Restaurar paisagem em áreas prioritárias pode evitar 71% das extinções e mitigar crise climática
Mapeamento global liderado por pesquisador brasileiro identificou áreas onde a regeneração da vegetação original seria mais efetiva para capturar carbono e conservar a biodiversidade.
Macaco-barrigudo e filhote em uma reserva na Amazônia equatoriana. O estudo utilizou três critérios para definir quais áreas devem ser recuperadas primeiro: capacidade de conservação da biodiversidade, de captura de carbono e custo da restauração.
A Organização das Nações Unidas (ONU) definiu que, a partir de 2021, o mundo entrará na Década de Restauração de Ecossistemas. E um estudo encomendado pela ONU e liderado pelo pesquisador brasileiro Bernardo Strassburg ajudará a nortear as negociações. Um mapeamento global constatou que há 2,9 bilhões de hectares de terras degradadas passíveis de recuperação em todos os tipos de ambientes, como florestas, ecossistemas áridos, terras alagadas, pradarias e matagais.
Nessas regiões, os pesquisadores identificaram áreas prioritárias onde a regeneração da paisagem original seria 13 vezes mais custo-efetiva. Calcularam também os impactos para diferentes cenários. A restauração para habitats saudáveis de 15% dessas áreas cruciais, por exemplo, poderia evitar a extinção de 60% das espécies ameaçadas atualmente, além de sequestrar 299 gigatoneladas de CO2 – 30% do total incrementado na atmosfera desde a Revolução Industrial, iniciada em 1760. Já uma recuperação de 30% representaria a preservação de 71% das espécies em risco de extinção e o armazenamento de metade do CO2 produzido no mesmo período. O artigo foi publicado nesta quarta-feira, 14 de outubro, na revista científica Nature.
Uma restauração apropriada do ponto de vista ecológico pressupõe o retorno do respectivo ecossistema às suas características originais, diz Strassburg. “Mundialmente, as terras alagadas são as mais prioritárias. As florestas tropicais vêm logo depois. Mas tem áreas importantes em todos os tipos de ecossistemas e biomas.”
Os locais cruciais apresentam uma forte ligação entre a conservação de espécies e a mitigação da crise climática, observa Strassburg. Ao sequestrar carbono, a flora contribui para reduzir o aquecimento global e, por consequência, evitar a extinção de espécies. Outra sinergia envolve a conectividade. Muitas das áreas identificadas, se restauradas, serviriam de corredores ecológicos entre ecossistemas fragmentados. “Há uma relação comprovada de que, quanto mais biodiversa, mais produtiva no sequestro de carbono determinada área se torna. Também fica mais resistente e resiliente a desastres e flutuações do clima”, analisa o pesquisador. “Quando um ecossistema sofre impactos, mas se recupera rápido com ajuda da biodiversidade, perde-se menos carbono.”
Os pesquisadores constataram que as áreas com maior potencial de regeneração combinam uma alta relevância para biodiversidade com uma subutilização do ponto de vista da agricultura e da pecuária. “Cerca de 70% da natureza já perdida foram convertidas para pastagem. O caso mais clássico é o de terras de pecuária de baixa produtividade ou abandonadas, muito comuns na Mata Atlântica, no Brasil em geral e no mundo”, disse Strassburg.
Caso restauradas, as áreas marcadas em vermelho seriam as mais efetivas na conservação da biodiversidade e captura de carbono. Ferramenta desenvolvida pelos pesquisadores permite balancear esses dois critérios com um terceiro: o custo.
A metodologia utilizada no artigo teve origem em 2013. Após a aprovação do novo Código Florestal, em 2012, o Ministério do Meio Ambiente encomendou ao Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS), onde Strassburg é diretor-executivo, uma ferramenta para definir estratégias mais eficazes e mais baratas para recuperar vegetação nativa. Assim, a equipe do instituto e pesquisadores estrangeiros desenvolveram um algoritmo matemático dedicado à priorização espacial para restauração, com foco em identificar áreas cruciais para regeneração na Mata Atlântica. O trabalho durou quatro anos e os resultados foram publicados na Nature Ecology & Evolution, em 2018.
Ao apresentar o estudo em fóruns internacionais, diretores da Convenção da Biodiversidade das Nações Unidas perguntaram se Strassburg poderia desenvolver um mapeamento global para ajudar nas discussões em andamento sobre o novo grande marco global da biodiversidade. A conferência sobre o tema está prevista para acontecer na China em 2021, e deve estabelecer o plano da década 2021-2030 e os objetivos até 2050. Strassburg aceitou a proposta e a equipe do IIS e colegas de outras instituições mundo afora mergulharam no projeto nos últimos dois anos.
A metodologia adotou três eixos principais para identificar as regiões mais importantes para a regeneração: a conservação da biodiversidade, a mitigação da crise climática e os custos envolvidos nos esforços. Ao analisar uma série de banco de dados, o algoritmo matemático realizou a leitura de 1.200 possíveis cenários com os três critérios em conjunto e determinou as regiões onde a restauração ecológica seria mais custo-efetiva. Em cada mapa de áreas prioritárias produzido, é possível dimensionar os impactos, o que que é útil para planejar políticas públicas e privadas e até engajar as pessoas.
“Se olhar para as áreas prioritárias apenas do ponto de vista do custo, a restauração tem uma performance muito baixa para biodiversidade e clima. Se olhar para mitigação climática, sai muito caro – tem um benefício bom para biodiversidade, mas continua longe do potencial, e vice-versa”, diz Strassburg. “Mas, quando se olha para todos ao mesmo tempo, essas soluções multicritério são possivelmente as mais interessantes do ponto de vista de implementação.”
O biólogo Ricardo Rodrigues, professor titular da Universidade de São Paulo, que não participou da pesquisa, considera importante o estudo de Strassburg ter analisado todos os biomas, não apenas os florestais – que costumam ser o foco dos debates internacionais. “Nos biomas brasileiros e do mundo, muitas dessas formações não florestais têm uma importância absurda não só para a biodiversidade, como para a questão de carbono e de espécies em risco de extinção”, diz Rodrigues, que coordenou o relatório de 2019 sobre restauração de ecossistemas da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). “Então, é fundamental que tratemos de restauração ecológica, e não apenas florestal.”
Além disso, Rodrigues ressalta que a recuperação dos ecossistemas não substitui a necessidade da preservação ambiental. “Através da restauração, conseguimos interligar os fragmentos naturais da paisagem, dar mobilidade aos organismos e quebrar a questão dos efeitos de borda dos fragmentos naturais”, explica o biólogo. “A restauração deve ser vista dentro de uma perspectiva de paisagem e de forma complementar à conservação.”
Para Renato Crouzeilles, co-autor do artigo publicado na Nature, o Brasil é pioneiro na restauração de biomas não florestais. O Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, em vigor desde 2017, abrange todos os seis biomas brasileiros. “Nos últimos anos, o Brasil vinha avançando muito bem como líder de uma agenda de restauração que considera todos os ecossistemas. O governo atual tem tido menor atenção com a restauração, mas ainda assim os processos de identificação de áreas prioritárias foram mantidos”, avalia.
O que falta, continua o Crouzeilles, é implementar ações de larga escala para a regeneração dos biomas, já que os projetos ainda são pulverizados e, por isso, têm menor impacto. “O conhecimento técnico no Brasil existe. Precisamos de mais apoio e interesse econômico e político.”
Além do sequestro de carbono e da conservação da biodiversidade, Crouzeilles destaca que a recuperação de áreas degradadas também melhora “os serviços ecossistêmicos – qualidade e quantidade de água, polinização, redução em deslizamentos e enchentes”, bem como “o benefício socioeconômico da restauração, que gera emprego, renda, formas de manejo e métodos com fins econômicos”. O relatório do BPBES aponta que, no processo de restauração ecológica, são criados 200 empregos para cada mil hectares regenerados.
No âmbito socioeconômico, Rodrigues observa um grande êxodo rural de terras marginais, áreas agrícolas de baixa aptidão. “Geralmente, quem está nessas áreas são os pequenos produtores, que foram deslocados historicamente pelo agronegócio”, diz. Nessa situação, ele considera a restauração assistida como melhor método. As pastagens de baixa produtividade poderiam ser substituídas por sistemas agroflorestais biodiversos, o que melhoraria a qualidade de vida do produtor, inclusive com crédito de carbono e culturas frutíferas, medicinais e ornamentais, por exemplo, e geraria benefícios ambientais. Outro ponto necessário é o cumprimento do Código Florestal na Mata Atlântica, que só no estado de São Paulo prevê a recuperação de 700 mil hectares de matas ciliares em áreas de proteção permanente e 350 mil hectares de reserva legal.
O papel do Brasil
O mundo iniciará a Década da Restauração de Ecossistemas munido de compromissos importantes já estabelecidos. Desde 2011, 60 países – entre os quais o Brasil – e a União Europeia integraram o Desafio de Bonn. O acordo, originado pela Alemanha e pela União Internacional para a Conservação da Natureza, almeja restaurar 350 milhões de hectares de terras degradadas até 2030. A Iniciativa 20x20, por sua vez, envolve países da América Latina e do Caribe que se comprometeram a recuperar 20 milhões de hectares na região até o fim deste ano.
Além disso, os compromissos nacionalmente determinados (NDC) pelos países signatários do Acordo de Paris, em 2015, englobam a recuperação de ecossistemas como forma de mitigar os impactos da crise climática. O Brasil comprometeu-se a restaurar 12 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030.
Entretanto, os países ainda precisam se engajar para não repetir o que aconteceu nesta década. Em 2010, 193 países e a União Europeia concordaram com as Metas de Aichi definidas na Convenção sobre Diversidade Biológica. A estratégia visava restaurar 15% das áreas degradadas do mundo até 2020, mas o objetivo não foi alcançado.
As descobertas da pesquisa confirmaram que o Brasil não é apenas um país-chave na conservação, mas também na restauração dos ecossistemas. “A Mata Atlântica está no top 5%, a mais alta categoria de prioridade global para restauração da biodiversidade, e no top 10% para a mitigação das mudanças climáticas”, analisa Strassburg. “A Amazônia possui altíssima prioridade do ponto de vista climático e alta na biodiversidade. O Cerrado configura altíssima prioridade em termos de biodiversidade – um dos hotspots onde há milhares de plantas endêmicas ameaçadas de extinção. O Pantanal corresponde às terras alagadas, uma classe de ecossistema considerada a mais alta prioridade entre os biomas. Também há áreas prioritárias na Caatinga e no Pampa.”
Soluções locais
Os critérios utilizados na ferramenta do ISS podem ser adaptados para leituras mais específicas de cada realidade local. Desde 2013, os dados fornecidos pela ferramenta auxiliam o Ministério do Meio Ambiente (MMA) com mapas de restauração prioritária na Mata Atlântica. ONGs, movimentos e empresas também têm utilizado os recursos, disponibilizados gratuitamente.
No momento, o IIS também desenvolve com o MMA estratégias de restauração ecológica para o Pampa, a Caatinga e o Pantanal. A Amazônia, por sua vez, abrange outro projeto, em construção, que envolve também ONGs locais para estabelecer cenários específicos de recuperação. “Temos feito oficinas participativas nesses biomas, com especialistas e representantes locais, para entender quais seriam os benefícios e custos mais importantes a serem incluídos. Isso tem subsidiado políticas públicas, iniciativas privadas e do terceiro setor”, diz Strassburg. Ele também participa de outras iniciativas para otimizar a restauração em regiões específicas, como a Área de Proteção Ambiental da Bacia do Rio São João, o último refúgio do mico-leão-dourado, natural da Mata Atlântica.
Diversos fatores rendem à Mata Atlântica o título de hotspot para restauração ecológica. Enquanto o bioma apresenta uma das mais ricas biodiversidades do mundo e suas árvores de longo ciclo armazenam grande quantidade de carbono, o desmatamento que ocorre desde o período colonial deixou apenas 12,4% de vegetação nativa, espalhados em fragmentos ao longo de 17 estados brasileiros.
“O uso e a ocupação do solo no Brasil começou pelo litoral, com a chegada dos colonizadores. Extensas áreas de Mata Atlântica foram desmatadas para mudança de uso do solo dos mais diversos tipos – cana de açúcar, café e outras formas de agricultura”, analisa Rafael Fernandes, gerente de restauração florestal da Fundação SOS Mata Atlântica. “Em uma visão contemporânea, a expansão das zonas urbanas vem fazendo com que os poucos fragmentos de Mata Atlântica continuem sob pressão.”
A SOS Mata Atlântica já recuperou 23 mil hectares em nove estados, com um total de 40 milhões de árvores plantadas. A fundação também integra o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, cujos esforços resultaram na regeneração de 83 mil hectares. Neste processo, Fernandes considera essencial a identificação de áreas prioritárias, como demonstrou o estudo de Strassburg. Em um bioma fragmentado como a Mata Atlântica, a estratégia permite estabelecer conexões entre os remanescentes. Ao conectar as áreas de proteção permanente por meio da regeneração, “naturalmente se promove corredores biológicos que geram forte impacto na questão da paisagem e na maximização dos benefícios, formando grandes redes de biodiversidade”.
Em 2007, a fundação estabeleceu seu Centro de Experimentos Florestais em uma fazenda de 528 hectares em Itu, município no interior de São Paulo. Historicamente, o local passou pelo ciclo do café e depois foi tomado por pastagem. Com isso, 386 hectares desmatados precisavam de restauração. “Hoje, é um grande maciço verde onde aplicamos uma série de pesquisas e experimentações”, diz Fernandes.
Após cinco anos de proteção e esforços no restauro, os pesquisadores do instituto identificaram um aumento de mais de 200% no número de espécies de aves, muitas delas ameaçadas de extinção. Há três anos, passaram a estudar a mastofauna, composta por mamíferos aquáticos e terrestres. Cinco tipos de felinos que utilizam o local para reprodução já foram documentados, entre os quais o gato-mourisco, a onça-parda e a jaguatirica. Em relação aos aspectos biológicos e químicos do solo, a recuperação é mais demorada. Fernandes observa que estudos na Mata Atlântica em áreas restauradas há 50 anos ainda não chegaram aos níveis de nitrogênio do solo de um remanescente natural.
“O processo de restauração é contínuo, mas é importante que seja feito com qualidade e monitoramento, para ver se, de fato, a biodiversidade esperada está retornando, se tem um impacto positivo nos recursos hídricos, se os resultados são eficazes”, analisa Fernandes. “Esses pontos mostram o quão importante é restaurar, mas também conservar os remanescentes. Os processos de restauração são de alta complexidade e muitas vezes envolvem custos altos. Conservar é muito mais barato do que restaurar. São ações que devem andar em paralelo. Não é por ser possível recuperar que podemos continuar desmatando.”