de acordo com Withers e outros cientistas. Ele e seus colegas calcularam, em um estudo conduzido em 2015, que as plantações no Reino Unido contêm um valor superior a US$ 10 bilhões em fósforo, o suficiente para atender à demanda de fertilizantes do país por até 54 anos.

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    Uma pá carregadeira move grânulos de fosfato monoamônico em um armazém na fábrica de fertilizantes PhosAgro-Cherepovets em Cherepovets, Rússia, em 9 de agosto de 2017.

    Foto de Andrey Rudakov, Bloomberg/Getty Images

    Muitas outras nações possuem reservas semelhantes. Uma análise feita em 2012 constatou que os solos em todo o mundo contêm um legado de fósforo suficiente para reduzir a demanda prevista por novos fertilizantes pela metade até 2050.

    “As plantas podem aproveitar nossos erros do passado”, afirma Sheida Sattari, principal autora do estudo.

    Com base nos números, tudo indica que o legado de fósforo seja abundante. Mas será que as plantas podem de fato aproveitá-lo por muito tempo? Estudos sugerem que, em locais com longo histórico de uso excessivo de fósforo, como o Reino Unido, as culturas agrícolas podem se desenvolver bem por dez anos ou mais utilizando os estoques acumulados no solo. O exemplo mais extremo vem de Saskatchewan, onde os pesquisadores não aplicam fósforo aos lotes de trigo desde 1995. Vinte e cinco anos depois, ainda não foram observadas deficiências.

    Os parâmetros convencionais da composição química do solo sugerem que deveriam ser aplicados mais fertilizantes, afirma Barbara Cade-Menun, supervisora dos experimentos no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Swift Current, no Canadá. “Mas não houve alteração em nossa safra.”

    Os cientistas acreditam que, à medida que as plantas absorvem o fósforo prontamente acessível nos campos, os minerais do solo e a matéria orgânica disponibilizam mais quantidade desse nutriente. Cade-Menun ainda não sabe se alterações na composição química do solo, nos micróbios do solo ou nas próprias plantas podem explicar o que está ocorrendo nos lotes. Qualquer que seja a resposta, os resultados sugerem que aquelas formas inacessíveis de fósforo que tanto preocupavam os pesquisadores de Rothamsted não são tão indisponíveis quanto acreditavam os cientistas, o que significa que simplesmente eliminar o fertilizante pode contribuir muito para atender à demanda de fósforo e reduzir a lixiviação sem comprometer as colheitas.

    Plantações mais inteligentes

    Em algum momento, entretanto, o teor de fósforo no solo fica tão baixo que afeta a plantação. Um dos motivos é que parte do fósforo fica de fato inacessível às plantas, outro é que muitas culturas agrícolas modernas não conseguem absorver o fósforo existente.

    A escassez de fósforo na natureza obrigou as plantas silvestres a desenvolver estratégias para garantir um suprimento adequado. Muitas desenvolveram extensos sistemas radiculares que buscam fósforo. Algumas também são capazes de excretar substâncias químicas que tornam o nutriente disponível no solo.

    Mas a maior parte das culturas agrícolas comerciais não dispõe dessas capacidades. Os cientistas as cultivaram em solos amplamente fertilizados que não exigiam que as plantas gastassem energia implantando tais artifícios. E, em um mundo com abundância de recursos, não houve necessidade de melhoramento genético para selecionar variedades com alta absorção de fósforo. O resultado, segundo Phil Haygarth, especialista em pedologia da Universidade de Lancaster, é “uma infinidade de plantas burras de rápido crescimento” com dificuldade para extrair o fósforo do solo.

    Os pesquisadores agora tentam produzir culturas agrícolas mais inteligentes. Em 2012, os cientistas identificaram um gene em uma antiga variedade de arroz-japonês que aumenta a capacidade da planta de buscar fósforo desenvolvendo raízes finas. Os pesquisadores então desenvolveram essa característica em arrozeiros modernos e, em 2019, produtores de arroz de Madagascar — cujos solos são naturalmente pobres em nutrientes — começaram a testar algumas das variedades mais promissoras.

    Sigrid Heuer, pesquisadora de Rothamsted que colaborou com o estudo do arroz, está em busca de um gene semelhante no trigo como parte da Parceria Internacional de Produção de Trigo. Outros cientistas estão desenvolvendo cultivares sem tanta necessidade de fósforo.

    Além do melhoramento genético, o plantio direto poderia contribuir para evitar a compactação do solo e incentivar um bom desenvolvimento das raízes a fim de facilitar o acesso das plantas ao legado de fósforo. A adição de fungos simbióticos dispersos pelo solo pode expandir o alcance subterrâneo das plantas e o cultivo intercalar de culturas com leguminosas e outras plantas que secretam compostos emissores de fósforo podem fazer com que o nutriente fique mais disponível.

    Withers e Sylvester-Bradley têm analisado os teores de fósforo de seus campos de testes justamente para explorar esses tipos de abordagens.

    Os pesquisadores tiveram que abandonar a plantação de cevada em Cambridge em razão da mudança de seu proprietário. Contudo, nos demais locais, os teores de fósforo finalmente caíram a níveis baixos o suficiente para permitir o início de experimentos sobre formas de maximização do acesso das plantas ao legado de fósforo. O primeiro experimento fará uma comparação do desempenho das variedades comerciais de trigo existentes.

    Os pesquisadores tiveram que aguardar mais do que o previsto — quase uma década — para que os teores de fósforo reduzissem aos níveis naturais. Mas esse fato por si só deveria tranquilizar os produtores rurais de que podem deixar de lado a aplicação do nutriente no solo, afirma Sylvester-Bradley.

    “A principal lição a ser lembrada pelos produtores rurais, a meu ver, é que não precisam se preocupar.”

    Esta matéria foi financiada por uma bolsa de estudos de jornalismo científico da União Europeia de Geociências.
     

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