O luto da perda e a luta de pesquisadores para reeguer o Museu Nacional depois do incêndio
O professor de humanidades e jornalista Felipe Milanez estava no Rio de Janeiro quando o museu pegou fogo e refletiu sobre a tragédia com o etnólogo Carlos Fausto.
Um dos templos de conhecimento mais importantes do mundo virou cinza. Literalmente. A tragédia do Museu Nacional, de um alcance inestimável para a humanidade, vai levar muito tempo sendo sentida.
Enquanto choramos o luto da destruição do Museu Nacional, que ardeu em um grande incêndio no domingo, na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, é preciso também encontrar forças para levantar. E ninguém, no Brasil, tem tantas experiências de ter mundos destruídos e reconstruídos como os povos indígenas e quilombolas – talvez as principais vítimas do verdadeiro sentido humanitário desta tragédia inestimável.
Há um poema de um intelectual quilombola do Piauí, Antonio Bispo dos Santos, onde ele denuncia a violência do fogo contra povos e culturas: o fogo queimou Palmares, mas nasceu Canudos, e depois que queimaram Canudos, nasceu Caldeirões, e assim por diante, até que “nasceram e nascerão tantas outras comunidades que vão cansar se continuarem queimando”. E nessa sequência de destruição e recriação, ele escreve:
“Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo,
Não queimarão a ancestralidade”
Acompanhei de perto algumas horas do incêndio, tentando transmitir a tragédia para a sociedade via redes sociais. É indescritível o sentimento de impotência diante de uma catástrofe sobre a história humana. Em frente à estátua de Dom Pedro II, logo na entrada do edifício, tendo ao fundo labaredas espetaculares, dantescas, a missão de reportar foi acompanhada do sentimento de impotência, de não ter nada a fazer a não ser lamentar, se indignar, revoltar e chorar, e assistir passivamente a história comum da humanidade sendo derrotada pelo fogo.
Já se sabe que os hidrantes estavam sem água, que havia poucos bombeiros, que faltou capacidade aos combatentes, que foram poucos caminhões-pipa. Havia um despreparo geral para lidar com a situação. Faltou logística, faltou treinamento específico, faltou investimento para evitar um acontecimento tão devastador. Mesmo que não tenham faltado, nos últimos anos, alertas, avisos e denúncias da precariedade da situação em que se encontrava o Museu Nacional.
E pior: o que se perdeu é para sempre. Não há como recuperar. Porém, como disse em entrevista coletiva o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Roberto Leher, é preciso fazer a instituição voltar a funcionar: “É necessário que, de fato, o poder público federal olhe para o Brasil e pense o significado da memória histórica que temos nesse Museu Nacional. Nós precisaremos de recursos importantes para a reinvenção do museu, resgatando sua história e sua memória”.
Vai levar um tempo para se investigar o que foi perdido – e é provável que nunca se descubra tudo o que se perdeu materialmente. Eram mais de 20 milhões de peças. Mas, nesse caminho, o que se perdeu foi mais profundo: a própria capacidade de se pensar o país, de se imaginar uma sociedade mais justa, de algum avanço civilizatório nas relações entre nós, seres humanos, a sociedade e a natureza.
Criado por Dom João VI em 1818, o museu completou 200 anos em junho, sem a presença de nenhum ministro. Foi lembrado pela escola de samba Imperatriz Leopoldinense, no Carnaval, quase sem destaque na mídia.
Quando eu pensava no Museu Nacional, sempre me vinha à mente as grandes estrelas: o meteorito, a cabeça de Luzia, as múmias, a plumária indígena. Mas as obras expostas eram apenas uma das funções do museu.
Um museu público, administrado por uma universidade pública, com pesquisadores funcionários públicos, e estudantes bolsistas, construiu um ambiente de dedicação nas pesquisas de ponta que colocava em prática em sentimento raro no Brasil: o de construir um bem comum. Isso fez com que as pesquisas científicas tivessem o efetivo caráter acumulativo e crítico em suas diversas áreas do conhecimento: na biologia, na paleontologia, antropologia, arqueologia, linguística.
Assim, em um ambiente vibrante de produção do conhecimento, constantemente chacoalhado por seminários, congressos, palestras, e encontros científicos, fez com que o acervo, na sua maior riqueza de conteúdo, não fosse decorrência de um desejo apenas de um estadista, mas sim o acumulo de trabalho de milhares de pessoas, do Brasil e do mundo, ao longo dos 200 anos.
Nos últimos anos, a entrada de novos pesquisadores no Museu Nacional foi enriquecida com a política de cotas. Havia estudantes indígenas fazendo mestrado sobre suas línguas nativas, doutorado em antropologia para pesquisarem a relação de suas sociedades com a colonização. “O descaso que ocasionou o incêndio, além da perda geral para vários setores da pesquisa científica, significa também um luto para a memória, a história e a antropologia indígena do Brasil”, escreveu o estudante de mestrado em antropologia social no museu, Idjahure, do povo Kadiwéu. Aliás, os pesquisadores mais jovens, de mestrado e de doutorado, já começaram a se mobilizar nas redes sociais para reconstruir a o acervo da biblioteca.
Para compartilhar a dor da perda, conversei com o antropólogo Carlos Fausto, que há três décadas convive com o museu, primeiro como estudante, hoje como pesquisador. De forma sintética, impactado pessoalmente por ver parte de sua vida destruída, Fausto destaca quatro aspectos, transcritos abaixo, e que merecem uma profunda reflexão sobre a vida após as cinzas de nosso passado:
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“A importância da coleção que se perdeu, e que não pode ser reposta. Não há como refazer a coleção de plumária Munduruku do século 19, que ninguém mais vai ver. E a coleção de objetos indígenas é uma conexão entre o presente e o passado. A questão das hidrelétricas na região do Tapajós, por exemplo. O povo Munduruku atua na resistência a elas, e a exposição desse material, de uma sofisticação estética muito grande, criava um sentido de continuidade de direito ao território pelos indígenas. Era uma coleção impressionante, completa. O mesmo se pode dizer da coleção dos Urubu-Kaapor, do começo dos anos 20, que era impressionante. Ou a cerâmica Kaduwéu... Tudo isso se perdeu. Virou pó. Essa ideia de uma coisa desaparecer inteiramente por um descuido é um ponto importante. E esse não era um material morto: ele tinha conexão com o presente.”
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“Uma coleção jamais está morta ou está apenas no passado. Cada geração se apropria das coleções de diferentes maneiras. Além disso, tem um fator técnico nessa apropriação. Há novas técnicas para retirar DNA de fosseis muito antigos de ancestrais humanos, que permitem estudos que antes não eram possíveis. Todo o material ósseo, inclusive a famosa Luzia, também desapareceu para a história das ciências e dos povos que aqui habitaram.”
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“O impacto na pesquisa e no ensino de pós-graduação: hoje não tem mais mesa, cadeira, janela, porta. Nem teto. E se fazia ali pesquisas de ponta em várias áreas da arqueologia, da antropologia, da paleontologia, e a coleção do museu era um dos objetos fundamentais da pesquisa. Isso vai dar uma inflexão para baixo da produtividade científica brasileira, durante anos.”
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“A função social do Museu Nacional. Ele era o grande museu popular do Rio de Janeiro, para onde iam todas as escolas municipais. Era o museu das crianças pobres, o grande parque da zona Norte.”
Felipe Milanez foi editor da revista National Geographic Brasil e hoje é Professor de Humanidades da Universidade Federal da Bahia. Siga-o no Twitter.